Mulheres negras relatam a dor e o significado do assassinato da vereadora do PSOL e do seu motorista, Anderson Gomes, há um ano
Por Rute Pina, São Paulo (SP)
Brasil De Fato
Confira o especial que o Brasil de Fato fez relembrando o primeiro ano do crime.
Em uma padaria nos arredores da Praia Vermelha, em Salvador (BA), pares de olhos marejados estavam vidrados no noticiário na televisão. Era a quinta-feira do dia 15 de março de 2018 e o clima de perplexidade não era de uma manhã qualquer. Na orla da praia, uma faixa improvisada, em papel pardo, já anunciava uma pergunta que iria ecoar incessantemente pelo próximo ano: “Quem matou Marielle Franco?”
Cerca de 12 horas depois do assassinato, no fim da noite do dia 14 de março de 2018, a capital soteropolitana teve o registro de um dos primeiros atos em homenagem e em luto pela vereadora do PSOL e seu motorista, Anderson Gomes. E que também se tornou um espaço de acolhimento aos ativistas de diversos movimentos populares e entidades de todo o país que estavam na cidade, participando da 13ª edição do Fórum Social Mundial.
Ali, muitos eram amigos, conhecidos ou tiveram algum tipo de contato com Marielle. Este é o caso da jornalista carioca Camila Marins, ativista lésbica e editora da Revista Brejeiras. Ela soube do assassinato da vereadora logo após o ocorrido. Ela tinha acabado de chegar onde estava hospedada quando recebeu uma mensagem de uma amiga pelo WhatsApp.
“Em um primeiro momento, eu achei que era fake news. Depois, logo em seguida, veio a confirmação. E foi aterrorizante, apavorante. Me arrepio só de pensar nesse dia novamente”, lembra Marins.
Também filiada ao PSOL, ela conhecia Marielle da militância política. A jornalista atuou na construção do Projeto de Lei da Visibilidade Lésbica, que foi entregue na Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo gabinete de Marielle e movimentou diversas ativistas em uma campanha pela sua aprovação em agosto de 2017. O projeto foi derrotado por apenas dois votos de diferença.
“Não parei de chorar em momento algum, fiquei mandando mensagem para todas as pessoas, tentando, de alguma forma, entender o que tinha acontecido e elaborar o impacto que isso teve na gente”, relata a jornalista.
A manhã de luto
Naquele dia, todas as atividades do Fórum Social Mundial foram suspensas e os movimentos organizaram uma passeata que saiu da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Uma instalação artística que denunciava o feminicídio ganhou uma cruz com o nome de Marielle.
“Em vários momentos, paralisei. Não conseguia caminhar. Mas as mulheres vinham, segurando umas às outras, para gente conseguir fazer essa caminhada. É uma notícia que paralisou todas nós, mulheres negras”, rememora.
A ativista negra Valquíria Rosa, da Partida Feminista e integrante da Fundação Baobá, estava ajudando na organização de um debate sobre Vulnerabilidade, Política e Poder que ocorreria na manhã do dia 15, no Fórum.
Ela lembra que sua primeira reação também foi de desalento quando uma companheira da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo anunciou o fato: “Como assim mataram a Marielle?”, ela questionou no momento. “Para mim, ficou muito explícito que, naquele momento, naquele dia, naquela conjuntura, tudo mudou”, lembra Valquíria, um ano depois.
“Eu cruzei com a Marielle em poucas situações, em encontros feministas. Ela era sempre uma presença marcante em todos os lugares que ela chegava para falar do processo de eleição, da candidatura, as dificuldades que ela vinha enfrentando no mandato. Então, a gente sabia das dificuldades, mas a gente não sabia que essa violência chegaria nesse nível. Foi um impacto muito grande.”
O cortejo de mulheres que gritava “Marielle, Presente” e “Parem de nos matar”nos arredores da UFBA na manhã daquela quinta-feira se espalhou espontaneamente pelo país. Capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Brasília e outras cidades registraram manifestações espontâneas e volumosas naquela data.
O sentimento de luto por Marielle também ganhava contornos de uma identificação em mulheres negras, militantes, periféricas, lembra a estudante de serviço social Geslaine Oliveira, que vive em Juiz de Fora (MG).
“Assim como a Marielle, eu também militava em um partido na época, compunha a direção de um coletivo feminista, sou uma mulher negra, periférica, sou bissexual. Então, para falar a verdade, eu comecei a ficar com medo de militar”, relata a estudante. Gê conta que teve crise de ansiedade por duas semanas e, até hoje, tenta elaborar esse sentimento.
“Eu acho que esse medo tem que se transformar em um momento para se refletir sobre nossa segurança, mas também que ele se transforme em luta. Ela não viveu tudo o que viveu para gente, com medo, parar de lutar pelo que ela lutou a vida inteira”, propõe.
Distante do país, a mais de 9 mil quilômetros da sua cidade natal, a jornalista carioca Caroline Cavassa, soube da morte da vereadora nas redes sociais, apenas no dia seguinte. Ela mora em Roma, na Itália, há três anos. “Foi uma dor muito solitária”, conta.
“Como tem a questão do fuso horário, que na época eram cinco horas de diferença, eu não soube no horário exato, eu estava dormindo. Eu acordei por volta das 8h da manhã e abri o Instagram e vi várias fotos da Marielle no meu feed. Eu não entendi o que estava acontecendo”, relembra.
“Foi muito difícil porque eu estava sozinha. Eu não pude compartilhar aquela dor com outras pessoas que entendessem o que estava sentindo. E como aquilo me golpeou forte não só por uma questão de ter sido um assassinato brutal, mas porque era mulher que me representava.”
A notícia reverberou nos jornais italianos e em outros países. Em Londres, por exemplo, brasileiros se mobilizaram algumas semanas depois. Ela afirma que a comunidade continua denunciando o assassinato de Marielle em instâncias internacionais. Ela participa, desde então, de atos no exterior, para continuar dando repercussão internacional ao fato.
“Pode até parecer um pouco clichê, mas foram realmente sementes que ela deixou. Eu fico feliz hoje de ver outras mulheres negras que conseguiram ser eleitas para dar continuidade ao trabalho que ela fazia na Câmara”, diz Carol.
O amanhã por respostas
Um ano depois, a pergunta que se estendeu na Orla de Praia Vermelha permanece. Camila Marins conta que se apoia no legado de Marielle para continuar seguindo com as pautas de Marielle contra o racismo e o extermínio da população negra, pobre e periférica.
“Nós já somos alvos dessa sociedade racista. E isso ficou ainda mais evidente com o assassinato dela. Somos os corpos mais vulneráveis nesses espaços. Por isso é tão importante que a gente apoie todas as mulheres negras que estão na política, as que estão acessando o parlamento pela institucionalidade, para que consigamos fazer um corpo coletivo de apoio, de segurança, de cuidado dessas mulheres negras. E a morte dela simbolizou isso.”
Já Valquíria Rosa afirma que o assassinato de Marielle colocou num lugar de alerta e percepção. “Foi um ano emblemático porque existe um propósito muito grande de eliminação de quadros políticos. Tanto quadro políticos mais antigos quanto quadro políticos mais novos. Ou matando, ou levando ao desgaste máximo”, avalia.
A ativista avalia que o crime também explicitou uma violência que é presente e diária: “A gente viveu este desgaste tendo que restabelecer energia criativa, de luta de vida, mas dentro de um desgaste muito grande. Nós, população negra, LGBT, mulheres e pobres, não temos acesso ao direito e à justiça. O Brasil vive explicitamente em um estado de exceção. Dentro disso, é o salve-se quem puder”.
“A gente precisa mudar as nossas estratégias, quando a gente precisa realmente prestar muita atenção umas às outras e nos protegermos entre nós. E entender que somos nós por nós”, diz.
Hoje, Valquíria afirma que, para ela, é um dever lembrar a imagem de Marielle em todos os lugares que houver oportunidade. Para não se esquecer, em nome e pela vida de todas as mulheres negras, lésbicas, pobres e periféricas que, como ela, esperam há mais de 365 dias por respostas.
Deputadas estaduais eleitas Renata Souza, Mônica Francisco e Dani Monteiro carregam legado de Marielle e também novas propostas
Por Mariana Pitasse, Rio de Janeiro (RJ)
Além do trabalho que desenvolvia como vereadora, um dos principais projetos de Marielle chamava “Mulheres na Política” e estava em fase de desenvolvimento. A ideia era estimular um movimento de mulheres que tivesse participação mais efetiva na política institucional. Alguns encontros e debates aconteceram até serem interrompidos pelo crime, em março do ano passado. Mas não se encerraram por aí. Após o assassinato, foi pensando no projeto e em outras conversas que Renata Souza, Mônica Francisco e Dani Monteiro, todas do PSOL, três mulheres negras, que trabalhavam como assessoras do mandato de Marielle, construíram suas candidaturas como deputadas estaduais do Rio de Janeiro e foram eleitas.
“A gente sabe que a luta institucional é só um meio pra gente fortalecer e utilizar como ferramenta para as lutas sociais. Sabemos também que estar hoje nesta Casa, que historicamente negou espaço para as mulheres, as mulheres negras, a população de favela e periferia, não só de se sentirem representados, mas terem voz e vez é, sem dúvida, uma responsabilidade enorme”, afirma Renata Souza, ex-chefe de gabinete de Marielle.
Ela foi eleita com quase 64 mil votos – a deputada estadual mais votada entre os partidos de esquerda do Rio. Mulher, negra e criada na favela da Maré, na zona norte da cidade, ela se formou jornalista na PUC-Rio com bolsa integral e hoje, aos 36 anos, é pós-doutoranda em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Assim como Marielle, trabalhou por 10 anos com Marcelo Freixo (PSOL), atualmente deputado federal, na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio. Na última semana de fevereiro, Renata voltou a atuar na mesma comissão, agora como a primeira mulher negra a assumir a sua presidência.
Colega de Marielle e Renata na Comissão de Direitos Humanos, Mônica Francisco, de 48 anos, assumiu no último mês a presidência da Comissão de Trabalho e Renda, além da vice-presidência da CPI do Feminicídio da Alerj. Ela foi eleita também com votação expressiva, somando 40,6 mil votos. Nascida no Morro do Borel, na zona norte do Rio, Mônica é cientista social, pastora evangélica e militante dos direitos humanos há mais de 30 anos.
Já Dani Monteiro, de 27 anos, foi a mais jovem deputada estadual eleita no Rio nas últimas eleições e agora ocupa a vice-presidência da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. Natural do Morro de São Carlos, também na zona norte, Dani é estudante cotista do curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ela constrói o setorial de favelas do PSOL do Rio, é membro do Movimento Negro Unificado (MNU) e uma das fundadoras do Movimento RUA Juventude Anticapitalista.
“Desde quando a gente foi eleita tem uma frase que está sendo norteadora da nossa atuação aqui dentro que é: ‘um pé na institucionalidade, mil pés fora dela’. A gente está aqui dentro da institucionalidade por meio de um mandato que tem como foco questões que são invisibilizadas no nosso estado, que é juventude negra, mulheres, favela. A gente traz essas questões para dentro, mas o mais importante é que a gente quer levar isso também para fora”, explica Monteiro.
Eleições
O Rio de Janeiro foi o segundo estado que mais elegeu mulheres no pleito de 2018, somando 12 parlamentares, quatro delas são negras. Além de Renata, Mônica e Dani, o estado também escolheu Talíria Petrone (PSOL) para ocupar uma cadeira na Câmara Federal. O número total de mulheres eleitas no estado é o dobro das eleições de 2014, já o total de mulheres negras eleitas é quatro vezes maior.
Para Mônica Francisco o resultado é consequência de um processo, que é anterior às eleições. “É um processo resultante da mobilização das mulheres no mundo. Eu vejo tanto as nossas candidaturas, quanto as nossas eleições, como também uma resposta, resposta e resultado. Resposta de uma parcela da sociedade que também responde ao fundamentalismo, ao feminicídio e à execução da própria Marielle. Mas não só. É um contexto. É um mosaico. É um série de situações”, explica.
Ainda que os números apresentem mudanças na composição do parlamento do Rio de Janeiro, a proporção é pequena. Nacionalmente, do total de candidaturas para todos os cargos, 31% foram mulheres e 69% foram homens. Ainda que a maioria da população brasileira, em torno de 52,5%, seja de mulheres. Tratando especificamente das mulheres negras, houve um pequeno aumento, passando de 13%, em 2014, para 14%, em 2018, sendo que as mulheres negras representam 25% da população brasileira. Os dados foram compilados pelo especial “Mulheres na Política”, produzido pela ONG Think Olga.
“A gente vai conquistando o mundo do trabalho, todas essas ondas do feminismo, mas a política ainda é incipiente. Mesmo com isso que a gente fala: ‘nossa, em 2019 nós temos mais mulheres na política, mais mulheres negras, mais mulheres periféricas e tal’. Mas a gente ainda é uma parcela ínfima no legislativo e no executivo”, acrescenta Mônica.
Para Dani Monteiro, ainda é necessário avaliar de forma mais aprofundada o que foi o resultado das últimas eleições. “Mas tenho um palpite de que as nossas candidaturas foram um fio de esperança, não só aqui no estado do Rio, mas no Brasil inteiro. O resultado reflete o clamor de uma nova política. Pelos nossos corpos, pela nossa trajetória, nossas vivências históricas. Vivências de quem conhece e sente na pele a atuação do estado”, completa.
Mandato
Logo que assumiram as cadeiras na Alerj, Renata, Mônica e Dani propuseram três projetos de lei que foram elaborados com o objetivo de expandir para todo o estado propostas que Marielle tinha feito para o âmbito municipal. O primeiro projeto trata sobre uma campanha de prevenção ao assédio em transportes coletivos públicos e privados; o segundo visa instituir assistência técnica gratuita para elaboração de projetos de habitação para famílias de baixa renda e o terceiro tem como objetivo criar um programa de efetivação das medidas socioeducativas para jovens em regime meio aberto.
“A gente apresentou esse pacote de projetos logo de cara porque é simbólico: estamos insistindo, em nome de Marielle, que não seremos interrompidas, mas também são projetos de extrema relevância para a população”, afirma Dani.
Ainda que tenham apresentado os projetos de Marielle na Alerj e que sejam definidas como braços de continuidade política da ex-vereadora, as parlamentares defendem que suas atuações na Câmara não se esgotam por aí.
“A ideia é muito mais de continuidade dessa memória, guardadas as devidas proporções, porque eu acho que a gente não está aqui só para aprovar projetos da Marielle, mas para fazer uma construção em cima de cada um dos nossos perfis. Claro que as pautas convergem muito, olhando para gente você pode imaginar o porquê. Você tem uma pauta de favela, pauta de mulheres negras, você tem pauta de gênero, você tem pauta de negritude e direitos humanos. Então você acaba tendo convergência de temas”, destaca Mônica.
Para Renata, a ideia não é carregar um legado, mas continuar construindo as pautas e as lutas a partir da experiência que compartilharam com Marielle. “O legado dela é universal, não é de uma pessoa, não é de uma luta. É das pessoas que se entendem como humanas e que lutam para superar as desigualdades sociais. Para a gente continuar essa luta precisamos voltar para as bases, construir diálogo com as pessoas, entendendo a favela e os espaços de periferia como potências. Porque quando a gente olha para a favela e para a periferia e diz que aquilo lá é um problema de polícia, ao invés de ser uma questão de política, a gente já disse quem são os inimigos dessa sociedade”, completa.
Segurança pública
A fala de Renata vai na contramão das políticas implementadas em âmbito nacional e estadual na área da segurança pública. Em apenas um mês do governo de Wilson Witzel (PSC) no Rio de Janeiro, as operações da Polícia Militar bateram recordes de mortes. Em uma sequência sangrenta de 10 dias, entre janeiro e o começo de fevereiro deste ano, os policiais militares mataram 42 pessoas no Rio de Janeiro. A média é de quatro mortes por dia. Witzel é o mesmo que em campanha eleitoral participou de ato que quebrou a placa em homenagem a Marielle e declarou que a polícia agora vai ser autorizada a fazer “o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”.
Somada a essa realidade que se desenha no Rio, está o pacote intitulado “anticrime” proposto pelo ex-juiz e atual ministro da Justiça da Sérgio Moro, que pode agravar ainda mais a violência dos agentes do Estado nas favelas e periferias. Uma das medidas prevê que o policial que mata possa não ser penalizado se a ação decorrer de escusável “medo, surpresa ou violenta emoção”.
“O pacote do Moro vai em direção a essa lógica não só do Estado abrir mão de fazer o seu papel, que é preservar o direito à vida, mas também garantir que as pessoas que vierem a matar possam ser absorvidas por esse crime. É algo assustador. A pena de morte já foi decretada pelo governador Witzel, pelo Moro, pelo Bolsonaro há muito tempo. Então essa é a situação que a gente vê hoje: da barbárie virando política pública de Estado”, destaca Renata.
Dani complementa que a atual política de segurança pública pautada no extermínio tem relação direta com o assassinato de Marielle. “A própria bala que a atingiu foi um lote desviado da Polícia Federal, que inclusive foi o mesmo lote de balas que foi a maior chacina de São Paulo, que foi Osasco e Barueri, em que foram mortos 21 jovens em uma única noite. E são todos lotes de balas do Estado. Então a primeira resguarda tem que ser dentro da institucionalidade. Se tem desvio de arma, como esse desvio acontece e como o Estado pode intervir nisso? Se a gente quer desmantelar as máfias que existem a milícia, o Escritório do Crime no nosso estado, a gente precisa desmantelar as facções. Mas essas não são questões para os atuais governos”, afirma.
Inspiração
As três avaliam que tem um trabalho árduo pela frente e garantem que seus mandatos têm a postura de enfrentamento ao conservadorismo, com inspiração na atuação de Marielle.
“É muito engraçado porque quando eu tava no mandato a gente ficava assim: ‘ai, a Marielle reclama demais, a Marielle isso, a Marielle aquilo’. Só que dali a pouco você se vê estando numa situação e você fica perdida, em seguida você lembra: ‘ah, a Marielle nessa situação faria exatamente isso’. E aí você faz. Então, é no dia a dia. No assinar um projeto, no encarar um deputado do PSL. ‘A Marielle ficava assim, eu vou ficar assim também’”, explica Dani.
Para Mônica, a inspiração na força de Marielle encontra espaço nas lutas diárias mas também simbólicas. “Ela inspira o sentimento de cumplicidade da dor das mulheres negras. Da dor, da força, da capacidade de resistir, da resiliência, de superar. E não é aquela superação de frase de efeito, é de superar as próprias limitações, os medos, as angústias. A Marielle é inspiração não porque ela virou um símbolo numa camiseta ou numa bandeira ou porque foi executada, mas pelo que ela era em vida realmente”, afirma.
Renata complementa que Marielle se tornou um símbolo porque lutou para evitar que humanidade se desumanize. “Ela ousou estar nesse espaço que é tão homofóbico, LGBTfóbico, racista, machista, classista. Ousou dizer que as mulheres estariam onde elas quisessem ou deveriam estar. A luta é maior do que o corpo dela, do que sua presença física. E a Marielle é gigante porque ela continua presente”, conclui.
Dos cinco projetos aprovados em sessão extraordinária após seu assassinato, apenas um foi implementado
Por Mariana Pitasse Rio de Janeiro (RJ)
Durante a curta carreira parlamentar, em pouco mais de um ano de mandato, Marielle Franco (PSOL) apresentou 16 projetos de lei na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, sendo oito individuais e oito assinados com outros vereadores. Cinco desses projetos foram aprovados em sessão extraordinária, em agosto do ano passado, cinco meses após seu assassinato. No entanto, mesmo após terem se tornado lei, a maioria dos projetos encontra barreiras em sua implementação e apenas um deles passou a valer na prática: a Lei 6389/2018, que institui o 25 de julho como o “Dia Tereza de Benguela e da Mulher Negra” no Rio de Janeiro.
Os outros quatro projetos encontram-se em diferentes situações. Dois deles estão em queda de braço com o prefeito Marcelo Crivella (PRB), tendo sido vetados com a justificativa de que criariam um aumento das despesas públicas. Em seguida, tiveram o veto derrubado pela Câmara dos Vereadores, o que os tornou leis, mas não foram efetivados enquanto políticas públicas. Um deles tem por objetivo a criação de um “Espaço Infantil Noturno” (ver abaixo) de acolhimento para crianças, no período em que pais estão no trabalho ou na escola, o outro visa dar continuidade ao processo de formação dos adolescentes que cumpriram medidas socioeducativas.
