Quando as fronteiras do viver são as fronteiras do ser e do não ser

Quando as fronteiras do viver são as fronteiras do ser e do não ser

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247, por Boaventura de Sousa Santos – Vivemos num tempo de abolição de fronteiras ou num tempo de construção de fronteiras? Se tivermos em conta dois dos poderes ou instrumentos que mais minuciosamente governam as nossa vidas – o capital financeiro e a internet – é inescapável a conclusão de que vivemos num mundo sem fronteiras. Qualquer tentativa de qualquer dos 195 estados que existem no mundo para regular estes poderes será tida como ridícula.

No actual contexto internacional, a avaliação não será muito diferente, se a regulação for levada a cabo por conjuntos de estados, por mais ominoso que seja o provável desenlace da falta de regulação. Por outro lado, se tivermos em conta a incessante construção ou reafirmação de muros fronteiriços, facilmente concluímos que, pelo contrário, nunca as fronteiras foram tão mobilizadas para delimitar pertenças e criar exclusões. Os muros entre os EUA e o México, entre Israel e a Palestina, entre a Hungria e a Sérvia, entre a Crimeia e a Ucrânia, entre Marrocos e o povo saharaui, entre Marrocos e Melila/Ceuta aí estão a afirmar o dramático impacto das fronteiras nas oportunidades de vida daqueles que as procuram atravessar.

Esta ambivalência ou dualidade do nosso tempo não é nova. Para nos restringirmos ao mundo ocidental, podemos dizer que ela existe desde o século XV, no momento em que a expansão transatlântica europeia obriga a vincar os poderes gémeos de eliminar e de criar fronteiras. O Tratado de Tordesilhas de 1494 regulava a liberdade marítima dos reinos de Portugal e de Castela, ao mesmo tempo que excluía os outros países do comércio oceânico, o mare clausum. Quando, em 1604, lhe contrapõe a doutrina do mare liberum, Hugo Grotius tem em vista disputar as fronteiras existentes para as substituir por outras, mais condizentes com as aspirações da emergente Holanda. Na mesma lógica de conveniências, Francisco de Vitória, ao mesmo tempo que defendia a soberania dos países ibéricos, defendia que o direito de livre comércio se sobrepunha a qualquer pretensão de soberania dos povos das Américas. Desde o Renascimento do séc. XV até ao Iluminismo do séc. XVIII vai-se afirmando a universalidade sem fronteiras da humanidade e do conhecimento, ao mesmo tempo que se vão vincando as fronteiras entre civilizados e selvagens, entre colonizadores e colonizados, entre livres e escravos, entre homens e mulheres, entre brancos e negros. Immanuel Kant advoga a ideia do Estado universal, berço de todo o cosmopolitismo eurocêntrico, um século depois de a Europa se ter retalhado entre países soberanos no Tratado de Vestefália de 1648. Foi essa a única forma de garantir a coexistência pacífica entre poderes e religiões que se tinham guerreado de modo bárbaro na guerra dos trinta anos onde morreu um milhão de pessoas. Um século depois de Kant, as potências europeias, apostadas em garantir a expansão sem limites do capitalismo emergente, reúnem-se em Berlim para desenhar as fronteiras na partilha de África, sem que obviamente os africanos sejam ouvidos. O relato poderia continuar com a instabilidade crónica das fronteiras da Europa de Leste e dos Balcãs e a massiva deslocação forçada de populações decorrente do colapso do império Otomano. Por sua vez, nos nossos dias, o espaço Schengen ilustra bem como o mesmo poder pode simultaneamente eliminar e criar fronteiras. Enquanto, para os europeus incluídos, este espaço tornou as fronteiras internas num antiquado impedimento felizmente superado, para os não-europeus, as fronteiras externas tornaram-se uma montanha opaca e burocrática, quando não um pesadelo kafkiano.

Todas as situações conduziriam à mesma conclusão: as fronteiras são instrumentais e são sempre expressão do poder de quem as define. Por sua vez, a violação das fronteiras ou é expressão de um poder emergente que se pretende sobrepor ao poder existente, ou é expressão daqueles que, sem terem poder para redefinir ou eliminar as fronteiras, as atravessam sem autorização de quem as controla.

