Veto a negros percorre história do futebol brasileiro desde a primeira conquista no torneio
No El País
Nesta sexta-feira, o Brasil volta a sediar uma Copa América e estreia contra a Bolívia, no Morumbi, em um uniforme retrô. A camisa branca homenageia o centenário do primeiro título da seleção no torneio, antes conhecido como Campeonato Sul-Americano, em 1919. Na ocasião, os brasileiros também jogavam em casa e derrotaram o Uruguai na final. O ineditismo da conquista, porém, serviu de ensejo para uma passagem infame na história do escrete nacional. Dois anos mais tarde, o racismo institucional daria as caras de forma explícita com o veto à convocação de jogadores negros.
Naquela época, Arthur Friedenreich era o craque do time. Filho de um descendente de alemães com uma brasileira negra, ele foi o artilheiro do Brasil no Sul-Americano de 1919, marcando, inclusive, o gol do título na decisão. Por causa de uma rixa entre as federações de Rio de Janeiro e São Paulo, a edição do ano seguinte foi disputada sem os principais jogadores dos times paulistas, entre eles Friedenreich, que atuava pelo Paulistano. O desempenho da seleção no torneio sediado no Chile ficou marcado pela maior goleada sofrida em todos os tempos – 6 a 0 para o Uruguai, marca que seria superada somente em 2014, com o 7 a 1 diante da Alemanha.
Antes de retornar ao Brasil, a delegação parou em Buenos Aires para disputar um amistoso contra a Argentina. A charge racista publicada por um jornal local, que retratava jogadores brasileiros como macacos e ironizava que “os macaquitos já chegaram em terras argentinas”, revoltou parte da equipe brasileira. O capitão Sisson e outros seis atletas decidiram boicotar o jogo. Já a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) –hoje CBF– permaneceu irredutível no propósito de realizar a partida. Contando até mesmo com o chefe da delegação, Oswaldo Gomes, na linha, a seleção entrou em campo com sete jogadores e perdeu por 3 a 1.
Como a edição de 1921 do Sul-Americano seria abrigada pela Argentina, a CBD buscava uma maneira de se afastar de novas “animosidades” com os rivais. Influente nos bastidores do esporte, o presidente da República Epitácio Pessoa, preocupado com a imagem do país no exterior, teria recomendado à confederação que não levasse jogadores negros para a competição em território vizinho. De fato, craques que brilharam na campanha do título em 1919, como Friedenreich e o ponta-esquerda Neco —que, embora não tivesse pele escura, era conhecido como Neguinho e exercia trabalhos braçais fora do futebol– não foram chamados.
Havia ainda o clamor popular pela convocação do zagueiro Luiz da Guia, irmão de Domingos da Guia, que se destacava pelo Bangu, mas acabou ignorado. Apesar das provocações de cunho racista que desferia a Pedro Lessa, então ministro do Supremo Tribunal Federal, Epitácio Pessoa sempre negou qualquer tipo de veto a negros na seleção. Atribuía a ausência deles no Sul-Americano à queda de braço nos bastidores envolvendo as federações carioca e paulista.
Em tempos de amadorismo, o futebol protagonizado por times tradicionais ainda era reduto da aristocracia e dominado pelos brancos. De acordo com o historiador José Antônio Santos, autor do livro Liga das Canelas Pretas, que mostra como os negros que atuavam na modalidade eram marginalizados no Rio Grande do Sul, traços como os de Friedenreich, que tinha olhos claros, descendência alemã e integrava clubes de elite, conferiam uma espécie de “verniz social” aos jogadores mestiços. “A grande barreira era a questão de classe”, diz o historiador. “Os filhos de imigrantes tinham suas características físicas ‘maquiadas’ para ser bem aceitos socialmente e pela torcida.”
O time essencialmente branco de 1921 voltou a fracassar. Perdeu na estreia, no mesmo estádio onde o combinado de sete jogadores havia sido improvisado no ano anterior, para a Argentina, que acabaria sagrando-se campeã do torneio pela segunda vez. Em 1922, o Brasil voltaria a sediar o Sul-Americano. Para não correr o risco de dar vexame em casa, a CBD resolveu aparar arestas entre federações e suspendeu o veto a jogadores negros, como o rápido e driblador meia, Tatu, do Corinthians. Neco também reapareceu no time ao lado de Friedenreich, que se machucou no primeiro jogo e acabou desfalcando o Brasil no restante da competição. Em que pese a baixa de peso, a seleção conseguiu faturar seu segundo título com uma vitória de 3 a 0 sobre o Paraguai, no estádio das Laranjeiras.
Encarada como uma grande prova de afirmação internacional da seleção, a conquista pouco contribuiu para mitigar a marginalização do negro no futebol brasileiro. Dois anos depois, o Vasco foi excluído da liga carioca por se recusar a abrir mão de seus jogadores negros. Apenas com o advento da profissionalização, no início da década de 30, eles passaram a ser incorporados pelos clubes de elite. Mas a inclusão nunca implicou em imunidade à discriminação. Após a derrota para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950, que ficou eternizada como o Maracanazo, os mestiços Bigode, Juvenal e, especialmente, o goleiro Barbosa foram crucificados como responsáveis pela perda do título. Negros do plantel que sucumbiu ao exímio conjunto da Hungria em 1954 foram tachados de “emocionalmente instáveis” por uma tese elaborada pelo chefe da delegação na Copa, João Lyra Filho. Em seu relatório entregue à CBD, recorria ao racismo científico para culpar a miscigenação pela falta de controle psicológico da seleção diante de equipes europeias.
“O futebol está sempre buscando um bode expiatório”, afirma José Antônio Santos. “Essa tendência de culpabilização do negro sempre esteve muito presente na história da seleção, tal qual na sociedade brasileira. Assim como no começo da década de 20, quando as instituições não queriam tornar a população negra visível fora do país, o futebol continua nos mostrando como o racismo é algo explícito por aqui.” Na última Copa, depois de marcar um gol contra na eliminação do Brasil para a Bélgica, nas quartas de final, o volante Fernandinho recebeu uma enxurrada de xingamentos racistas em suas redes sociais. Tite admitiu que deixou de convocá-lo para “preservar a pessoa pública”.
Um ano depois, ele está de volta à seleção para disputar a Copa América. Na época das ofensas, a CBF repudiou os ataques com a mensagem de sua campanha antirracista “todos iguais”. O posicionamento da confederação, no entanto, não se expressa em atitudes mais enérgicas contra o racismo além do discurso oficial. Em, 2015, por exemplo, a entidade preferiu omitir das autoridades a denúncia do atacante Marcos Guilherme, que acusou um jogador uruguaio de xingá-lo de “macaco” no Sul-Americano sub-20. Em seu site oficial, a entidade apresenta Friedenreich como o “primeiro ídolo da seleção”, mas não faz nenhuma menção ao episódio do veto em que ele foi preterido numa equipe tão branca como a camisa que o Brasil exibe esta noite no Morumbi.