“Ou seja, a gente tem importantes leis aprovadas, mas que a prefeitura não implementa”, sintetiza o vereador e colega de partido de Marielle, Tarcísio Motta (PSOL). De acordo com a assessoria de comunicação da Prefeitura do Rio, o governo ainda está analisando as medidas que serão adotadas em relação às leis.
Aprovados e sancionados pelo prefeito do Rio, outros dois projetos ainda não foram efetivados na prática. São eles: a Lei 6394/2018, que cria o “Dossiê Mulher Carioca”, uma espécie de estatística periódica sobre as mulheres atendidas pelas políticas públicas no município, e também a Lei 6415/2018, que trata sobre a elaboração de uma campanha permanente de enfrentamento ao assédio em locais públicos da cidade.
“Ela batizou esse projeto de ‘Assédio não é passageiro’, e essa lei está valendo. A ideia é, por exemplo, que as empresas coloquem cartazes nos transportes públicos, anunciando a questão do assédio como crime. Também dizendo o número que a mulher assediada pode ligar, além de algumas mensagens educativas para os homens. Precisamos pressionar a prefeitura para implementar essas leis. É uma luta permanente”, acrescenta Motta.
A sessão extraordinária de agosto do ano passado foi precedida de uma reunião dos vereadores do campo progressista com os outros parlamentares para alinhar o parecer favorável à maioria dos projetos de Marielle. Na ocasião, os parlamentares também aprovaram a lei que passou a nomear o plenário do Palácio Pedro Ernesto com o nome de Marielle Franco. Segundo Tarcísio Motta, um dos articuladores da sessão extraordinária, houve resistência de parlamentares fundamentalistas aos projetos que tratavam de questões de gênero.
Projetos como o 72/2017 que pretende instituir o “Dia da luta contra a homofobia, lesbofobia, bifobia e transfobia” e o 82/2017 com o objetivo de criar o “Dia da visibilidade lésbica” tiveram votações adiadas por gerar polêmica entre os parlamentares. Já o projeto que trata sobre tratamento humanizado na rede pública de saúde em casos de aborto legal, não foi sequer discutido e está fora de pauta desde 2017.
“Mesmo assim não acredito que foi apenas uma aprovação simbólica. São as ideias dela concretizadas em projetos de lei que podem mudar a vida das pessoas. Mas não basta só aprovar, a prefeitura tem a responsabilidade de implementar esses projetos. Nossa luta agora é essa. Muitos precisam de um decreto da prefeitura regulamentando para que sejam implementados”, destacou Motta.
Projetos assinados por Marielle e outros vereadores, de forma coletiva, estão ainda sendo colocados em pauta para votação por parlamentares do PSOL. Um dos que está mais próximo do início da fila para ser votado, conforme informações disponibilizadas no site da Câmara dos Vereadores do Rio, é o PL 642/2017 que pretende instituir assistência técnica gratuita para habitações de interesse social, elaborado em parceria com o Tarcísio Motta.
Espaço Coruja
Principais bandeiras de sua atuação, os projetos apresentados ao plenário da Casa legislativa logo na primeira semana de mandato foram os apelidados de “Espaço Coruja”, o PL 17/2017, e “Pra fazer valer o aborto legal”, PL 16/2017.
O primeiro, que se tornou lei, tem como objetivo criar um Espaço Infantil Noturno que prevê o uso de creches e outras estruturas infantis da rede municipal para receber e desenvolver atividades com crianças de seis meses a cinco anos com o objetivo de “atender à demanda de famílias que tenham suas atividades profissionais ou acadêmicas concentradas no horário noturno”, segundo o texto que descreve a iniciativa.
Enquanto a prefeitura não implementa a lei, milhares de mães e pais continuam sem amparo do poder público. É o caso de Nathalia Correa, de 27 anos, moradora de Irajá, na zona Norte do Rio de Janeiro. Para ela, o projeto é urgente. Nathalia é mãe de Arthur, de cinco anos, e estudante de pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ela é mãe solo, ou seja, assume todas as responsabilidades pela criança, sejam financeiras ou por disponibilidade de tempo.
“Eu faço faculdade no horário noturno e não tenho uma solução fixa para meu filho. Tem dias que deixo com a minha mãe, mas nem sempre ela pode. Tem dias que eu deixo de estar na faculdade para estar com ele ou às vezes o levo comigo, mas isso pode ser um problema porque tem professores que não aceitam”, explica.
Na avaliação de Natália, a lei pode beneficiar principalmente as mulheres, que ainda são as principais responsáveis pelos cuidados com os filhos e correm o risco de perderem seus empregos ou terem que largar seus estudos por não terem condições de contratar alguém para cuidar deles.
É o que comprova uma pesquisa do Ministério da Educação feita em 2016. Segundo o levantamento, 18,1% das mulheres, entre 15 e 29 anos, indicaram a gravidez como motivo para largar os estudos. Já entre os homens da mesma faixa etária, somente 1,3% interrompem os estudos pela mesma razão.
Aborto legal
O outro projeto apresentado por Marielle logo que assumiu o mandato foi pensado para garantir o direito de atendimento humanizado e sem violências às mulheres que estão em situação de aborto legal. No Brasil, o aborto é um direito garantido às mulheres em caso de anencefalia, risco de morte e gravidez decorrente de estupro. Apesar disso, muitas mulheres nessas situações esbarram no preconceito, com a falta de informação e até com maus tratos de profissionais da saúde que as atendem. Nesse sentido, a ideia do projeto é garantir o que já está previsto em lei, e assim, evitar mortes e tratamento inadequado para as mulheres que precisam de cuidados da rede pública de saúde.
Em 2014, quase 5% das mortes maternas no Brasil tiveram como causa o aborto, de acordo com levantamento feito pela campanha “Legal e Seguro”, promovida pelas organizações Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e IPAS – Saúde, Acesso e Direitos.
Ainda segundo o levantamento, mulheres negras são as maiores vítimas de óbitos. Esse quadro se explica porque elas são levadas a buscar ajuda em situação limite, seja por medo de serem maltratadas ou mesmo por falta de acesso à informação qualificada. O projeto de Marielle trata justamente desses casos e não foi sequer colocado para votação na Câmara dos Vereadores do Rio.
“Não é um projeto que autoriza o aborto. Ele quer simplesmente garantir o que já estava previsto em lei: que a mulher que tem aborto espontâneo ou garantido por lei seja tratada humanamente dentro dos hospitais públicos. Mas a gente tem uma Câmara de Vereadores muito conservadora. Muito afinada com todo esse debate intransigente em relação ao aborto porque são fundamentalistas religiosos. Então trazem para o Estado, que é laico e que deveria legislar para todos, aqueles preceitos que eles acham que tem na Bíblia. Então isso foi um problema completo”, lembra a deputada estadual do Rio de Janeiro Renata Souza (PSOL), que foi chefe de gabinete de Marielle durante seu mandato.
