Militante luta por direitos de compensação de atingidos por hidrelétrica; “Se morrer, Estado é responsável” , diz MPF
Igor Carvalho
Brasil de Fato
“Eu tenho medo da maneira que posso morrer, se for uma covardia ou uma traição. Tenho medo da forma que isso pode acontecer”. A frase, dita assim, provoca um frio na espinha. Porém, ao dizê-la, Ana Flávia do Nascimento, de 46 anos, não altera o humor ou o tom de voz. O fatalismo reflete o histórico recente do país, que em 2017, assassinou 71 pessoas em conflitos no campo ou defesa em do meio ambiente, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) de Jaci-Paraná, distrito de Porto Velho, capital de Rondônia, sofre com tentativas ou ameaças de assassinato desde 2016, no contexto da ampliação do reservatório da usina Hidrelétrica de Santo Antônio, que gerou conflitos na região.
A concessionária Santo Antônio Energia, conglomerado formado por Eletrobras Furnas, Odebrecht Energia, Andrade Gutierrez, Cemig e o Caixa FIP Amazônia Energia, é responsável pela hidrelétrica Santo Antônio. Em dezembro de 2018, a companhia assinou um convênio com a Prefeitura de Porto Velho prevendo compensações sociais que somam R$ 30 milhões como forma de reparar a comunidade de Jaci-Paraná, atingida diretamente pelas obras de elevação em 80 centímetros da cota do reservatório da hidrelétrica.
No evento de divulgação da parceria, o município anunciou um projeto de recuperação da região, com “aquisição de agroindústrias de laticínios, caçamba, retroescavadeira, ônibus para transportar alunos, farinheira, revitalização do parque do comércio, dentre outras ações elencadas do convênio”.
As prioridades do prefeito Hildon Chaves (PSDB) não foram aceitas pelos moradores de Jaci-Paraná, que se organizaram e passaram a reivindicar que a comunidade participasse da decisão sobre a destinação dos R$ 30 milhões. Após intervenção do Ministério Público Federal de Rondônia (MPF-RO), que oficiou a Prefeitura, o município foi obrigado a convocar audiências públicas para discutir a compensação social.
“Nós entendemos que existe um direito de consulta à comunidade. Existe um direito de participação da comunidade que está na Constituição e que deve ser respeitado. A Prefeitura não pode fazer o que bem entender, sem consultar os afetados”, afirma Raphael Bevilaqua, Procurador Regional dos Direitos dos Cidadãos do MPF-RO, responsável pela ação.
Desde então, intensificou-se a perseguição a Ana Flávia, que se tornou a referência imediata para as negociações.
“Estou sendo ameaçada pelo fato de estar lutando pelos direitos da comunidade, onde envolve compensações. Agora por último tem R$ 30 milhões em investimento feito em áreas impróprias. A comunidade já perdeu muito com compensações jogadas fora, investidos em lugares errados, elefantes brancos e obras que nunca foram entregues. Então, estamos lutando para que a comunidade tenha realmente seus direitos, que já foram muito violados. Cada vez que estamos em luta, principalmente contra o aumento do lago, isso incomoda e me deixou muito visada”, explica Ana Flávia.
No último 4 de abril, a militante estava na casa de sua filha quando a residência foi cercada por oito homens, que chegaram em dois carros e duas motos. “Eles queriam dar um recado. Se quisessem me matar, teriam matado. Quando a polícia chegou, eles partiram”, lembra.
Ana Flávia contabiliza cinco tentativas de assassinato desde 2016, quando a comunidade começou a questionar os impactos das obras da hidrelétrica na região. Os atingidos afirmam que o solo está encharcado, a floresta morrendo e os pescadores perderam o sustento, por conta da poluição dos rios. À época, por duas oportunidades, a militante voltava de moto para casa usando a rodovia quando carros tentaram arremessá-la para fora da estrada.
Em nota, o MAB afirma que Ana Flávia é ameaçada pelos “mesmos setores que não querem o envolvimento e a participação do povo nas decisões e defendem os interesses do capital na região”. A reportagem do Brasil de Fato apurou que as ameaças são oriundas de políticos e comerciantes da região, que tentam garantir o investimento dos R$ 30 milhões na economia local, à despeito das necessidades da comunidade de Jaci-Paraná.
“O Estado é responsável”
Apesar de ter feito Boletim de Ocorrência das tentativas de assassinato, Ana Flávia, que é mãe de quatro filhos e tem quatro netos, não recebe nenhuma proteção das forças policiais de Porto Velho. No dia 13 de março, em Brasília, dirigentes do MAB se reuniram com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal para notificar o órgão sobre o caso da militante do movimento. Até o momento, não há qualquer medida protetiva que garanta sua vida.
A Secretaria de Segurança Pública de Rondônia, através do secretário adjunto Hélio Gomes, informou que não tem competência para garantir a segurança de Ana Flávia e que não pode se posicionar sobre o caso até que seja concluída a investigação. Fruto dos BO’s registrados pela militante, foi aberto um inquérito para apurar as tentativas de assassinato. José Valney Calixto, delegado da Polícia Civil responsável pelo processo, não quis comentar o caso. “Os inquéritos seguem em sigilo”, encerrou. O consórcio Santo Antônio Energia se manifestou em nota e disse que “ameaças não fazem parte da conduta da empresa e nem de seus administradores.”
Em nota, o MAB criticou os ataques contra Ana Flávia e lembrou do assassinato de Nice de Souza Magalhães em 2016, após liderar a resistência contra as obras da Hidrelétrica de Jirau, em Mutum-Paraná, também distrito de Porto Velho. A militante do movimento desapareceu em 7 de janeiro daquele ano e seu corpo só foi encontrado cinco meses depois.
Bevilaqua criticou a postura dos órgãos e falta de proteção à vítima das ameaças. “A Flávia corre risco de vida e o Estado está ciente. Portanto, qualquer coisa que acontecer com a Flávia, o Estado é responsável.”
Até o fechamento dessa matéria, não conseguimos localizar a assessoria de imprensa da Prefeitura de Porto Velho.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira