Entrevista com o ginecologista Jefferson Drezett Ferreira, que realizou 2,2 mil abortos garantidos por lei às mulheres
Anelize Moreira
Brasil de Fato
A chegada de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência da República coloca os direitos reprodutivos e a saúde das mulheres no alvo. Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves já se posicionou contra o aborto em qualquer circunstância. Além disso, no Legislativo, o aumento do número de políticos conservadores com viés ideológico de extrema direita no Congresso Nacional encorajou o desarquivamento de propostas retrógradas.
No dia 12 de junho, o deputado federal Diego Garcia (Pode-PR) apresentou o relatório favorável ao projeto de lei 4642/2016 que cria o Programa Nacional de Prevenção e Conscientização sobre os Riscos e Consequências do Aborto. A proposta tramita na Comissão de Seguridade Social e Família e passará ainda pelas Comissões de Finanças e Tributação e Constituição, Justiça e Cidadania. “O estímulo à disseminação de informações sobre as consequências do aborto e sobre a alternativa de dar a criança para adoção é instrumento importante para sanar as dúvidas que muitas vezes assolam a mulher.”, diz o relatório.
No Senado, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) chamada “PEC da Vida” prevê constar na Constituição Federal, que o direito à vida está seja garantido “desde a concepção”. A PEC 29/2015 foi desarquivada a pedido do senador Eduardo Girão (Pode-CE), chegou a ter relatório favorável da senadora Selma Arruda (PSL-MT), mas está parada.
O acesso aborto legal permanece desigual no mundo, mesmo com números altos sobre mortalidade materna. Na América Latina o aborto é descriminalizado sem restrições apenas no Uruguai, Cuba e México.
A ofensiva contra o aborto legal vai do Congresso até as câmaras municipais. Em São Paulo (SP), o vereador Fernando Holiday, membro do Movimento Brasil Livre (MBL), propôs um projeto de lei que determina uma série de obrigatoriedades para mulheres que sofreram estupro para realizar aborto na rede pública. O projeto causou polêmica sobre o endurecimento das regras para interrupção da gravidez.
No Brasil, o acesso ao aborto é restrito e é permitido somente em casos de estupro (até 22 semanas), risco de morte para a mãe e o bebê e fetos com anencefalia, essa última conquistada em uma decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012. Para entender a situação do aborto legal no Brasil e as perspectivas sobre o esse tema, o Brasil de Fato conversou com o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett Ferreira, professor do Departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Durante 25 anos, ele afirma que realizou 2,2 mil abortos legais, quando coordenou um dos serviços públicos de referência de aborto legal no Brasil , Pérola Byington – Centro de Referência da Saúde da Mulher, no centro da capital paulista. A unidade presta atendimento integral para mulheres, meninas e meninos de até 12 anos em situação de violência.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Existe algo em comum nas mulheres que buscam o aborto legal?
Jefferson Drezett Ferreira: A maior parte dos casos que atendi no Pérola Byington eram de violência sexual. Se for pensar principalmente nesse grupo, os casos mais frequentes eram de mulheres jovens estupradas por agressores desconhecidos em suas atividades cotidianas de ir e vir do trabalho, típico de cidades grandes, como São Paulo. Outra circunstância são os estupros cometidos por parceiros íntimos, maridos, “ex” ou namorados. Outra situação bastante relevante são os casos de incesto de crianças e adolescentes, vítimas de crime praticado por pessoas do convívio familiar com relação de parentesco, como irmão, pai, padrasto.
São experiências muito diferentes e há uma dinâmica própria de atendimento dessas mulheres. O ponto em comum é que elas estão em situação de brutal violação de direitos reprodutivos e que buscam seu direito de interromper esse processo de violência. Hoje nós não temos dúvida que a maior parte dos agressores são pessoas conhecidas. No Brasil, 14% das mulheres declaram que já sofreram ato sexual imposto e humilhante. Embora a violência sexual seja maior pelo parceiro intimo isso não se reverte nos números dos atendimentos dos serviços públicos, pois eles não captam todos os casos de violência sexual.
Qual o perfil socioeconômico dessas mulheres que buscam o serviço de aborto legal? São mulheres com maior vulnerabilidade social?
Nos casos mais comuns que são de violência sexual, nenhuma mulher está protegida pela sua condição socioeconômica, cor ou escolaridade. Ou seja, não existe uma condição protetora para mulher em nenhuma parte do mundo. O que não quer dizer que não existem mulheres que estão mais sujeitas, mais vulneráveis a sofrer essa violência sexual. Como é o caso das mulheres mais pobres, negras e jovens que estão mais suscetíveis essa violência e a engravidar dessa violência e também aquelas que estão vivendo em lugares violentos.
