Mais recente protagonista do circo de horrores em exibição em tantos países neste momento, o correto entendimento dos horizontes políticos de Jair Bolsonaro é um aspecto crucial da luta política de 2019.
Paulo Moreira Leite
No 247
Desde 1 de janeiro, a democracia e o bem-estar dos brasileiros encontram, no Planalto, um adversário que está longe de ser banal. A prova mais recente ficou clara no debate em torno das universidades públicas, que levou alunos e professores a organizar a paralisação nacional marcada para 15 de maio.
Num editorial (4/5/2019), o Estado de S. Paulo observa que Bolsonaro “mostra desconhecimento, despreza estatísticas e comete erros factuais” em seus tuítes sobre ensino superior no país. Tentando justificar um corte drástico de 30% ele escreveu que “poucas universidades públicas têm pesquisas e, dessas poucas, grande parte está na iniciativa privada.”
O jornal lembra que, entre as 50 universidades brasileiras mais ativas no plano científico, 36 são universidades públicas federais, 7 são universidades públicas estaduais, 5 são institutos de pesquisa ligados ao governo federal, uma é um instituto federal de ensino técnico. Apenas uma entre as 50 é privada.
Sonho de consumo dos vira latas da equipe econômica, a OCDE informa que os gastos do Brasil com ensino superior já são ridiculamente baixos, o que mostra a estupidez de cortar recursos de nossas instituições mais produtivas. Entre 39 países, o Brasil encontra-se no último lugar, com gastos de US$ 3720 por ano por aluno, atrás de Portugal, India, Colombia e Costa Rica — sem falar nos primeiros da lista, Luxemburgo, Estados Unidos e Reino Unido (Blog de Jamil Chade, 4/5/2019).
Embora esses fatos tragam argumentos que, num debate racional, deveriam reduzir o programa de Bolsonaro a pó, é ingenuidade aguardar uma mudança de atitude do governo em função disso. A discussão aqui é outra.
Do ponto de vista do “bolsonarismo”, a destruição das universidades públicas não constitui um acidente de percurso, nem um erro a ser corrigido. Tampouco é uma contingência desagradável imposta por uma conjuntura difícil. Num governo que faz do anti-intelectualismo uma prioridade permanente, é um fim desejado, buscado e justificado por qualquer meio, inclusive a violência e a mentira.
Do ponto de vista do governo, as universidades públicas não passam de aparelhos ideológicos destinados a produzir o “marxismo cultural” e alimentar o “politicamente correto” que constituem o inimigo que precisa ser vencido de qualquer maneira, em nome da prometida reconstrução do país. São centros de doutrinação e formação de quadros.
Nesta visão, em vez de desempenhar um papel inegável no progresso do país, alunos e professores insistem em levar adiante uma atuação nociva na conjuntura brasileira, em linha de continuidade com a postura de crítica e resistência à ditadura de 64 — passado que Bolsonaro e seus aliados protegem e reverenciam em todas as oportunidades, sem esquecer aspectos sórdidos e mais repulsivos.
O básico é compreender que o confronto aqui não se dá no plano das ideias e argumentos que, com base no conhecimento científico e na razão, constituem o saber acumulado e pactuado de uma sociedade ao longo de uma história plural, com avanços, recuos, guinadas e possíveis alterações de rota.
O artigo “Bolsonaro e os Quartéis: a loucura com método”, do professor da UFRJ Eduardo Costa Pinto, debatido numa entrevista a TV 247 disponível no Youtube, mostra qual é o debate real.
A raiz ideológica do governo Bolsonaro é parte de uma doutrina militar herdada da Guerra Fria, a “teoria da guerra revolucionária”. Traduzida e supostamente atualizada pelos ideólogos do ultra-conservadorismo norte-americano que patrocinam o ambiente reacionário de nossos dias, essa visão alimenta-se de dogmas que podem nos parecer — e são — absurdos, sem conexão com realidade brasileira e mundial.
Nas fantasias ideológicas do bolsonarismo, porém, envolvem noções arraigadas e essenciais, a começar pela visão grotesca de que a grande ameaça enfrentada pela humanidade de nossos dias não mudou grande coisa depois do colapso da URSS e da conversão da China à economia de mercado.
