Frase é do presidente em exercício do Sindicato dos Motoristas de Ônibus de São Paulo. Paralisação geral está convocada para o dia 14
Na Carta Capital
Cristina Tapia Poblete trabalhou dos 20 aos 66 anos e então se aposentou pela Universidade do Chile. Na ativa, ganhava o suficiente para sentir-se da classe média. Agora vive com um terço do salário e a sensação de ter empobrecido. Em seu país, as aposentadas recebem, em média, 28% do holerite de quando ralavam. Os homens, 35%. É o resultado de uma experiência pioneira no mundo, levada adiante nos anos 1980.
O sistema público de previdência, em que os empregados do presente e seus patrões pagam a aposentadoria dos trabalhadores de ontem, deu lugar à capitalização. Nesta, é cada um por si: a pessoa guarda 10% do salário em uma conta e espera o dinheiro render até o dia de aposentar, e aí descobre quanto embolsará. Uma merreca no Chile, 60% do salário mínimo. “Uma política pública não pode mudar assim o nível de vida das pessoas, é uma queda muito drástica”, diz Cristina, que ressalta: os bancos que guardam a poupança forçada dos chilenos não reclamam de nada. Lambuzam-se em lucros ao emprestar ou investir o dinheiro.
Presidente da associação dos inativos em seu país, Cristina acredita que previdência é um assunto que deveria ser “visto mais com o coração”. É mais ou menos isso o que trabalhadores brasileiros de diversas categorias vão cobrar em 14 de junho. Será dia de uma greve geral, convocada em 1o de maio por todas as centrais sindicais. Elas não aceitam a tentativa do governo de criar um sistema de capitalização e de dificultar o acesso da população às aposentadorias, ao abono salarial e aos benefícios assistenciais pagos a idosos e portadores de necessidades especiais. Para os sindicalistas, a reforma proposta por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes terá o mesmo efeito da promovida no Chile por um ídolo da dupla, o finado ditador Augusto Pinochet: prejudicar a baixa renda e favorecer os bancos. Com a paralisação, os sindicalistas desejam influenciar o Congresso.
“Esperamos que os deputados e senadores entendam que, se votarem o fim da Previdência pública e a capitalização, não vão ser reeleitos”, afirma o presidente da CUT, Vagner Freitas.
Os dirigentes das centrais estão otimistas e apostam que, no mínimo, repetirão o tamanho da greve geral de 28 de abril de 2017, realizada no governo Michel Temer contra a reforma trabalhista e um projeto de reforma da Previdência que igualmente limitava o acesso aos benefícios do INSS. Na época, os sindicalistas festejaram o que diziam ter sido o maior dia de braços cruzados da história do País, embora o governo, o Congresso e os principais órgãos de comunicação tenham minimizado. Foi uma greve exitosa em parte. Três meses depois, Temer sancionava uma nova lei trabalhista, mas as mudanças previdenciárias empacaram, até por ter estourado em seguida o escândalo JBS/Friboi, que quase derrubou o emedebista.
A greve de agora teve uma preparação melhor, mais debates estaduais prévios, aproximação entre categorias, uma organização favorecida pelo espírito de união entre as centrais. Na quinta-feira 6, os sindicalistas e seus aliados nos movimentos sociais apoiadores da paralisação, como os sem-terra e os sem-teto, começaram a distribuir panfletos para fazer a cabeça do povão. A papelada diz que impor idade mínima de 65 anos a homens e 62 a mulheres acaba com a chance de aposentadoria dos mais pobres, que trabalham desde cedo e morrem antes. Que quem conseguir chegar à inatividade, ganhará menos do que hoje. E que, com a capitalização, uma pessoa que guardar 100 reais por mês durante 35 anos receberá 235 reais de aposentadoria, cerca de um quarto do salário mínimo.
Haverá uma adesão significativa, como esperam as centrais? Algo parecido com a greve geral de 29 de maio que parou a Argentina, onde Bolsonaro esteve na quinta-feira 6 para encontrar Mauricio Macri, presidentes que encaram a retração da economia de seus países e protestos de rua? Os metalúrgicos do ABC paulista decidiram parar. Os bancários de São Paulo farão uma assembleia dia 11 e tendem a entrar. Petroleiros e eletricitários, que estão em negociação salarial com a Petrobras e a Eletrobras, ouvem ofertas insatisfatórias e têm aprovado indicativos de greve em assembleias estaduais. Idem os trabalhadores do Porto de Santos, o maior do País. Os professores da rede pública, em guerra particular com o governo graças aos cortes de verbas por parte do MEC e por serem alvo específico da reforma, inclinam-se à paralisação.
