Fernando Santa Cruz Oliveira, pai do presidente do órgão, desapareceu após ter sido preso por agentes do regime militar no Rio
Talita Fernandes
Ricardo Della Coletta
Folha
Ao reclamar sobre a atuação da OAB na investigação do caso de Adélio Bispo, autor do atentado à faca do qual foi alvo, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) disse que poderia explicar ao presidente do órgão, Felipe Santa Cruz, como o pai dele desapareceu durante a ditadura militar.
“Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele.”
“Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”, disse o presidente.
Felipe é filho de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, desaparecido em fevereiro de 1974, depois de ter sido preso junto de um amigo chamado Eduardo Collier por agentes do DOI-CODI, no Rio de Janeiro.
Fernando era estudante de direito e funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica em São Paulo e integrante da Ação Popular Marxista-Leninista. Felipe tinha 2 anos quando o pai desapareceu.
No relatório da Comissão da Verdade, responsável por investigar casos de mortos e desaparecidos na ditadura, não há registro de que Fernando tenha participado de luta armada.
O documento, inclusive, ressalta que Fernando à época do seu desaparecimento “tinha emprego e endereço fixos e, portanto, não estava clandestino ou foragido dos órgãos de segurança”.
Ainda sobre o caso de Adélio, Bolsonaro disse que ele “se deu mal”.
“Adélio se deu mal. Eu não recorri porque se recorresse ele seria julgado não por homicídio, mas tentativa de homicídio, em um ano e meio ou dois estaria na rua. Como não recorri, agora é maluco o resto da vida. Vai ficar num manicômio judicial, é uma prisão perpétua. Já fiquei sabendo que está aloprando por lá. Abre a boca, pô”, afirmou.
Sem manifestações de Bolsonaro e do Ministério Público Federal (MPF) em Minas Gerais, a 3ª Vara Federal de Juiz de Fora encerrou o caso.
Bolsonaro foi intimado no dia 28 de junho sobre a decisão e não recorreu. O MPF, no dia 17 daquele mês. O prazo para recursos se esgotou em 12 de julho.
Na decisão, o juiz responsável diz que a investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal não deixa dúvidas sobre a autoria do crime.
Mas, como o réu tem transtorno mental e é considerado inimputável, o magistrado decidiu pela absolvição imprópria (quando uma pessoa é declarada culpada por um delito, mas não tinha capacidade de entender o que estava fazendo quando cometeu o ato) e internação por medida de segurança.
Segundo a Lei de Execuções Penais, nesses casos o preso deve ser encaminhado a hospitais de custódia para receber tratamento psiquiátrico.
O juiz, porém, optou por manter Adélio no presídio federal de Campo Grande. Medidas de segurança não têm prazo determinado, e o preso depende da alta de um médico para que seja liberado.
QUEM FOI FERNANDO DE SANTA CRUZ OLIVEIRA
Militante da AP (Ação Popular), o pai do atual presidente da OAB foi visto pela última vez por seus familiares em 23 de fevereiro de 1974, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Fernando de Santa Cruz Oliveira havia saído de casa para encontrar um amigo de infância e havia dito à família que, caso não voltasse até as 18 horas daquele dia, “provavelmente teria sido preso”.
A Comissão Nacional da Verdade, criada pelo Estado para fazer um registro oficial dos crimes do regime militar, relata que Fernando e seu amigo —Eduardo Collier Filho, também militante contra a ditadura— provavelmente foram presos por agentes do DOI-Codi no Rio.
O relatório narra a partir daí o esforço dos familiares dos dois de descobrir, sem sucesso, o paradeiro de Fernando e Eduardo.
A mãe de Fernando chegou a ir ao quartel-general do 2º Exército, em São Paulo, quando recebeu a informação, de um agente do local, de que seu filho e Eduardo estavam naquelas dependências. Ao retornar, pouco dias depois, recebeu de outro funcionário uma informação diferente: a de que ocorrera um equívoco e que Fernando e Eduardo não estavam no 2º Exército.
Os familiares seguiram com as buscas, ainda de acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Foram enviadas cartas ao comandante do 2º Exército e ao general Golbery do Couto e Silva.
A família recebeu uma resposta do 2º Exército, que negou que Fernando estivesse preso desde fevereiro de 1974 em “qualquer dependência” da instituição [2º Exército].
O texto da Comissão Nacional da Verdade também revela que a família escreveu cartas à primeira-dama dos Estados Unidos, à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) e a Dom Helder Câmara, entre outras pessoas influentes.
O regime militar disse, em resposta à CIDH, que Fernando estaria vivendo na clandestinidade.
Apesar da versão oficial, a Comissão Nacional da Verdade cita um documento de 1978 no qual o Ministério da Aeronáutica reconhece que Fernando foi preso em fevereiro de 1974.
“Já na década de 1990, o Relatório da Marinha enviado ao então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, em dezembro de 1993, informava que Fernando teria sido preso no dia 23 de fevereiro de 1974, sendo considerado desaparecido desde então”, acrescenta o relatório.
A Comissão Nacional da Verdade elencou duas hipóteses para o caso do pai do atual presidente da OAB. A primeira é a de que, depois de preso no Rio, ele foi levado para o DOI-Codi em São Paulo.
“Essa indicação do DOI-Codi/SP como possível órgão responsável pelo desaparecimento de Fernando e Eduardo aponta para a possibilidade de os corpos dos dois militantes terem sido encaminhados para sepultamento como indigentes no Cemitério Dom Bosco, em Perus”, diz o texto.
Outra possibilidade levantada pela Comissão é a de que Fernando e seu amigo foram encaminhados para a chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), “e seus corpos levados posteriormente para incineração em uma usina de açúcar”.
“Fernando de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho permanecem desaparecidos até hoje”, conclui a Comissão Nacional da Verdade.