Figura pública
Mulher, negra e nascida na favela da Maré, na zona Norte do Rio de Janeiro, Marielle teve a luta pelos direitos humanos como seu objetivo de vida desde cedo. Mas foi na luta institucional que ela se tornou figura pública, reconhecida como liderança em ascensão no Rio de Janeiro e tornando-se a quinta vereadora mais votada nas eleições municipais de 2016, com mais de 46 mil votos.
Marielle era socióloga, com mestrado em Administração Pública. Antes de se tornar vereadora, já tinha atuação na política institucional, com mais de 10 anos como assessora parlamentar do então deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), período em que integrou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
“A candidatura de Marielle foi fruto de força e vontade coletivas. Um dia ela entrou em minha sala e disse para mim que seria candidata. Respondi que ela estava pronta para se candidatar. Falei para ela: ‘voa’. Mari estava no momento certo, amadurecida, preparada. Ela trabalhou comigo desde o meu primeiro dia na Alerj. Fomos nos transformando e amadurecendo juntos no parlamento”, conta Freixo.
Quando assumiu o mandato como parlamentar, Marielle continuou defendendo os direitos das mulheres e da população mais pobre, combatendo o preconceito e a violência na Câmara do Rio. Foi presidente da Comissão da Mulher da Câmara de Vereadores e também relatora de uma comissão composta por quatro parlamentares, que tinha como objetivo monitorar a intervenção militar no Rio de Janeiro.
“Infelizmente, Marielle só se tornou esse símbolo por causa de seu assassinato. Para nós que convivemos com ela, sempre foi uma potência, sempre teve capacidade de representar mulheres, negras e faveladas. Mas seu aparecimento como símbolo ocorre, infelizmente, após sua morte. Aí deixo a minha crítica. Por que o Brasil ou o mundo não conheceram Marielle antes?Acho que no fundo, essa comoção com seu assassinato, passa por um desejo frustrado, uma dor de quem não pode ter conhecido essa mulher incrível quando ela estava viva”, conclui o deputado.
De acordo com o relatório sobre a intervenção militar, a Delegacia de Homicídios do Rio amarga uma das piores taxas de elucidação de assassinatos do Brasil. Entenda o desenrolar da investigação e como ela demonstra que o maior poder paralelo no Brasil é o próprio Estado.
Por Jaqueline Deister, Rio de Janeiro (RJ)
“Esse assassinato da Marielle se inclui nesta lógica muito antiga das execuções sumárias que surgem dentro da ditadura empresarial-militar em 1964. Ela é uma prática difundida a partir dos órgãos de segurança que o Estado, naquele momento, está consolidando como a polícia militar, como um órgão de auxílio ostensivo, de auxílio à ditadura e à repressão”, explica José Cláudio Souza Alves, professor de Sociologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
O pesquisador estuda há 26 anos a violência na Baixada Fluminense. De acordo com ele, as milícias que atuam no Rio são uma evolução dos grupos de extermínio da Baixada que existem desde os anos de chumbo.
Licença para matar
A licença para matar, que há mais de 50 anos foi dada para os grupos paramilitares, se tornou um sofisticado e rentável mecanismo de lucro para os integrantes do que se chama hoje de milícia. Além de realizar assassinatos por encomenda, os milicianos dominam o comércio e o transporte em favelas cariocas e conhecem intimamente o funcionamento da máquina pública. Segundo Alves, a milícia está “capilarizada” por toda a estrutura do Estado, o que torna tão difícil conter o seu avanço.
“Eu nunca trabalhei com a lógica de que são grupos paralelos ou de uma ausência do Estado e a partir desta ausência estes grupos se formaram, ao contrário. Eles só existem desta forma, a milícia e, no passado, os grupos de extermínio, graças a sua existência dentro do próprio Estado. Por exemplo, na execução da Marielle não há filmagens, acesso ao circuito de câmeras, há o apagamento de pistas, tudo isso combinado com a demora para a solução demonstra que os grupos tiveram acesso à informação privilegiada”, destaca o autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”.
Crime
Marielle foi assassinada após sair de um evento com mulheres negras, na região central da cidade. O carro em que a vereadora estava foi emparelhado na rua Joaquim Palhares, no Estácio, por um veículo modelo Cobalt. Ao todo, foram 13 disparos efetuados. Quatro atingiram a cabeça da vereadora e três o motorista Anderson Gomes. Ambos morreram na hora. A assessora de Marielle, Fernanda Chaves, foi a única sobrevivente do atentado.
De acordo com as informações divulgadas pela imprensa, a arma utilizada foi uma submetralhadora alemã HK MP5 9 mm e os tiros foram efetuados em uma distância de aproximadamente dois metros. O então ministro da segurança pública Raul Jungmann informou à época que as munições utilizadas no crime pertenciam a um lote vendido para a Polícia Federal (PF) de Brasília que foi roubado na sede dos Correios da Paraíba em 2006.
Após o presidente dos Correios, Guilherme Campos Júnior, dizer desconhecer o episódio, Jungmann explicou que usou o caso para exemplificar o extravio e desvio de munição da PF que foi encontrada em outras cenas de crimes sob investigação.
De acordo com as informações divulgadas, as munições do assassinato de Marielle e Anderson foram usadas na chacina de Osasco na grande São Paulo, no ano de 2015, e também nos assassinatos de cinco pessoas em guerras de facções de traficantes, no município de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio.
A ponta do iceberg
O caso Marielle evidenciou um problema recorrente no estado do Rio de Janeiro. A dificuldade da polícia para elucidar os crimes de homicídio. De acordo com o relatório “Intervenção Federal: um modelo para não copiar”, lançado neste ano pelo Observatório da Intervenção, a Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro amarga uma das piores taxas de elucidação de assassinatos do Brasil. O estudo aponta ainda que as unidades de perícia e os Institutos Médicos Legais (IMLs) estão sucateados e que as escalas de trabalho praticadas em diversas delegacias (24hx72h) não são adequadas à investigação.
“A PCERJ (Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro), a despeito de ter passado por uma mudança profunda a partir de 1999, com o Programa Delegacia Legal, não criou uma cultura investigativa e de inteligência para suas delegacias. As distritais são cartórios de registros de ocorrência e raramente se envolvem na investigação de crimes que incidem naquelas áreas. Os delitos considerados importantes são transferidos para as especializadas”, aponta o relatório.
Dados do levantamento de 2017 “Onde mora a impunidade?” do Instituto Sou da Paz revelam que o Rio de Janeiro solucionou somente 12% das ocorrências de homicídios dolosos em 2015, de um total de 25,4 mortes por 100 mil habitantes — a 17º maior taxa de homicídios do país.