Pela sua experiência, qual a importância do aborto legal? A lei brasileira deveria ser modificada para abranger outros casos?
O Brasil é classificado como um dos países com legislação extremamente restritiva em relação ao aborto. Se retirássemos as condições permitidas por lei, entraríamos para um conjunto de países que têm uma legislação com proibição absoluta ao aborto como é o caso do Vaticano, Nicarágua e Malta.
Temos dificuldades de encontrar um ponto consensual em relação ao aborto. No continente africano, em torno de 32% dos países contam com leis que permitem, por exemplo, o aborto em caso de anomalia fetal grave. Não estamos falando de eugenia, mas de situações de aborto seletivo por uma doença absolutamente limitante da vida do feto. Na América Latina e Caribe, cai para 17% os países que têm uma legislação nesse sentido e nós não somos um deles.
Vivemos em país com uma cultura restritiva até para casos de anomalia fetal grave em que não temos nenhuma alternativa para cuidar e tratar ainda que os pais queiram, infelizmente não há meio de salvar esses recém-nascidos. A última coisa que conseguimos foi deixar descriminalizar casos de anencefalia, dando um pouco de paz para esses casais que escolhem não levar a gestação adiante.
O que impede o avanço do debate no país?
As pessoas precisam ter o direito de escolha. É interessante pensar que consideramos que o aborto é possível desde que esse motivo esteja de acordo com o que concordamos. O Estado brasileiro concorda que uma mulher realize uma interrupção de gestação decorrente de um estupro. Aceita-se o aborto desde que o motivo seja aceito. O aborto não deve ser feito pela minha convicção, mas pela convicção de cada mulher, ela que deve decidir se isso é possível ou não. Os motivos não deveriam ser do Estado, mas da mulher.
Ela decide em quais circunstâncias pode manter a gestação. O aborto não deveria ser crime em nenhuma circunstância, seja qual for o motivo, por uma gravidade fetal, por questões econômicas, pelo método contraceptivo falhou, por não considerar que é o momento oportuno. Depois de muito pensar sobre todos os pontos ou as já previstas em lei, as mulheres que deveriam ser donas da decisão sobre o aborto, não o Estado brasileiro, um marido ou um vizinho.
Para isso precisaríamos caminhar como os países desenvolvidos entendendo que a criminalização do aborto não tem nenhum sentido, ela não reduz a taxa de aborto, mas ela cria uma obstrução para que os serviços públicos e privados prestem assistência adequada, empurrando essas mulheres para a clandestinidade. Isso é tão grave no mundo que 95% de todos os abortos praticados em situação de risco acontecem em países em desenvolvimento que mantém leis restritivas contra o aborto, esses dados são da Organização Mundial de Saúde. Como é o caso do Brasil.
Como é o aborto nesses países que você cita?
O aborto inseguro não é um problema para o Canadá, Suécia, Holanda, Alemanha e Dinamarca. Em países em desenvolvimento sim, o risco a saúde recai sobre mulheres pobres e pretas, não por que elas abortem mais, mas por estar em situação de vulnerabilidade econômica diante de uma gravidez. Não há sentido em manter uma legislação que está na contramão do resto do mundo. Os países desenvolvidos entendem que a criminalização do aborto não tem eficácia para evitar esse fenômeno e ele precisa ser tratado de outra maneira. A Holanda, por exemplo, não tem nenhum tipo de restrição para as mulheres, e elas têm liberdade de escolher se deve ou não manter uma gestação independente de qual é a circunstância. Lá elas têm o direito de decidir se mantém a gravidez até o término. Ou seja, não há burocracia do estado, o serviço público é de qualidade e gratuito para atender essas mulheres. Porém, mesmo elas tendo toda essa facilidade, a Holanda é um dos países onde menos as mulheres precisam fazer o aborto.
O que faz a mulher buscar não é se a lei permite ou se proíbe, mas se ela tem uma gravidez indesejada, e esse processo para evitar isso, vai muito além da lei. Ele passa pelo planejamento reprodutivo de alta qualidade, pela redução violência de gênero, uma educação sexista e sexual, enfim passam por um monte de coisa que não necessariamente passa tem a ver com a proibição.
O que sua experiência como médico no sistema público te ensinou?
Depois de todos anos trabalhando com isso, eu entendo que o aborto não deveria ser criminalizado em nenhum circunstância e que deveríamos oferecer a possibilidade de interromper essa gestação de forma segura, quando elas entendessem que não seria possível manter a gestação pelos motivos justos para ela e não justo para o Estado. O aborto não é um benefício que uma mulher deseje, planeje ou almeje alcançar durante a sua vida. Não é possível conceber um pensamento de que porque o aborto é permitido, então as mulheres vão querer abortar mais. Ou que engravidariam porque querem abortar, é ridículo porque é um raciocínio patético. Acreditar que as mulheres vão aproveitar para interromper a gestação ou vão usar o aborto como método contraceptivo.
