Professora de direito constitucional escreve que decreto de Bolsonaro fere a autonomia universitária prevista na Constituição
Revista Piauí
Eloísa Machado
Um novo decreto editado pelo presidente da República, a pretexto de estabelecer regras para nomeação de cargos na administração pública federal, coloca a autonomia das universidades em xeque.
Publicado no Diário Oficial da União em 15 de maio de 2019, o decreto 9.794/2019 “dispõe sobre os atos de nomeação e de designação para cargos em comissão e funções de confiança de competência originária do presidente da República e institui o Sistema Integrado de Nomeações e Consultas – Sinc no âmbito da administração pública federal”.
Dentre as suas disposições, o decreto diz que caberá à Casa Civil promover a nomeação ou exoneração de cargo equivalente ao nível de vice-reitor e pró-reitor (artigo 4º, I do decreto) e dá à Secretaria de Governo ou ao ministério da Educação o poder de avaliar as indicações para o “provimento de cargos e funções cuja competência de nomeação esteja no âmbito das instituições federais de ensino superior” (artigos 22 e 15, V, b do decreto), e “decidir pela conveniência e oportunidade administrativa quanto à liberação ou não das indicações submetidas à sua avaliação” (artigo 22, II do decreto).
Tal como redigido, o decreto permite dizer que, na prática, reitores não poderão escolher seus colaboradores, já que caberá essencialmente ao governo decidir quais pessoas ocuparão os cargos diretivos internos à Universidade. Se esta interpretação estiver correta, este decreto fere a autonomia administrativa das universidades e pode ser declarado inconstitucional.
A autonomia universitária foi incorporada à Constituição como forma de garantir a pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas, e de preservar a liberdade de ensino e pesquisa. Ter autonomia financeira e administrativa é um meio para realização da autonomia didático científica, como já afirmou, diversas vezes, o Supremo Tribunal Federal.
Atualmente, a escolha de reitores das universidades se dá por lista tríplice formada a partir da vontade de docentes, servidores e alunos, processo alinhado à noção de que os objetivos da universidade serão melhor atingidos se houver autogoverno. Tudo isso será desprezado se os reitores não puderem implementar suas ideias e não tiverem poderes para escolher seus colaboradores. A eleição vira um faz-de-conta e o cargo vira decorativo.
Este decreto é mais entre outros atentados à autonomia das universidades. Em março de 2019, também através de decreto, o presidente extinguiu cargos de direção, funções comissionadas de coordenação e outras gratificações a professores, somando mais de 13 mil afetados.
Mais recentemente, o presidente e seu ministro da Educação anunciaram um corte severo no orçamento das universidades, colocando em risco o funcionamento de laboratórios, centros de pesquisa, hospitais universitários.
Juntas, estas medidas são uma grave afronta à autonomia das universidades. Esmagar financeiramente e controlar administrativamente as universidades significará, certamente, redução da autonomia didático-científica. Que pesquisa se faz com laboratórios fechados, bolsas cortadas e sem coordenação?
O alvo não são apenas as universidades. A estes decretos somam-se outros editados pelo presidente com o mesmo descompromisso constitucional.
Logo no início do governo, um decreto procurou limitar o acesso à informação, permitindo que mais servidores decretassem sigilo de documentos. A medida foi derrubada pelo Congresso Nacional. Semana passada foi editado o decreto pelo presidente da República que amplia a possibilidade de porte de arma para inúmeras categorias profissionais, esvaziando o Estatuto do Desarmamento, já declarado constitucional pelo Supremo. O decreto está sendo questionado no Judiciário.
Para além do conteúdo das medidas ser contrário à Constituição e desafiar a autoridade do Supremo, a sua forma também indica problemas. A autorização para que o chefe do poder Executivo legisle é excepcional. No caso de decretos, estes só terão valor se seguirem os estritos limites autorizados pela lei e pela Constituição. Medidas provisórias, por sua vez, só podem ser editadas em casos de relevância e urgência.
Um governo baseado em decretos e medidas provisórias mostra incapacidade de estabelecer o diálogo e compor sua base com o Congresso Nacional e de se expor ao escrutínio dos parlamentares e da sociedade. O atalho encontrado pelo governo para fugir dos custos impostos pelas negociações políticas é abusar de poder.
Editar decretos sabidamente inconstitucionais e esperar que os controles funcionem não condiz com o dever do presidente da República respeitar e fazer cumprir a Constituição, compromisso assumido no momento de sua posse. Estamos diante de um governo inconstitucional.