Cortina de fumaça
O caso ocorreu 28 dias após o início da intervenção militar na segurança pública do estado do Rio de Janeiro e tornou-se o calcanhar de aquiles das Forças Armadas. A repercussão internacional do crime e as pressões externas e internas para a solução do caso fez com que o interventor à época, general Walter Braga Netto, garantisse que até o fim da intervenção, dia 31 de dezembro, o crime estaria resolvido. Contudo, a declaração não passou de especulação e falsa promessa, mais de nove meses depois, o crime permaneceu envolto sob uma cortina de fumaça que nem mesmo os advogados que acompanham o caso conseguem adentrar.
Uma advogada que acompanhou o caso Marielle e prefere não se identificar relata que houve quebra de prerrogativa dos advogados impedindo que ela e outros profissionais da área do Direito que acompanham o processo, acessassem o inquérito.
“A prerrogativa existe não só para o advogado, mas para a garantia de direito dos clientes. É importante lermos o inquérito porque, desta forma, faz-se um controle sobre o que está acontecendo com as investigações, se todos os ritos processuais estão acontecendo, se o código de processo está sendo cumprido e se todos os direitos estão sendo garantidos. A falta de transparência nesse sentido, faz com que a gente fique muito inseguro sobre as investigações”, relata.
`
As novas peças do tabuleiro
A dois dias de completar um ano do crime político que assassinou Marielle Franco e Anderson Gomes a Polícia Civil e Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO) prenderam o policial militar reformado Ronnie Lessa, acusado de ter efetuado os disparos que mataram a vereadora e o motorista e Élcio Queiroz, ex-sargento da PM, suspeito de dirigir o carro de onde partiram os tiros. Em coletiva de imprensa realizada na tarde de terça-feira (12), o delegado Giniton Lages, titular da Delegacia de Homicídios (DH) da Capital, detalhou a primeira fase da investigação que levou a prisão dos dois homens responsáveis pelo atentado. De acordo com Lages, a certeza do envolvimento de Lessa e Queiroz no crime já existe há cerca de três meses. O delegado apontou ainda que a investigação contou com a participação exclusiva de 47 policiais, ouviu mais de 230 testemunhas no caso e recebeu 190 denúncias sobre o crime até agosto de 2018. Lages classificou o crime como “sofisticado”.
Segundo o pronunciamento do titular da DH, o carro modelo Cobalt que foi utilizado no crime saiu do Quebra-Mar, na Barra da Tijuca, na zona oeste, em direção a Rua dos Inválidos, onde a vereadora participava de um evento e lá os assassinos ficaram de “tocaia” aguardando o momento em que Marielle sairia.
“Entrou uma informação para nós dizendo que Ronnie Lessa estava no carro que saiu do Quebra-Mar e quando nós visitamos o banco de imagens, estava o carro deixando o Quebra-Mar e isso nos obrigou a traçar o perfil psicossocial do apontado”, relata.
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPERJ) também se pronunciou sobre o caso após quase um ano de investigação. De acordo com as promotoras Simone Sibílio e Letícia Petriz, que estão a frente da investigação, a motivação do crime que matou Marielle e Anderson foi torpe, ou seja, ligado às causas que a vereadora defendia. “A motivação abjeta é decorrente da atuação política de Marielle, mas não repele o mando. Estamos numa primeira fase. Nenhuma linha é descartada”, afirma Sibílio que também é coordenadora do GAECO. De acordo com o Ministério Público, ainda não há provas contundentes que liguem Ronnie Lessa com a milícia, mas há indícios de que ele tenha envolvimento com grupos paramilitares. O órgão já investiga o ex-PM por ligação à contravenção e prática de homicídios. Quem são os acusados?
Ronnie Lessa mora no mesmo condomínio que Jair Bolsonaro, na Barra da Tijuca. O PM reformado passou pela Polícia Civil e também integrou o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) e ficou conhecido por executar crimes de mando e pela eficiência e frieza em puxar o gatilho.
Em 1998, Lessa recebeu uma homenagem na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). A mostra de admiração foi concedida pelo ex-deputado Pedro Fernandes Filho, já falecido, que era avô de Pedro Fernandes Neto (PDT), que atualmente é secretário de Educação do governador Wilson Witzel (PSC). O autor da moção também é pai da vereadora Rosa Fernandes (MDB). Segundo registros, ele seria homenageado “pela maneira profissional como vem pautando sua vida profissional como policial militar”.
Lessa foi afastado da polícia após um atentado a bomba que sofreu no Rio de Janeiro, há 10 anos. De acordo com a investigação na época, a motivação para o ataque teria sido uma briga entre facções criminosas.
A explosão ocorreu quando o policial passava com o seu carro blindado, uma picape Toyota Hilux prata, pela rua Mirinduba, a poucos metros do 9ª BPM, que fica em Rocha Miranda, zona norte carioca.
Já Élcio Queiroz, acusado de dirigir o Cobalt utilizado na ação que matou Marielle e Anderson, foi expulso da PM em 2016 por fazer segurança ilegal em uma casa de jogos de azar no Rio.
Dúvidas permanecem
A advogada, que opta por manter o nome sob sigilo, revela que esperava novidades sobre o caso no mês de março. Segundo ela, foi uma surpresa o suposto líder do Escritório do Crime, Adriano Magalhães da Nóbrega, não ser um dos envolvidos no atentado. A advogada relata que foi a primeira vez que viu um motivo torpe, que é usado para agravar a pena, ser apontado como motivo de execução.
“Eu como advogada estou surpresa pela forma como eles fizeram essa entrega parcial, dividindo em etapas, entregando primeiro os executores. Eles alegam motivo torpe e encerram o inquérito para a execução. Motivo torpe, tecnicamente, é uma qualificadora visto pelo juízo no momento do cálculo de pena. Quando tem qualificadora há aumento de pena. Nunca vi isso ser um motivo. Encerraram a primeira etapa sem a motivação do crime”, explica.
Um avanço ocorreu na investigação, porém as peças do tabuleiro seguem faltantes e ainda não dão conta de responder ao grito que ecoa pelo país e pelo mundo: Quem mandou matar Marielle?
Para Mônica Benício, manter a execução de Marielle sem respostas é afirmar que pode se matar mulher, negro, LGBT e favelado no Brasil
Por Mariana Pitasse – Rio de Janeiro (RJ)
Caiu, levantou, caiu de novo, recebeu apoio de familiares, amigos e desconhecidos, levantou. “Se não fosse por isso, não conseguiria me manter de pé por tanto tempo”, diz em entrevista ao Brasil de Fato durante uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro.
Convivendo com a dor e o luto, ela deixou de lado os projetos pessoais e tornou sua vida devotada à campanha “Justiça por Marielle”. Em meados de fevereiro deste ano, mudou-se para Brasília e assumiu um cargo na liderança do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) na Câmara Federal. Hoje não se reconhece mais na arquiteta que tinha planos de se tornar professora universitária.
“Existia um entendimento de que era bom por questão de segurança, dar um pouco de tempo do Rio, mas o que me estimulou de fato foi ir para dentro do congresso, acompanhar de perto a política institucional e construir o trabalho que virou minha vida em tempo integral, enquanto defensora dos direitos humanos, enquanto ativista LGBT, em torno de justiça por Marielle”, explica.
