Ministério da Saúde veta uso do termo ‘violência obstétrica’

Ministério da Saúde veta uso do termo ‘violência obstétrica’

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Orientação causa reação entre especialistas e grupos de defesa das mulheres

Natália Cancian
Folha

O Ministério da Saúde emitiu um despacho em que defende abolir de políticas públicas e normas o uso do termo “violência obstétrica”, citado frequentemente para definir casos de violência física ou psicológica praticados contra gestantes na hora do parto.

A medida, que indica uma mudança de posicionamento da pasta, tem gerado reação entre especialistas e grupos de defesa das mulheres.

Nos últimos anos, o debate em torno de casos de violência obstétrica ganhou força no país em meio a campanhas a favor do parto normal e do atendimento humanizado —algumas delas abraçadas pelo próprio Ministério da Saúde.

Texto publicado pela pasta em 2017, por exemplo, já citava a existência do problema. “Você sabe o que é violência obstétrica? Pois saiba que até mesmo muitas vítimas desse tipo de abuso também não. Esse tipo de violência atinge boa parte das mulheres e bebês em todo o país.”

Em seguida, o próprio Ministério da Saúde passava a definir a violência obstétrica como aquela que ocorre na gestação ou parto, podendo ser “física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas”.

Entre os exemplos, estão restringir o direito de acompanhante e ao alívio da dor, impedir que mulher se movimente, beba água ou coma alimentos leves durante o trabalho de parto e realizar episiotomia (corte feito entre a região do ânus e da vagina durante o parto normal) quando não há indicação. Entram na lista também ameaças, piadas ou frases desrespeitosas como “na hora de fazer não reclamou”.

Despacho emitido na última sexta-feira (3), porém, adota outra orientação.

No documento, o ministério diz avaliar que o termo “tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério.”

A justificativa, informa, estaria na definição do termo violência pela Organização Mundial de Saúde, que “associa claramente a intencionalidade com a realização do ato, independentemente do resultado produzido.”

“Percebe-se, desta forma, a impropriedade da expressão ‘violência obstétrica’ no atendimento à mulher, pois acredita-se que tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”, informa.

No despacho, a pasta afirma ainda trabalhar para qualificar o cuidado das mães e diminuir os índices de mortalidade materna e infantil. Por conta disso, defende adotar estratégias para abolir o uso da expressão “com foco na ética e na produção de cuidados em saúde qualificada”.

A divulgação do posicionamento, no entanto, tem gerado polêmica entre especialistas e grupos em defesa das mulheres.

Para a médica Sônia Lansky , que foi uma das coordenadoras regionais da pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, que entrevistou mais de 23 mil mulheres sobre a assistência ao parto no Brasil, excluir o uso do termo pode soar como uma forma de censura institucional.

Ela lembra que o termo violência obstétrica está consolidado em literatura científica —neste sentido, diz, não haveria como aboli-lo. Alguns países, como Venezuela e Argentina, possuem legislações sobre o tema desde 2007.

“Não há como cercear a liberdade de informação e como as mulheres identificam esse tipo de violência. É um problema de grande relevância em saúde pública. O ideal seria discutir porque esse incômodo tão grande e esclarecer que não é dirigido a ninguém em específico mas à situação da violência obstétrica. É uma violência estrutural”, diz.

Segundo ela, dados da pesquisa dão pistas do tamanho do problema no país.

Um exemplo é que, entre as entrevistadas que tiveram parto normal, 53,5% sofreram episiotomia —enquanto registros na literatura apontam que esse procedimento seria necessário em menos de 10% dos casos. Outras 36% sofreram manobra de Kristeller, pressão no útero para saída do bebê, a qual é contraindicada pelo Ministério da Saúde.

Também foi alto o índice de mulheres sem acesso à presença contínua de acompanhante, assegurada por lei.

Para Débora Diniz, do Instituto Anis Bioética, Direitos Humanos e Gênero, organização que atua em defesa dos direitos das mulheres, o novo posicionamento do ministério representa uma tentativa do governo de negar a existência do problema.

“A retirada dessa palavra de uma política de governo é uma tentativa de silenciar o que acontece nesse momento da vida das mulheres. É o mesmo que ignorar e considerar que isso não existe”, afirma.

Segundo ela, a medida deve trazer impacto às mulheres vítimas desse tipo de violência. “É um documento que tem um impacto simbólico muito importante, de o Estado dizer que não reconhece essa experiência e a forma como você a expressa. É também um sinal de onde estão as prioridades do Ministério da Saúde no cuidado das mulheres”, diz.

Em nota, o Ministério da Saúde diz que o posicionamento foi feito a pedido de entidades médicas e segue pareceres destas entidades.

Um exemplo é um documento do Conselho Federal de Medicina, emitido no ano passado e que passou a recomendar que a expressão não fosse utilizada, por considerar que seu uso “tem se voltado em desfavor da nossa especialidade, impregnada de uma agressividade que beira a histeria, e responsabilizando somente os médicos por todo ato que possa indicar violência ou discriminação contra a mulher.”

À Folha o relator, Ademar Carlos Augusto, diz ter elaborado o documento devido à proliferação de propostas de leis sobre violência obstétrica.

“O que a gente percebe é que existe um movimento orquestrado de algumas instituições de trazer para o médico obstetra a responsabilidade pela situação caótica que está a assistência à gestante”, diz ele, para quem a definição tem “viés ideológico”.

“Essa discussão veio importada de países com viés socialista, e o Brasil também adotou”, diz, em referência às leis da Argentina e Venezuela.

Ainda segundo Silva, além da interpretação pejorativa, há risco de superdimensionar o problema. “Tudo isso são discursos que a gente, quando vai para a prática, [vê que] não correspondem à realidade”, diz ele, para quem os casos estão relacionados não a uma situação específica, mas à desorganização do sistema de saúde como um todo.

Já para Aguinaldo Lopes da Silva, vice-presidente da Febrasgo (federação que reúne associações de ginecologistas e obstetras), é preciso reconhecer que há problemas na assistência às gestantes do país. A adoção de outro termo, diz, seria apenas para deixar de vinculá-los apenas aos obstetras.

“Não negamos que o problema exista. Somos contra qualquer tipo de violência contra a mulher em qualquer situação. A grande questão é atribuir uma relação ao obstetra em situações em que isso ocorra”, diz.

No ano passado, no entanto, a federação publicou um documento que reconhecia o uso do termo.

“Assumir a violência obstétrica como uma realidade a ser enfrentada não enfraquece os obstetras como categoria profissional. Ao contrário, a fortalece, uma vez que os profissionais de saúde também estão expostos a prejuízos oriundos da mesma estrutura que sustenta a institucionalização de práticas violentas contra as mulheres”, dizia o parecer assinado pela presidente da Socego (Associação Cearense de Ginecologia e Obstetrícia), Liduina Albuquerque Rocha de Souza.

“Como médicos obstetras temos uma grande oportunidade em mostrar as mulheres que estamos ao lado delas na busca por uma assistência obstétrica de qualidade.”

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