No Blog Da Cidadania – “Isto aqui é uma psicanálise coletiva”, diz Adriano Diogo, de 70 anos, sentado num banco em frente à entrada da 36º Distrito Policial da Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Quando Diogo tinha 23 anos, ele ficou preso nesse mesmo endereço, nos prédios do DOI-CODI, comandados pelo temido Coronel Brilhante Ustra. Apanhou pessoalmente de Ustra e foi alvo de seu sadismo como no dia em que o militar mandou chamá-lo na cela para dar-lhe um recado. “Você conhece Suely Kanayama? Preciso te dar uma notícia”, disse Ustra. Mostrou-lhe então uma foto da jovem estudante Suely morta e com o corpo todo retalhado.
Diogo, que à época integrava a Integrava a Ação Libertadora Nacional, de inspiração socialista, voltou ao endereço que deixou marcas profundas na vida do Brasil no último sábado dia 30. Há seis anos, ele e outros amigos e colegas se reúnem no estacionamento da hoje delegacia para homenagear as vítimas da ditadura que foram presas ou morreram nesse endereço que se tornou maldito. Muitos dos que ali estavam combinavam de se ver novamente no domingo, para a primeira marcha silenciosa pela memória das vítimas que ocorreria no parque Ibirapuera.
Dito e feito, as caras se repetiram no dia seguinte, num ato que reuniu milhares de pessoas e seguiu até uma das saídas do parque. “A energia é boa, dá uma paz estar aqui”, cochichava uma moça para a colega ao lado. Carregando fotos de vítimas, velas e flores, os manifestantes seguiram em silêncio, boa parte vestida de preto, parando em frente ao monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos da ditadura, inaugurado em dezembro de 2014.
Outros atos se repetiram no Rio, Recife, Fortaleza, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Palmas, Florianópolis, Brasília e Belém, num revés às manifestações de defesa da ditadura militar feitas pelo presidente Jair Bolsonaro. Em visita a Israel, Bolsonaro não se manifestou sobre a data em suas redes sociais. Mas tudo indica que pode ter dado o seu aval para que um vídeo fosse divulgado por um dos whatsapp do Governo, onde um senhor diz que o Exército salvou o Brasil dos comunistas. Uma voz em off diz então “O Exército não quer palmas, o Exército apenas cumpriu o seu papel”. Sem legendas no vídeo, e sem maiores explicações, o Governo jogou mais lenha na polêmica que ele já havia fomentado quando recomendou ao Ministério da Defesa a celebração do dia 31.
Em entrevista à TV na última quarta, Bolsonaro chegou a dizer que o Brasil não viveu ditadura e que o regime teve apenas “alguns probleminhas”. Ele chegou a comparar os anos de chumbo – quando até crianças foram violentadas, sequestradas e mortas e ativistas tiveram animais e insetos inseridos pelos órgãos sexuais –, a um casamento. “Qual casamento é uma maravilha? De vem em quando tem um probleminha”, afirmou. Bolsonaro disse ainda que o fato de os militares terem saído do poder mostra que o regime não existia. “E onde você viu uma ditadura entregar pra oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura”, disse ele, esquecendo que em outras ditaduras aconteceu o mesmo, como no Chile, onde um plebiscito foi realizado em 1988, em pleno regime do General Augusto Pinochet, para perguntar à população se eles queriam a continuidade do regime. Os chilenos disseram não.
No ato do Ibirapuera, em frente ao monumento pelos mortos, os manifestantes repetiam os nomes das vítimas da ditadura seguidos em coro pela palavra “presente”. Marielle Franco e Anderson Gomes também foram mencionados assim como as vítimas de chacinas nas periferias do país. A citação faz alusão à falta de punição a crimes cometidos por policiais e ex-policiais, um entulho da ditadura que o Brasil carrega.
Um dia antes, no estacionamento do 36º DP, um homem carregava um pequeno cartaz onde se lia: Mais de 8.350 indígenas mortos pela ditaduras em apenas dez povos estudados pela Comissão da Verdade. A insistência do presidente Bolsonaro em reduzir o tamanho da tragédia provocada pela ditadura parece atiçar ainda mais aqueles que perderam entes queridos ou foram torturados durante o regime a reforçar a memória dos anos de chumbo, inclusive refazendo as contas da quantidade de mortos que a ditadura brasileira deixou. Pela Comissão Nacional da Verdade, são 434 nomes que o Estado brasileiro executou. Mas, há ainda muitas lacunas abertas sobre o regime.
Foi naquele endereço do 36º que o jornalista Vladimir Herzog teve sua morte forjada, como sendo um suposto suicídio. Passou pelas dependências do DOI também Lucio Belitani, que depois seria encaminhado para o antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde ficou preso dois anos. Viveu os terrores da tortura por oito meses. “Não ficaram sequelas físicas daquele tempo, mas outro tipo de ferida. Em datas como esta, costumo ter pesadelos”, diz ele com os olhos marejados. “A história da ditadura sequer começou a ser contada”, diz Adriano Diogo, lembrando a quantidade de testemunhos que estão gravados nas diversas comissões da verdade que o país abriu. “O Brasil ainda vai brotar”, confia ele, que diz lavar a dor do passado todos os anos em cada ato que participa.
Apesar da resiliência de quem carrega as dores do período militar, o Brasil polarizado com um presidente que minimiza os horrores do período abre espaço para a agressividade quando o tema está em debate. Na avenida Paulista, manifestante pró e contra a ditadura entraram em confronto, como informa a Ponte Jornalismo. Com paus de bandeira, socos, e chutes, os dois grupos se enfrentaram em plena avenida, fechada para lazer aos domingos.
Na porta da delegacia da Vila Mariana, dois investigadores do 36º observavam de longe o ato pelas vítimas. “É importante olhar o passado, os erros, a memória do país”, diz um deles. Mas não escondem que se incomodam pela presença de algumas bandeiras de partido e políticos do PSOL e PT. “Parece oportunismo”, dizem. Tanto ali como no Ibirapuera o grito “Lula livre” foi ouvidos. Com a rejeição ao partido do ex-presidente hoje preso em Curitiba, a pacificação do país para debater a ditadura parece ainda distante.
Do El País