Por Antônio Serpa – João Gilberto inventou a Bossa Nova e a Bossa reinventou a musicalidade brasileira! Baiano de boa cepa, ele era dotado de malemolência nata, incrustada desde a mais tenra idade na alma desse afilhado de Nosso Senhor do Bomfim. Baiano bom não grita ao cantar, sussurra apenas como se estivesse falando em confidência com um orixá!
No entanto, naquele contexto dos anos 40, com o Getulismo dando as cartas com mão de ferro, como se fosse uma metáfora da voz do poder ou do poder da voz, o Brasil cantava grosso, grave e em muitos decibéis, quando João botou a viola no saco de desembargou em terra fluminenses no fim dos anos 40 e início da década de 50. A plataforma básica da harmonia do violão tupiniquim era o famoso acorde perfeito maior ou menor.
Deuses do rádio levavam o romântico país ao delírio, completamente embriagado com os vozeirões trovejantes de Sílvio Caldas, Francisco Alves, Orlando Silva e Carlos Galhardo. Depois viria Nélson Gonçalves para completar o time das vozes de trovão que encantaram a pátria dos boêmios apaixonados e seresteiros. A única coisa que fazia um certo contraponto nesse cenário de cantantes de vozes poderosas era uma portuguesa toda formosinha chamada de pequenina notável e que assinava com o nome e sobrenome de Carmen Miranda, saracutiando com seus trejeitos tropicais e balangandãs mirabolantes, cantando marchinhas e o tico-tico no fubá, em solo pátrio e nos Estados Unidos.
Na década de 30, o ritmo criado pelos negros no morro e tocado pela malandragem na Lapa finalmente é aceito pela classe média, graças a intervenção magistral de Noel Rosa, fazendo com que o Samba conquistasse seu lugar de destaque na era do rádio.
Menino criado sem cueca nos confins de Juazeiro da Bahia, onde nasceu, João põe a viola no saco se manda para a Cidade Maravilhosa no começo dos anos 50. Estava aberto o caminho para a revolução bossanovista! Um cavaleiro errante partira em busca de novas terras! Com a volta da Democracia, João percebe intuitivamente, ao longe, a bruma airosa da atmosfera desenvolvimentista que iria tomar conta da nação a partir do governo Juscelino Kubitsche! Essa ambiência desenvolvimentista, com o Brasil querendo crescer 50 anos e 5, a modernidade batendo à porta, tornou-se o solo fértil para o plantio e colheita de uma nova maneira de tocar o violão brasileiro, de cantar a música brasileira e de harmonizar as canções do Brasil brasileiro! No entanto, pra que isso acontecesse, era preciso aparecer um Bruxo, um Mago ou um Alquimista. Na falta de um, João fez o papel dos três: talvez com as bênçãos de Oxalá, foi Bruxo; com os feitiços de Yemanjá, senhora das águas da Bahia de todos os Santos, foi Mago; e com a força de Oxossi e Santa Bárbara, forças magnéticas e transcendentais dos terreiros fincados na terra de Jorge Amado, João foi também Alquimista!
Reza a lenda que foi num ritual solitário, quando cruzava as terras mineiras, muito provavelmente em Diamantina, que João Gilberto transformou a água em vinho doce, o pão adormecido de fazer vatapá em mel e criou a unidade quântico-molecular da Bossa Nova, a famosa Batida Sincopada! Só ele, o violão e Deus trancafiados num quarto de pensão! Claro, com alguns baseados manga rosa acesos e consumidos antes, durante e depois daquele ritual hermético! Mas quem não concederia essa licença poética, hervética e farmacológica a um criador solitário, em vias de entrar em transe e mudar para sempre o destino musical da humanidade?? E assim, no auge da plenitude espiritual, João reuniu a tríade mais inusitada e bombásticas de todos os tempos. Como é que ninguém tinha pensado nisso antes?? Ora, embora genialíssima, a fórmula é relativamente simples, daquelas simplicidades que os maiorais não ousam conceber, mas que os gênios conseguem idealizar com eventual facilidade: para dar suporte rítmico ao elixir da nova substância, colocou um pitada de samba; para catalisar a transmutação harmônica da peça musical, João usou uma boa poção de células de jazz, com uma pitada de intimismo sussurrante e abaianado na execução do canto e dois dedos de síncope repicada, na hora de acionar os acordes, como se faz com o tamborim sonolento em acompanhamento de samba lento. Naquela noite, reunidos estavam João, a viola e Deus, uma tríade que viria testemunhar o nascimento de uma outra tríade fantástica: a base genética e molecular do que, em ciência oculta musical, ficou conhecido por Bossa Nova! Naquela noite, João, como se fosse o último moicano da face da terra, tocou e dançou pra si mesmo, tocou e dançou pra Deus, fez oferendas ao Senhor das Esferas e, ai coração humano desvairado dado as tentações, chegou a pensar que fosse também um semideus! Embora paradoxal, de repente, não mais que de repente, do Nada fez-se o Ser, e esse novo Ser era uma coisa inexplicável, uma coisa completamente diferente, desconcertante, dissonante, minimalista, meio cheia de bossa, uma bossa realmente diferente, uma Bossa Nova!
Diz a lenda que naquela noite uma estrela cintilante pairou sobre a pousada mineira que abrigava João Gilberto, tendo ele visto seu próprio espírito completamente iluminado e fosforescente, como havia profetizado um místico predizendo que isso aconteceria ao alquimista que viesse a descobrir um dia a Pedra Filosofal! Discreto, morreu sem revelar nada a ninguém! Era um místico ermitão!
E foi assim que um certo João ninguém nascido em Juazeiro, tornou-se o João da bossa, dos acordes não-sonoros, por isso dissonantes, da batida repicada no violão, da voz pequena, quase humilhada, de jeito discreto, meio matuto, do ouvido absoluto e perfeccionista, um grande gênio da humanidade, abrindo passagem para outras figuras renomadas e também geniais como Tom Jobim, Carlinhos Lira, Ronaldo Bôscoli, Vinícius de Moraes, Roberto Menescal e tantos outros.
Depois de séculos de busca, finalmente a Alquimia desvendara o maior mistério de todos os tempos: a Bossa Nova é que era a Pedra Filosofal que todos eles procuravam!! Apenas, João, filho de Iansã, a encontrou!