A ESCRAVIDÃO INTERROMPEU a história da África e de seus descendentes, roubando séculos de produção intelectual em troca de trabalho forçado. O Brasil só aboliu a escravidão há menos de 131 anos e é natural ver alguns nomes de heróis afro-brasileiros sendo reconhecidos cada vez mais no panteão da pátria, um memorial cívico inaugurado em 1986 para homenagear personalidades brasileiras.
No The Intercept, por Ale Leão
No “Livro dos heróis e heroínas da pátria”, já constam nomes como Luís Gama, Anita Garibaldi, Zumbi dos Palmares e Heitor Villa-Lobos. Recentemente, o Senado aprovou a inclusão de duas lideranças negras: Dandara, líder quilombola que articulava as estratégias de Palmares ao lado do marido, Zumbi, e Luia Mahin, considerada uma das maiores lideranças negras contra a escravidão na Bahia do século 19, mãe do abolicionista Luís Gama. Ambas são símbolos da luta feminina contra a escravidão.
Assim como a maior parte dos personagens negros, o nome dessas duas guerreiras é envolto em polêmica. Historiadores desconectados da realidade negra questionam as fontes que comprovam a existência dessas mulheres porque só há relatos esparsos das suas vidas. Ambas acabaram alvos do desinteresse de historiadores da época, e ainda hoje existe uma dificuldade imensa em recuperar suas biografias por não haver um esforço em catalogar e analisar a tradição oral como fonte historiográfica. A maior parte da vida de Dandara, por exemplo, sobreviveu na forma de lendas, segundo a Fundação Palmares. Não há registros do local onde nasceu, tampouco da sua ascendência africana.
Não sobraram evidências físicas sobre a Dandara após o ataque a Palmares. Nos poucos registros, sabe-se que ela chegou no quilombo ainda menina e participava tanto das atividades corriqueiras, como caça ou agricultura, quanto das atividades de defesa e combate pelo quilombo. Ao ser presa, em 1694, decidiu que nunca seria escravizada e se jogou de uma pedreira para o abismo.
A mãe de Luís Gama é tratada da mesma maneira pela história. Não existem registros oficiais de suas participações nos levantes baianos. O primeiro documento que descreve Luisa é uma carta do abolicionista endereçada ao jornalista Lúcio de Mendonça. A existência de Luisa Mahin é comprovada na descrição de seu filho Luís Gama.
Segundo a historiadora Ligia Fonseca Ferreira, “a riqueza de detalhes e o testemunho pessoal atribuem veracidade a narração de Gama, ampliando as possibilidades de aceitação da personagem”. Luisa pertencia à nação nagô-jeje, originária do Golfo do Benin. Era do povo Mahin, daí seu sobrenome. Ela sempre negou o batismo e manteve suas tradições africanas acima das doutrinas cristãs. Sua casa teria sido o quartel general da Revolta dos Malês em 1835.
A falta desses registros em papel, que nunca seriam obtidos de modo fácil ou que sequer existam, gera um questionamento que, a meu ver, é a face de um preconceito secular na historiografia, tema abordado em “História Geral da África I” por Joseph Ki-Zerbo, um dos mais respeitados historiadores africanos. Segundo Ki-Zerbo, os estereótipos raciais criadores de desprezo estão tão profundamente consolidados que corromperam inclusive os próprios conceitos da historiografia.
A inscrição dessas duas mulheres no panteão da pátria não é apenas um reconhecimento das figuras históricas, mas significa uma pequena ruptura na historiografia com viés colonial, um passo em direção a valorização da tradição negra-brasileira como uma entidade histórica. Isso contribui para a construção e fortalecimento da consciência étnica do povo afro-brasileiro. Sem isso, negros e indígenas seguirão a mercê da visão de quem os manteve cativos, exatamente como diz um famoso ditado africano: “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça seguirão glorificando o caçador.”
Negros que não se achavam negros
Esses estereótipos a que Ki-Zerbo se refere surgiram de forma mais intensa nas produções brasileiras do século 19. Apesar da existência de uma pequena e importante elite intelectual negra, representada por nomes como André Rebouças, Joaquim Nabuco e Machado de Assis, ela estava envolta em uma sociedade em busca do branqueamento. Joaquim Nabuco, por exemplo, sequer se considerava negro e dizia que Machado de Assis também não era. O racismo influenciou, portanto, toda a produção de história daquele período.
O médico Raimundo Nina Rodrigues – que dá nome até hoje ao IML de Salvador e a um hospital em São Luís do Maranhão – se tornou um dos maiores expoentes do preconceito racial. Em sua obra “Os africanos no Brasil”. publicada em 1932, defendeu que, apesar de um mestiço ou negro livre parecer inteligente, não se pode esquecer da sua condição e realidade social:
“Não o pode deter a confusão pueril entre o valor cultural de uma raça e as virtudes privadas de certas e determinadas pessoas. Se conhecemos homens negros ou de cor de indubitável merecimento e credores de estima e respeito, não há de obstar esse fato o reconhecimento desta verdade — que até hoje não se puderam os negros constituir [sic] em povos civilizados.”