Como acontece desde sempre, o perigo se encontra na atividade perversa do velho Movimento Comunista Internacional e seus aliados. Em circunstâncias diversas, impostas pelo colapso da União Soviética, hoje travam uma guerra cultural contra os valores legítimos e autênticos da civilização — e por essa via alcançaram o poder em áreas inteiras do planeta.
Instalada no núcleo que comanda o governo, essa visão tem lá suas nuances mas a força é de caráter absoluto. Não permite o debate que procura consensos e convivências mutuamente enriquecedoras entre contrários — mas exige a eliminação do outro, aqui tratado como inimigo a ser derrotado e eliminado. (A “teoria da guerra revolucionária” era usada para justificar a prática de tortura do Exército francês na guerra Argélia, que depois seria divulgada e ensinada em vários países sul-americanos, inclusive no Brasil do regime militar).
Eduardo Costa Pinto mostra que, embora Olavo de Carvalho seja uma voz barulhenta e influente, o essencial se encontra nas elaborações do general Avellar Coutinho, um dos últimos formulares da extrema direita militar brasileira, referência real do Alto Comando que assistiu e contribuiu para a derrocada de Dilma, a prisão de Lula e a sustentação de Bolsonaro, na eleição e na formação de seu governo.
Cronologicamente, Avellar Coutinho não pode ser descrito como um homem das cavernas. Seus trabalhos mais conhecidos vieram à luz em 2002 e 2003, uma década e meia após o naufrágio da ditadura militar. Pretendem responder a um país que, após oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso, iria enfrentar 14 anos de governos Lula e Dilma, demonstração única de democracia e alternância de poder na história política brasileira — numa transição marcada, sabemos todos, pelos partidos que maior presença possuíam nas universidades públicas do país no período.
A lógica do combate à “guerra revolucionária” é um traço essencial do governo Bolsolnaro e ajuda a entender a reação do ministro Abraham Weintraub diante da reação inconformada das universidades atingidas pelos cortes — eram três, inicialmente. Em vez de abrir o debate o governo aumentou a aposta. Anunciou um corte de igual teor no conjunto das universidades federais, deixando claro que não queria perder a oportunidade de avançar ainda mais num ataque cujo efeito previsível ataque, para paralisar essas instituições no país inteiro.
O deslocamento e por fim destruição das universidades públicas também é a prioridade das forças que sustentam Paulo Guedes e por essa via tentam conectar o apoio à Bolsonaro aos interesses de mercado.
Há mais de meio século elas estão de olho nos centros de excelência do ensino público, principal barreira a sua penetração num país que abriga uma das dez maiores economias do planeta. Grandes multinacionais de educação privada já escancararam o mercado brasileiro em anos recentes. Mesmo atingido parcialmente pela lógica privatizante, o centro nervoso de nosso ensino superior não foi comprometido.
Essa é a fronteira que, no plano cultural e econômico, pretende-se atravessar agora, gerando pelo menos um resultado previsível. Se não for paralisada no curto prazo, em breve a falta deliberada de recursos elevará a pressão para requentar o velho projeto de cobrança de mensalidade nas universidades públicas — cujo resultado, sabemos todos, é recriar o velho elitismo de tempos anteriores aos programas que abriram vagas a estudantes de baixa renda familiar.
O processo de hoje só tem equivalente, no país, aos ataques de envergadura às universidades públicas ensaiados logo após o golpe de 64, os chamados acordos MEC-USAID, repelidos pela vigorosa mobilização da juventude estudantil entre 1966-1968.
Força destrutiva, versão popularizada e vulgar de dogmas políticos, o preconceito é uma vergonha e um insulto na vida cotidiana.
Na luta política, é um instrumento de poder. Empobrece e condiciona o debate. Também conduz a tragédias previsíveis quando chega ao comando do Estado, pois dogmas e preconceitos só podem sobreviver enquanto forem alimentados e reafirmados por medidas concretas — agora com os recursos de governo, que incluem o uso da força para atingir seus fins.
Em seus momentos mais bestiais, estes governos podem superar a própria capacidade de causar dano e produzir o mal, como ensinam as páginas mais dolorosas da história de povos e países.
Alguma dúvida?