Sendo instrumentais, as fronteiras são muito mais que linhas divisórias geopolíticas. São formas de sociabilidade, exploração de novas possibilidades, momentos dramáticos de travessia, experiências de vida fronteiriça, linhas abissais de exclusão entre ser e não ser, muros de separação entre a humanidade e a sub-humanidade, tempos-espaços de exercício de poder arbitrário e violento. Neste domínio, o que melhor caracteriza o nosso tempo é a diversidade de experiências de fronteira, a aceleração dos processos sociais, políticos e culturais que erigem e derrubam fronteiras, a valorização epistemológica do viver e pensar fronteiriços e os modos de resistência contra fronteiras consideradas arbitrárias ou injustas. Vejamos algumas situações paradigmáticas. A travessia das fronteiras tanto pode ser uma experiência banal, quase irrelevante, como uma experiência violenta, degradante, em que a única banalidade é a do horror quotidiano. Do primeiro caso são paradigmáticas as travessias quotidianas, para comércio e convivialidade, das comunidades africanas que foram separadas por fronteiras arbitrárias depois da Conferência de Berlim em 1894-95; dos povos indígenas da Amazónia que têm parentes dos dois lados da fronteira dos vários países amazónicos; ou das “gentes da raia” entre Portugal e a Espanha (sobretudo na Galiza). No segundo caso, há que distinguir entre travessias quotidianas e de duplo sentido e as travessias singulares ou as experiências reiteradas e frustradas das travessias imaginadas, umas e outras como de sentido único. Das primeiras são paradigmáticas as travessias quotidianas dos palestinianos a caminho do trabalho em Israel, através dos infames check-points, onde podem passar horas ou não passar, em qualquer caso vítimas do mesmo poder violento, arbitrário e totalmente opaco. Das segundas são paradigmáticas as travessias logradas ou frustradas dos milhares de emigrantes, ou melhor, de fugitivos da fome, da miséria, das guerras e das mudanças climáticas que atravessam a América Central a caminho dos EUA, ou naufragam no Mediterrâneo ao cruzá-lo a caminho da Europa. Nestas travessias, as temporalidades históricas tanto se dramatizam como perdem sentido. Estes peregrinos da desherança moderna, capitalista, colonial e patriarcal, fogem para o futuro ou fogem do futuro? Vêm do passado ou vão para o passado? São filhos da espoliação colonial que tentam libertar-se da devastação que ela criou ou são projectos de carne jovem para reescravizar, desta vez nos interiores das fachadas das avenidas do glamour metropolitano, e já não nos campos de extermínio nas plantações das colónias?

A sociabilidade de fronteira tanto pode resultar do exercício permanente de deslocação das fronteiras, como da vida suspensa junto a fronteiras fixas e bloqueadas, muros de cimento ou redes de arame farpado. No primeiro caso, a fronteira é definida e deslocada por quem tem poder para tal. É paradigmática a experiência de pioneiros, bandeirantes, emigrantes que, ao longo dos séculos de expansão colonial, foram invadindo e colonizando os territórios dos povos nativos. Por ter acontecido num contexto supostamente pós-colonial, a experiência do Far West norte-americano é particularmente reveladora da linha abissal que a fronteira vai desenhando entre as zonas de ser e a zonas de não ser, como diria Frantz Fanon. Do lado de cá da linha, sempre em movimento, está a sociabilidade dos pioneiros, uma sociabilidade de tipo novo caracterizada pelo uso selectivo e instrumental das tradições e a sua mistura com a criatividade das invenções de convivência que o novo contexto exigia, pela pluralidade de poderes e hierarquias débeis entre os diferentes grupos de pioneiros, pela fluidez das relações sociais e a promiscuidades entre estranhos e íntimos. Do outro lado da linha estão os índios, os donos do território, que os pioneiros convertem em seres inferiores, indignos de tanta abundância, obstáculos ao progresso, a serem superados com a inexorável conquista do Oeste. De um lado da fronteira, a convivência, do outro, a violência. A matriz moderna da construção paralela de humanidade e de desumanidade tem aqui uma das suas mais dramáticas e violentas ilustrações.

Por sua vez, a sociabilidade das fronteiras bloqueadas está hoje bem presente nos campos de internamento de refugiados que se vão multiplicando em vários países europeus e em países associados para o efeito, como é o caso da Turquia. São, na verdade, campos de concentração dos novos presos políticos do nosso tempo, os presos políticos do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado, populações consideradas descartáveis ou sobrantes para estas três formas de dominação moderna que hoje parecem mais agressivas que nunca.

As fronteiras são as feridas incuráveis e expostas de um mundo sem fronteiras. O único motivo de esperança que elas nos permitem é a emergência de movimentos e associações de jovens que se rebelam contra as fronteiras e se solidarizam activamente com as lutas dos migrantes e refugiados. Não praticam ajuda humanitária, envolvem-se nas suas lutas, facilitam a comunicação entre os migrantes, exploram meios legais e ilegais de os libertar destas infames prisões. Estes jovens constituem a melhor manifestação da desesperada esperança do nosso tempo.

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