“Favorecemos ricos, brancos e homens quando a maioria é de mulheres, negros e pobres”, afirma Moreira
A adesão mais importante é a de metroviários e motoristas de ônibus. As duas categorias bateram o martelo na terça-feira 4. Se de fato pararem, muita gente cruzará os braços involuntariamente, por falta de condução para trabalhar, como foi em abril de 2017. “A luta contra a reforma da Previdência é de todos os trabalhadores, mas nós temos mais responsabilidade: a gente para as cidades”, diz Wagner Fajardo Pereira, um dos coordenadores do Sindicato dos Metroviários de São Paulo.
Segundo ele, os metrôs de São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Salvador e Porto Alegre vão parar o dia todo. No Rio, a situação é mais complicada para os grevistas, pois o metrô é privado. Em Brasília, os metroviários estão em greve desde 2 de maio, por aumento de salário, trabalham apenas em parte da manhã e do fim da tarde/início da noite, e devem continuar dia 14.
“A greve geral vai mostrar ao governo que precisa debater antes com os trabalhadores, que são os primeiros a acordar para produzir riqueza neste país. Esta reforma vai tirar dos pobres para dar aos ricos, aos banqueiros. Tinha era que tirar dos ricos”, afirma Valmir Santana da Paz, o Sorriso, presidente em exercício do Sindicato dos Motoristas de Ônibus de São Paulo. Segundo ele, os condutores estão rumo à greve em vários estados e, às vésperas da paralisação, divulgarão uma carta aberta à população para explicar seus motivos.
A forma de paralisação (se total ao longo do dia 14 ou apenas em alguns momentos do dia) será definida dias antes da greve. Representantes de metroviários e de motoristas de ônibus fizeram um ato público no Congresso um dia depois de as categorias resolverem cruzar os braços. Em seguida, entregaram um manifesto a Rodrigo Maia, presidente da Câmara, onde a reforma tramita atualmente. Líder da recém-lançada Frente Parlamentar dos Trabalhadores em Transportes, o deputado Valdevan Noventa, do PSC de Sergipe, ex-presidente do Sindicato dos Motoristas de São Paulo, prometia passar a segunda-feira 10 a gravar vídeos convocatórios da paralisação, para distribuir pelas redes sociais. “É maldade pura, é a reforma da mentira, da enganação. O projeto é para acabar de vez com a Previdência pública. E os sonegadores? O trabalhador é quem menos tem culpa pelo déficit”, afirma.
“Mentira”, diz o deputado, “verdade” bem explicada pela mídia, declarou no Senado o secretário de Comunicação Social do Palácio do Planalto, Fábio Wajngarten. Números do governo jogam contra a propaganda oficial de que a reforma combate privilégios e rateia a conta por todos. O governo calcula poupar 1,2 trilhão de reais em dez anos. Só 18%, 224 bilhões, resultarão de mudanças na aposentadoria dos servidores federais, donos de salário gordo. Em uma proposta paralela, a economia com militares será de 10 bilhões.
Um milhão de servidores e militares ganham, em média, 8,5 mil mensais de aposentadoria. Mais de 80% da conta da reforma será dos mais pobres, um exército bem maior. O INSS paga 20 milhões de benefícios urbanos e 9 milhões de rurais um benefício médio de 1,4 mil. Impor idade mínima e pagamento menor às aposentadorias fará o INSS poupar 744 bilhões. No BPC, um salário mínimo pago a 4,7 milhões de idosos e deficientes, haverá economia de 34 bilhões. Restringir o abono salarial no valor de um salário mínimo a quem ganha um mínimo (hoje, o limite é de dois) vai excluir 19 milhões de pessoas.
