No Tijolaço – por Fernando Brito – O professor de Direito Oscar Vilhena Vieira dispara, hoje, na Folha, flechas de humanismo certeiras contra a política indigenista – a do massacre – que se vai firmando no governo Jair Bolsonaro, que teima em desautorizar a decisão legislativa de retirar a demarcação de terras indígenas das mãos dos ruralistas e insiste num autoritarismo deplorável ao afirmar que “quem demarca sou eu”.
Em setembro de 1913, Candido Mariano Rondon foi atingido por uma flecha nhambiquara. Não permitiu que seus soldados reagissem. Os que o seguiam deveriam saber o seu lema: “Morrer se preciso for. Matar, nunca”.
Com seu humanismo positivista foi uma antítese dos generais norte-americanos Custer e Sheridan, para quem “índio bom, era índio morto”.
Rondon criou, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois transformado em Fundação Nacional do Índio (Funai). Foi a figura central na demarcação das primeiras terras indígenas, como o
Parque Nacional do Xingu.
Com apenas uma canetada o presidente e ex-capitão Jair Bolsonaro conseguiu, nesta quinta-feira (20), conspurcar o legado do Marechal do Exército, Cândido Rondon, além de violar a Constituição e afrontar o Congresso Nacional.
Após séculos de pilhagem e violência, a Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas os direitos “originais” às terras que tradicionalmente ocupam, assim direitos à organização social, costumes, línguas e crenças próprias. A União foi incumbida de demarcar as terras e proteger os direitos dos indígenas (artigo 231).
Setores diretamente interessados na exploração das florestas, rios e, especialmente, riquezas minerais existentes nas terras indígenas, jamais se conformaram com a forma robusta como os direitos dos índios foram assegurados pela Constituição de 1988. Com o objetivo de frustrar esses direitos, especialmente às terras originais, o governo editou, em 1º de janeiro 2019, a medida provisória 870 que, entre outras iniciativas, transferiu para o Ministério da Agricultura a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas, que antes pertencia à Funai.
A manobra foi expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional. Inconformado com a derrota, o presidente Bolsonaro editou a MP 886, reiterando sua determinação de transferir a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas ao Ministério da Agricultura.
Além de uma afronta ao Congresso Nacional, a manobra é expressamente proibida pelo artigo 62, parágrafo 10 da Constituição Federal (emenda 32/2001), ao estabelecer que é “vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada” pelo Congresso Nacional.
Esse tipo de burla, aliás, já havia sido vetada pelo Supremo Tribunal Federal, durante o governo Collor. Em voto considerado “antológico” pelo Ministro Sepúlveda Pertence, o jovem Ministro Celso de Melo, hoje decano do Supremo Tribunal Federal, deixou claro que a reedição de medida provisória, expressamente rejeitada pelo legislador, era uma espécie de fraude constitucional.
De acordo com o Ministro, não basta ao governante ostentar títulos de legitimidade, “é preciso respeitar, de modo incondicional, os parâmetros de atuação delineados no texto constitucional…”. Ao Supremo caberia a função de “progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder”, sem o que não se alcançaria “a interdição de seu exercício abusivo” (ADI 293-7).
As ameaças aos direitos indígenas têm se avolumado nos últimos meses. As propostas de reverter demarcações já realizadas e paralisar as que estão em curso, além da iminência de violação da Convenção 169 da OIT, com a passagem do linhão sobre as terras dos Waimiri-atroais, sem a prévia e devida consulta à população indígena, apontam que nossos governantes parecem estar mais alinhados às constrangedoras ideias do general Custer, do que ao extraordinário e generoso legado de marechal Rondon.