É uma indignidade colocar a mulher nessa circunstância, tratando ela como se fosse portadora de uma estupidez, portadora de uma insuficiência que precisasse da tutela do Estado e dos homens. Não há conexão entre o aumento do número de aborto após a descriminalização, embora o grupo pro-vida tente colocar que isso é mentira, que esses dados não são verdadeiros, mas isso não existe em nenhum país do mundo.
A bancada evangélica sempre foi contra o aborto, mas estamos vivendo um momento em que houve um crescimento do conservadorismo, em que tem sido desengavetado no Congresso propostas que visam retroceder e criminalizar ainda mais o aborto. E por outro nós temos um governo em que a sua equipe já se posicionou até contra o aborto legal. Qual é a perspectiva do aborto legal nos próximos anos? Que tipo de luta as mulheres vão precisar fazer pra lutar pela sua saúde?
Eu vejo com bastante indiferença o que pensa sobre aborto o presidente da república Jair Bolsonaro e a sua ministra Damares. Acho indiferente o que ele pensa, assim como é o que eu penso, porque não se trata de impor a toda a população uma crença pessoal, muito menos de crença religiosa como é caso da ministra e do presidente. Esse país não é evangélico, nem católico, é laico. Ou seja, ele não tem que tomar ou deixar de tomar medidas de interesse público fundamentado em um dogma ou uma orientação religiosa. Isso é um principio fundamental, portanto é indiferente qual a posição do presidente ou da sua ministra do ponto de vista dos caminhos que a lei tem que tomar. Eles podem não gostar, mas não podem impor uma mudança da lei, mas o legislativo pode fazer isso de diferentes maneiras.
Como por exemplo, pode aprovar um projeto de lei proibindo o aborto no Brasil, então seríamos o 6º país do mundo a ter proibição absoluta na contramão de tudo. Mas, também a lei pode ser alterada por caminhos menos honestos, como tentar inserir no texto da Constituição uma frase ou terminologia que coloque a vida como intocável e inviolável em qualquer circunstância desde a concepção.
Se isso está na constituição, aí torna inconstitucional o artigo 128 do código penal. O caminho que a bancada religiosa, não só a evangélica, mas a conservadora dos deputados e senadores eles têm caminhado bastante nesse sentido de fazer com que o Brasil que já tem uma lei extremamente restritiva, endureça ainda mais e a lei brasileira só tem dois pontos.
Nós não sabemos como esses projetos serão votados. Evidentemente o desejo da bancada evangélica é de impor uma visão evangélica para todas as pessoas desse país, porque eles se acham donos de uma verdade cósmica que não está aberta a qualquer tipo de contestação. É dessa maneira que pensa essa bancada, completamente antidemocrática, mas não é porque uma minoria o que quer que ela vai conseguir impor.
Como é entendido o aborto legal em casos de risco de morte?
O que a lei brasileira prevê é não punir o aborto praticado por médico, se não houver outro meio de salvar a vida da gestante. Não está previsto outra coisa senão evitar a morte. O Estado brasileiro entende que é possível interromper uma gestação para que uma mulher não morra, mas não está dizendo que é possível interromper a gravidez se ela provoca um dano à saúde física ou mental. O governo brasileiro acha razoável e tolerável que uma mulher perca a função dos rins, mas não faça um aborto, que uma mulher perca a visão, mas que não faça o aborto, que uma mulher tenha uma grave complicação neurológica, que não morra, mas que não faça o aborto. Ou seja, ele não é permitido para preservar a saúde da mulher.
A maioria dos países desenvolvidos têm leis específicas em que essas situações estão previstas, ou seja o aborto como preservação da saúde física ou mental. E eles tratam isso de forma equivalente, colocando dentro do mesmo âmbito de proteção à saúde. Mas, o Estado brasileiro não abre essa possibilidade do aborto nesses casos por mais que estejam fundamentados os riscos e por mais graves que sejam. Não estamos falando de problemas pequenos, mas que geram grande impacto para saúde das pessoas, inclusive com agravamento que pode levar à morte, mas isso não é levado em conta pelo governo brasileiro.
Cerca de 30 a 35% da mortalidade materna brasileira – toda morte na gravidez, parto ou pós-parto – são por causas indiretas que concomitante com a gestação leva a um desfecho letal. Não é possível dizer que esse problema está resolvido se 35% dos casos estão associados com problemas de saúde como circulatórios, neurológicos, de coração. Essas questões ficam no âmbito da percepção, convicção ou da crença ou do achismo que é muito comum no presidente da república ou da ministra Damares que transformam essa crença em uma ordem para todas as pessoas quando a evidência científica mostra algo completamente diferente.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira