O Brasil não merecia João Gilberto.
No DCM, por Kiko Nogueira
O cantor do amor, do sorriso e da flor, da Bossa Nova, da delicadeza, o gênio do sussurro, do soar baixinho, absolutamente moderno, do Brasil das coisas belas — o que ele poderia ter a ver com a ascensão e glória da brutalidade bolsonarista?
Essa é a terra do sertanejo universitário, das duplas insuportáveis, do mau gosto, juntos e shallow now.
João tinha 88 anos e estava no centro de um disputa familiar infernal, miserável.
Dado seu estado de senilidade mental, conseguiu uma rota de escape diante da luta de seus herdeiros por seu dinheiro.
O encantamento, o sublime ficarão para sempre.
A primeira vez em que eu ouvi “Amoroso” fiquei obcecado.
Abre com sua versão de “S’Wonderful”, de George e Ira Gershwin. O nome do disco é tirado de sua pronúncia baiana para “amorous”.
O violão casa perfeitamente com o luxo dos arranjos de Claus Ogerman.
O que João faz em “Retrato em Branco em Preto”, de Chico e Tom Jobim, a divisão dos versos no meio da harmonia, é inexplicável e inimitável.
Ainda tem “Estate”, em italiano, o bolero “Besame Mucho”, “Wave” — canções que ele transformava e das quais se apropriava.
Morre 60 anos após o lançamento de “Chega de Saudade”, o marco zero de uma revolução estética, de uma bomba de tranquilidade.
“Vai minha tristeza / E diz a ela / Que sem ela não pode ser…”
Inventou uma batida copiada no mundo, exportou a imagem de um lugar que, talvez, não tenha existido.
Ou melhor, que existia em sua arte, em seu gênio, e através dele em nós mesmos.
Viva João Gilberto e o porto seguro que ele inventou para nós.