Ex-sócio do Pactual, o banco fundado pelo ministro Paulo Guedes, Eduardo Moreira esteve em 9 de maio na comissão especial da Câmara que debate a reforma da Previdência e deu sua visão sobre a propaganda enganosa. “Somos um País que toma suas decisões por ricos, brancos e homens para um País que é, em sua maioria, de mulheres, negros e pobres. Na reforma da Previdência, eu vejo insensibilidade de pessoas que discutem dentro de um escritório.”
Para ele, o INSS está muito deficitário, 195 bilhões de reais em 2018, por causa do desemprego galopante desde o fim de 2014. A desocupação era de 6,5% em dezembro daquele ano, quando a reeleita Dilma Rousseff abraçou o neoliberalismo com Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, e agora quase dobrou, 12,5% em abril. De lá para cá, segundo dados do IBGE, há 6,7 milhões a mais de desempregados, 2,3 milhões de trabalhadores por conta própria (camelôs, por exemplo), 2,4 milhões de pessoas que desistiram de procurar vaga por achar inútil (desalento) e 3 milhões a menos de carteiras assinadas.
As promessas de mais emprego com a reforma trabalhista revelaram-se um engodo, como as centrais acham sobre a Previdência ser vendida como salvação da lavoura pelo governo. Quando a nova lei trabalhista entrou em vigor, em novembro de 2017, o desemprego era menor (taxa de 12%, 600 mil vagas a mais), idem o desalento (4,2 milhões) e o trabalho por conta própria (23 milhões). O número de assalariados CLT ficou na mesma (33,2 milhões). “Quando pensamos em Previdência, temos de pensar primeiro em mercado de trabalho. A reforma discutida é para ajustar o caixa do governo, não estamos olhando para o nosso mercado de trabalho, infelizmente dominado por imensa precarização”, disse na terça-feira 4, na Câmara, o economista Milko Matijascic, pesquisador do Ipea, em um seminário da comissão especial da reforma. Precarização que pode ser medida pela carteira assinada: apenas um terço do total de trabalhadores são CLT.
O peso da precariedade laboral nas contas da Previdência é examinado em uma tese de doutorado de 2006 na UFRJ, A Falsa Crise da Seguridade Social no Brasil: Uma Análise Financeira do Período 1990-2005. Sua autora, a economista Denise Gentil, vê tudo na mesma hoje. Sem crescimento econômico, não há emprego, o poder público tem de empatar dinheiro com aposentadorias, a sonegação avança. Um campo fértil para a pregação de privatização da Previdência, para alegria dos bancos.
No ano passado, o INSS arrecadou 391 bilhões de reais, fortuna que seria administrada por instituições financeiras, caso houvesse a capitalização. Se a reforma não tiver uma capitalização pura, em que só o trabalhador poupa, sem o empregador contribuir com nada, que é o modelo chileno, vai “ter desemprego entre os jovens também”, disse Paulo Guedes na quarta-feira 5.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) examinou reformas feitas na América Latina e no Leste Europeu de 2000 a 2018 e concluiu que a capitalização é um fracasso. De 30 países que embarcaram no sistema nas décadas de 1980 e 1990, 18 (60%) voltaram atrás. Ou acabaram com a capitalização ou puseram o governo para participar do sistema. O motivo foram as consequências sociais e econômicas. As pessoas não conseguiam guardar muita coisa do salário, os bancos que administram a poupança cobravam taxas altas pelo serviço, embora ganhassem bastante ao aplicar a grana alheia, e o resultado eram aposentadorias irrisórias. Ou seja, pobreza. “As taxas de cobertura (previdenciária) estagnaram ou declinaram, os níveis previdenciários deterioraram-se e as desigualdades de gênero e renda pioraram, tornando a privatização muito impopular”, afirma a OIT.
Um exemplo de abolição da capitalização é a Hungria do ultradireitista Viktor Orbán, parceiro internacional de Bolsonaro. Ele assumiu como primeiro-ministro em 2010 e no mesmo ano a capitalização adotada em 1998 deixou de ser obrigatória. O pioneiro Chile deu um passo atrás em 2008, no governo da socialista Michelle Bachelet, e agora tenta dar outro com o presidente Sebastián Piñera, um empresário neoliberal. A Argentina visitada por Bolsonaro desfez em 2008, com o peronista Néstor Kirchner, o que havia feito em 1994 com o neoliberal Carlos Menem. Na Argentina, o governo estimava que gastaria 0,2% do PIB para criar o sistema de capitalização. Custou 20 vezes mais, conforme o Banco Mundial. Aqui, a previsão oficial é de um custo de 985 bilhões de reais. Será isso mesmo?