Passado um ano da execução de Marielle Franco, um crime que segue rodeado de mais perguntas que de respostas, Mônica afirma que a resolução do inquérito não é o fim de sua luta. É o começo. “Marielle só vai ter justiça quando tivermos uma sociedade de fato mais justa e igualitária, que é pelo que ela lutava, e o que sempre lutei também”, acrescenta.
Na vitória da Mangueira, ela enxerga de forma otimista que há início do processo de justiça por Marielle. “A vitória nos diz que a gente pode fazer uma leitura de esperança quando a imagem de Marielle se torna uma referência, se torna um símbolo de representatividade. Isso é dizer não só que a vida dela não foi em vão mas também que a morte não será”, enfatiza.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Você disse que não foi à Sapucaí para desfilar, mas para fazer um ato político. Como foi estar lá?
Mônica Benício: Foi uma decisão difícil aceitar o convite para desfilar, mas eu entendi dessa forma. Não estava indo para a avenida para desfilar, mas para fazer ato e participar de uma manifestação, sobretudo porque sempre entendi o carnaval como espaço popular de resistência e a Mangueira trouxe um enredo urgente e necessário na nossa conjuntura política. Então, somando tudo isso, a visibilidade que isso estaria dando à imagem da Marielle, entendendo também como preservação da memória dela e continuidade desse legado, eu aceitei o convite do carnavalesco que foi muito sensível. Eu vim abrindo a última ala, que é a das comunidades, e está falando sobre pessoas de origem da favela que alcançaram notoriedade com os seus feitos. Então, eu enquanto mulher favelada, de origem da Maré, me senti contemplada ali também.
Foi a primeira vez que participei de um ato que estava trazendo felicidade, não tinha só a questão da luta, de transformar o luto em luta. Ouvir as pessoas gritando o nome da Marielle naquele samba que foi maravilhoso, foi muito emocionante. Tinha uma preocupação se eu ia conseguir atravessar a avenida sem ser aos prantos o tempo inteiro. Impressionante, é uma energia tão positiva que ressignifica aquele momento. Inclusive eu acho que a vitória da Mangueira é uma composição do inicio de justiça por Marielle, ressignificar a noite do 14 de março não só como barbárie que foi mas também a gente pode fazer uma leitura de esperança quando a imagem de Marielle se torna uma referência, se tornar um símbolo de representatividade. Isso é dizer não só que a vida dela não foi em vão mas também que a morte não será.
E o que significou a vitória da Mangueira?
Ajudou a ressignificar. Eu fui para assistir a apuração na quadra e dei uma blusa “Lute como Marielle Franco” em verde e rosa para a Cacá [Nascimento], que é uma das puxadoras do samba. Antes de ela cantar e fazer a interpretação, eu entreguei a blusa e ela tirou a blusa que estava vestindo, vestiu essa blusa. Foi a primeira vez nesses meses que chorei de felicidade. Era uma menina, negra, de origem da Mangueira, lutando. Fez sentido toda a dor, toda a luta, todo o esforço que se faz para levantar de manhã e seguir lutando.
Nos últimos dias alguns veículos de comunicação veicularam que a Mangueira não convidou a outra parte da família de Marielle para o desfile. Qual a sua avaliação sobre?
A outra parte da família da Marielle estava ali representando, no desfile da Vila Isabel, a memória da Marielle também. O convite da Vila não foi feito a mim, por motivos óbvios: eles estavam em uma ala que representava a negritude. Já tinha tido uma nota pública, de que a família desfilaria, tanto que o carnavalesco da Mangueira quase não me convidou porque achou que o convite já tinha sido feito a mim. Quando ele soube que não foi que ele me convidou e o argumento que foi apresentado pela escola foi que causaria um constrangimento à Vila Isabel por ter feito o convite primeiro. Não sei avaliar isso, sei avaliar por mim que fiz uma reflexão sobre isso e resolvi aceitar pelo o que poderia estar representando enquanto luta. Acho que de certa forma a Marielle foi representada nas duas escolas. Mas entendo o desconforto da outra parte da família, quando diz que gostaria de ter participado do desfile da Mangueira também. Como é completar um ano sem respostas sobre o crime?
Difícil em todos os sentidos, no emocional também. Quando a execução da Marielle não é respondida e quem mandou fazer não é responsabilizado pelo que fez, a gente vive em uma sociedade que passa informação de que pode se matar defensor de direitos humanos, de que pode se matar mulher, negro, LGBT e favelado. A Marielle tinha na vida e no corpo todas as construções que ela defendia. Então a execução dela foi um recado claro à população preta, para se sentir de novo a carne mais barata do mercado, à população LGBT, que sempre ocupou as páginas de sangue do jornal, às mulheres, que sempre conheceram a violência de muito perto, à população favelada, que nunca teve voz nos espaços de poder. Foi uma tentativa de silenciar tudo isso. Não ter respostas há um ano de um dos crimes políticos de maior repercussão no mundo, é não só doloroso, mas vergonhoso também. A gente precisa concluir isso para acreditar que ainda há alguma coisa de democracia e esperança nesse país.
Qual foi a transformação pessoal e política que você sentiu ao longo desse um ano?
Nos primeiros meses, eu tenho flashes do que foi minha vida, não só de intensidade e dor de tudo o que aconteceu, mas porque tinha uma abstenção de consciência de fazer contato com a realidade. Eu fui me pronunciado a respeito da execução de Marielle para cobrar por justiça. Eu fiquei um tempo longe das redes sociais, eu não lia jornais, não acompanhava o que saia sobre o caso. Eu fiquei muito blindada. Pedi aos amigos que só chegasse para mim o que fosse bonito, construído com a memória da Marielle. Então, nos primeiros meses, eu fiquei muito ausente do que estava acontecendo ainda que já estivesse me pronunciando publicamente. Quando eu acordo desse momento eu já estou sendo reconhecida na rua, as pessoas vem me abraçar, demonstrando afeto. Isso foi me dando força para sair um pouco desse transe e ter mais contato com a realidade. Foi uma mudança de vida completa. Um giro de 360 graus. Todos os projetos pessoais foram abandonados, o autocuidado também foi abandonado por muito tempo. Se não fosse o apoio dos amigos, da família, das manifestações públicas, das mensagens de solidariedade nas ruas e nas redes sociais, eu não conseguiria me manter de pé por tanto tempo.
Ao longo desse ano, foram construídas narrativas para deslegitimar a memória de Marielle, ao mesmo tempo em que sua imagem enquanto símbolo de resistência foi fortalecida. Você acredita que foi uma vitória dessa narrativa da esquerda?