É possível encontrar trechos de livros ou matérias de jornais expressando o preconceito de maneira descarada durante toda a fundação da República e mesmo depois. É muito difícil imaginar qualquer autor, historiador e antropólogo vivendo no início da República ou sendo influenciado por grandes personalidades (eugenistas) brasileiras, sem que tenha absorvido sua apatia, preconceito e desprezo pela produção cultural da diáspora negra – vide Gilberto Freyre descrevendo de forma fria e quase romantizada as relações de estupro e abusos recorrentes durante a colonização.
Apesar disso, ainda podemos festejar o dia 21 de março de 1997 como um ponto de virada para nós, quando Zumbi dos Palmares teve seu nome escrito como herói no panteão. Sua inclusão não significava apenas a valorização de um dos líderes da revolta afro-brasileira contra a escravidão colonial, mas o reconhecimento da importância das tradições orais do povo preto em nossas terras. Zumbi ainda sofre com o fato de a maioria das coisas escritas sobre sua vida venham de quem odiava a resistência quilombola. Sua biografia vem de registros em crônicas ou notícias trazidos por holandeses, um manuscrito chamado de “Relação das guerras feitas aos Palmares de pernambuco no tempo do governador D. Pedro de Almeida de 1675 a 1678” e uma descrição em diário de uma expedição que teria visitado uma das possíveis Palmares.
Talvez o racismo dos historiadores de ontem não seja expresso de forma tão direta atualmente, mas os estereótipos raciais ficaram impregnados na pesquisa histórica e na forma padrão de construção do conhecimento historiográfico, construída durante a colonização. Ela determinou o que era civilizado e o que era selvagem. Assim, exterminou outras formas de conhecimento. O professor Boaventura de Santos Souza chama isso de “epistemicídio”. Para ele, “o conhecimento eurocêntrico nas ciências sociais e aliado às outras ciências […] foi construído para não valorizar essas outras experiências”.
Isso impacta diretamente no julgamento de quem olha para a cultura africana sem considerar a tradição oral, que é a principal forma de manutenção da memória popular de quase todo o continente e se contrapõe à historiografia tradicional fundada sobre a escrita. Sem uma tradução intercultural, o historiador pode considerar personagens da história negra como “mito ou folclore” apenas por não encontrar evidências escritas e detalhadas sobre os personagens. Mas é preciso levar em conta que, para os povos ancestrais em África, a palavra falada é um documento muito mais importante a qualquer outro registro talhado em pedras.
Ynaê Lopes dos Santos, autora de “História da África e do Brasil Afrodescendente”, diz que há séculos a historiografia ocidental tem grande dificuldade em trabalhar com a tradição oral, pois o advento da escrita foi tomado como o grande marco a partir do qual a humanidade passou a ter história. “Durante muitos anos, essa perspectiva historiográfica esteve a serviço de projetos imperialistas e colonialistas europeus que tomavam a ausência da escrita como um sinal de ‘não desenvolvimento’ dos povos ágrafos, sem considerar que até pouco tempo atrás grande parte da população da Europa era analfabeta”, disse.
A historiadora acredita que a tradição oral de povos africanos, indígenas e de regiões da Ásia e a Oceania deixou de ser estudada como deveria, pois todas elas receberam “premissas e perspectivas eurocêntricas”. Além dessa análise comprometida e apressada, esses povos foram reduzidos ao nível de “primitivos” e não despertaram interesses em historiadores formados com base nessas perspectivas tradicionais eurocentradas.
Mas transformações nas primeiras décadas do século 20, diz Santos, como a Escola dos Annales, passou a discutir o quanto inviolável eram os documentos escritos. “Passou-se a questionar que mais do que ‘contar a verdade’, esses documentos apontavam versões sobre um determinado momento histórico, e que era necessário ampliar o escopo das fontes, cruzá-las e confrontá-las para que pudéssemos ter uma visão mais aproximada de fatos, eventos e personagens do passado”, explica.
Mas modificar um pensamento que moldou a produção de história por séculos e se tornou hegemônico é um processo intenso e vagaroso. A Unesco, por exemplo, levou mais de três décadas para reunir mais de 350 especialistas, coordenados por 39 historiadores – um deles Ki-Zerbo –, que revisitaram fontes, perspectivas e colheram fontes de tradição oral, manuscritos inéditos e promoveram uma discussão sobre a metodologia para contar a história da África.
A obra, iniciada em 1969, só foi publicada no Brasil em 2010 em uma agenda aberta em 1988, quando a nossa Constituição reconheceu, enfim, a desigualdade racial e criminalizou o racismo. Com esse feito, o governo abriu a possibilidade de se questionar a existência do racismo em todas as dimensões sociais, como na própria produção de história.
Infelizmente, apesar de mantermos uma das maiores populações negra do mundo, nosso país não investiu como a Unesco em um projeto para dizimar da historiografia nacional os estereótipos raciais e a visão eurocêntrica que a constituiu. Mas a empreitada da Unesco foi traduzida ao português durante a gestão de Fernando Haddad no MEC.
Também tem crescido os esforços de pesquisadores independentes, com iniciativas isoladas em universidades e instituições nacionais. Recentemente, a Faculdade Zumbi dos Palmares lançou a campanha “Machado de Assis Real”, visando reparar a injustiça histórica que branqueou o autor e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. A inclusão de Dandara e Luisa Mahin no panteão da pátria também pode ser encarada como parte da reconstrução de um imaginário negado a um povo escravizado por séculos. A luta segue.