Inspirada no papa argentino Francisco, a CNBB preocupa-se com a reforma proposta pelo governo. Para o novo presidente da entidade, dom Walmor Oliveira de Azevedo, mudanças no INSS deveriam ser feitas para que “a sociedade seja justa, fraterna e solidária, e nunca penalizem aqueles que são mais pobres”, como disse ao Correio Braziliense do dia 3. Em um comunicado público de 29 de maio, o Conselho Federal de Economia defendeu que a reforma de fato acabe com privilégios de militares e servidores das castas judiciárias e legislativas. Mas que fossem cobrados também 400 bilhões devidos por sonegadores da Previdência e fosse criado um imposto sobre os mais riscos. O Brasil é um paraíso fiscal para endinheirados. Metade da arrecadação é com tributação do consumo, punitiva dos mais pobres, que não conseguem poupar. Só um terço é com taxação de renda e patrimônio.
Através do líder do PL e do presidente da comissão da reforma, outro do PL, o Centão mina a proposta do governo. A greve geral vai sensibilizar o Centrão mais um pouco?
Em países desenvolvidos, é o contrário. Aqui uns 70 mil super-ricos embolsam cerca de 350 bilhões de reais por ano limpos de impostos, na condição de recebedores de lucros e dividendos de suas empresas. Isenção existente no Brasil desde 1995, na Estônia, e só.
Criar um imposto para a Previdência faz parte de um projeto alternativo à reforma apresentado há alguns dias pelo líder do PL na Câmara, o deputado paraibano Wellington Roberto. Uma espécie de CPMF com outro nome. O projeto também tira da reforma camponeses, professores e pagamentos de BPC a idosos. Haveria uma economia de uns 600 bilhões de reais em dez anos, metade daquela da proposta de Paulo Guedes. Não é um projeto para ser ignorado. Roberto é um dos expoentes do “Centrão”, que tem feito jogo duro com Bolsonaro. Na véspera de o projeto surgir, outro líder da trupe, o alagoano Arthur Lira, do PP, foi a Guedes e, na saída, comentou que “não é sábio por parte do governo” insistir em aprovar a reforma sem alterar nada da proposta original.
O presidente da CNBB recomenda: mudanças no INSS têm de visar uma sociedade justa, fraterna e solidária
O Centrão, diz o líder do PCdoB na Câmara, o baiano Daniel Almeida, é quem talvez seja mais influenciado pela greve geral. “Já sentiram a pressão no governo Temer, teve gente que não se reelegeu por ter votado a favor da reforma na Comissão de Constituição e Justiça”, afirma. Mas não uma influência a ponto de barrar a reforma, apenas para amenizá-la. Líder da oposição, o carioca Alessandro Molon, do PSB, também acredita em influência, devido à instabilidade política em Brasília. O presidente da comissão especial da reforma é do Centrão, Marcelo Ramos, do PL do Amazonas O que comentou com CartaCapital é desalentador para os grevistas. “A reforma está blindada das pressões das ruas. A ala radicaloide do presidente não conseguiu acelerá-la e a greve dos trabalhadores, legítima, não vai fazê-la parar.” A questão, segundo Ramos, não é se vai haver reforma, mas qual será ela.
De todo modo, há gente animada com as perspectivas do alcance da paralisação do dia 14, caso do líder do PT, o gaúcho Paulo Pimenta: “Vai ser forte, por causa da adesão do setor de transportes”. “Vamos jogar peso na greve para tentar balançar o Congresso e o Centrão, atacando o núcleo do governo, a política econômica de austeridade e sua medida mais impopular”, afirma o carioca Glauber Braga, do PSOL. “O governo diz que a reforma vai tirar o País da crise, mas é o contrário, a pobreza vai aumentar”, teoriza o petista gaúcho Henrique Fontana. “Depois da greve, talvez a gente consiga fazer o País se concentrar no debate da reforma da política econômica. Até aqui, o governo tem sido muito disperso em sua agenda.”