Sem dúvida nenhuma. Quando eu pedi para não me avisarem, eu fui blindada sobre isso mas tinha algumas notícias do que estava acontecendo. O contato com as advogadas era para tomarem as providências cabíveis quanto a isso para preservar a memória dela. Mas eu acho que ver a vitória da Mangueira, as manifestações que estão acontecendo no campo global, também ver as mulheres se articulando em um movimento que já estava acontecendo antes de 14 de março, mas que hoje tem a imagem da Marielle como um símbolo de referência, somando nesta luta, é sem dúvida nenhuma uma resposta muito positiva de que nosso movimento não dará nenhum passo atrás, pelo contrário: a gente somou forças diante de toda a violência e está se articulando para dizer que não aceitaremos a barbárie, que não só a Marielle não será interrompida, mas que nenhuma outra mulher será.
Você está sempre fazendo viagens internacionais para buscar solidariedade de outros países para resolução do caso da Marielle. Como as pessoas tem recebido internacionalmente?
A repercussão internacional da imagem de Marielle tem sido surpreendentemente bonita. Desde março eu tenho convites de vários coletivos feministas e LGBT do mundo. Eu nunca tinha feito uma viagem internacional. A gente tinha tirado o passaporte em janeiro. Depois disso eu já conheci muitos países da Europa e América Latina. Todos com convites de eventos que tinham não só desejo pela luta e memória de Marielle, mas também proporcionar o acolhimento e solidariedade a mim e minha luta. Isso de certa forma me faz sentir que tem uma continuidade de parceria e companheirismo com ela. É uma forma de permanecer ainda. Tem sido muito surpreendente. Quando a foto da Marielle vai parar na porta da Prefeitura de Paris é um marco. Em momento nenhum a gente podia esperar uma repercussão como essa. De toda a dor que a gente pode ter, como que a gente consegue algo positivo, dentro desse contexto. Mais importante que a porta da Prefeitura de Paris é ver tantos grafites da Marielle em várias comunidades. Ver a imagem de Marielle pode ser vista por uma menina negra ou lésbica e dar força para que elas possam ocupar todos os espaços, inclusive os de poder, é sem dúvida ressignificar em esperança a noite do 14 de março.
Como está sendo o trabalho em Brasília na liderança do PSOL na câmara?
Desde o 14 de março, todos os projetos pessoais foram abandonados, o que resta ainda hoje de forma muito lenta é a tentativa de continuidade do mestrado mas que ainda assim muito difícil, minha vida ficou completamente devotada à campanha de “Justiça por Marielle” que foi tomando uma proporção que jamais esperei que pudesse alcançar. Hoje eu assumo um lugar que jamais eu pensei que pudesse ocupar. Nunca tive a pretensão de ser figura pública, mas as coisas foram acontecendo, de certa forma impulsionada por um movimento que fui fazendo sem perceber que estava construindo.
Hoje, a Mônica até o início da noite do 14 de março é uma pessoa que não consigo lembrar. Minha pretensão era seguir carreira acadêmica. Pode ser que isso aconteça em algum momento mas a prioridade nesse momento é outro. O PSOL fez o convite para a liderança. Existia um entendimento de que era bom por questão de segurança, dar um pouco de tempo do Rio, mas o que me estimulou de fato foi ir para dentro do congresso e acompanhar de perto a política institucional e construir o trabalho que virou minha vida em tempo integral, enquanto defensora dos direitos humanos, enquanto ativista LGBT, em torno de justiça por Marielle, que não vai se encerrar somente com o final do inquérito, mas quando tivermos uma sociedade de fato mais justa e igualitária, que é o que a Marielle lutava, e o que sempre lutei também. A gente entende que isso começou muito antes da Marielle tombar porque muitas outras tombaram antes.
Você já tinha uma aproximação com essas pautas antes?
Eu sou militante dos direitos humanos desde os 17 anos, quando eu entro no pré-vestibular comunitário na Maré, através de um professor que tinha grande relação com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] que na época eu também não conhecia. Então eu começo a ter contato com os movimentos sociais, participando de rodas de conversas, manifestações. Eu nunca pretendi o palanque, o microfone, o megafone, pelo contrário, esse local de protagonismo sempre me deixou nervosa, sempre fui muito tímida na hora de fazer pronunciamento em público. Hoje tomou outra proporção, eu ocupo outro lugar e tenho desejo de fazer isso com o máximo de responsabilidade possível.
Como era a vida de vocês antes do 14 de março?
Olha, era uma vida corrida, mas nosso relacionamento não tinha nada de diferente de um casal comum. Ela era uma pessoa pública e tinha uma agenda muito intensa pelo trabalho que fazia. Eu estava dedicada à minha vida no mestrado. Quando ela é eleita, nosso acordo é que eu podia me voltar mais aos assuntos da casa e ela à vida pública. Então tinha essa parceria. Eu gostava de cuidar das coisas da casa, de transformar em um ambiente acolhedor, que era nosso. Não era muito o perfil dela isso. Ela gostava mais de se permitir ao acolhimento, sem necessariamente estar organizando, ela não tinha muito jeito para isso, de fato. A gente tinha muita parceria e cumplicidade mas era uma vida comum.
Por que Marielle se tornou o símbolo que é hoje?
Marielle tinha um trabalho que pouco era reconhecido, pelo menos não do tamanho que se tornou a imagem dela hoje. Mas eu acho que fala muito sobre uma urgência que a gente tem de transformação social. Eu acho que as balas disparadas contra Marielle atingiu toda a população preta, LGBT, mulheres que se sentiram violentadas mais uma vez por esse Estado que sempre foi truculento e esses governantes que nunca os representaram de fato. Foi a gota d’água. A gente dizendo que não vai mais aceitar esse tipo de violência contra nós. Ai usa a imagem da Marielle, transforma Marielle como símbolo, mas fala muito de anseio social que a gente vem buscando há algum tempo. Inclusive a eleição da Marielle foi muito marcante por isso. No início da campanha por Marielle o cenário mais otimista achava que a gente poderia ter 5 mil votos, já no final da campanha o cenário mais otimista apontava para 10 e 15 mil votos. Aí ela é eleita com 42.506 votos, a segunda vereadora mais votada no Brasil e a quinta no Rio de Janeiro. Foi a resposta de que a gente quer mudança e depois da execução dela, a resposta é de que a gente não vai mais aceitar esse tipo de violência contra nós.
Ela tinha consciência da potência que ela era?
Não. Tanto que no período da discussão do que ela viria a ser no período eleitoral ela tinha um desejo que era terminar o mandato como vereadora. É óbvio que ela era uma figura política em ascensão. Ela era parada nas ruas para as pessoas abraçarem e dizerem que ela as representava. Sempre era com carinho e com afeto até nas redes sociais, mesmo quem discordava não tinha uma afronta direta a ela. Ela não tinha noção nem de que era a potência que a gente hoje consegue perceber claramente que era, nem que poderia estar em algum risco por não se perceber enquanto potência nesse sentido.
Em poucas palavras, o que a Marielle significa para você?
Eu vou falar não enquanto Mônica companheira de Marielle, mas enquanto Mônica militante de direitos humanos, Marielle representa hoje para mim: resistência e revolução.