A Lava Jato se transformou naquilo que estava destinada a ser desde o começo: aparelho policial de um Estado paralelo
Folha
Reinaldo Azevedo
Deltan Dallagnol tem de dividir a cela com Walter Delgatti. Ambos são hackers —o segundo, em sentido estrito; o primeiro, em sentido derivado. Um recorre a seus conhecimentos técnicos para roubar dados de celulares; o outro se aproveita de sua condição para cometer abuso de autoridade e roubar institucionalidade.
Sim, há diferenças brutais entre eles, a exemplo daquelas caracterizadas por Padre Vieira em célebre sermão ao distinguir o ladrão grande do pequeno. Um rouba “debaixo de seu risco”; o outro, “sem temor nem perigo”; um, se rouba, é enforcado; outro “rouba e enforca”.
Atentem para o que vai entre aspas.
“Mas será mesmo necessário violar a legalidade para cassar corruptos? A resposta é ‘não!’.
Polícia Federal, Ministério Público e Justiça Federal, cada um por seu turno e, às vezes, em ações conjugadas, têm ignorado princípios básicos do Estado de Direito. Não é difícil evidenciar que prisões preventivas têm servido como antecipação de pena.
Basta ler as petições dos procuradores e os despachos do juiz Sergio Moro para constatá-lo. Mandados de busca e apreensão, como os executados contra senadores, um ano e quatro meses depois de iniciada a investigação, são só uma exibição desnecessária de musculatura hipertrofiada do poder punitivo do Estado (…).
Delações premiadas exibem contradições inelutáveis entre os autores e versões antagônicas de um mesmo delator. Parece estar em curso uma espécie de ‘narrativa de chegada’. A cada depoimento, ao sabor de sua conveniência, as personagens vão ajustando a sua história. Acumulam-se riscos de anulação de todo o processo, o que seria péssimo para o país.
Infelizmente, procuradores, policiais e juiz parecem não se contentar em fazer a parte que lhes cabe na ordem legal. Mostram-se imbuídos de um sentido missionário e doutrinador que vai muito além de suas sandálias, daí as operações e fases receberem nomes esdrúxulos e impróprios como ‘Erga Omnes’ e ‘Politeia’. Politeia? Quem quer viver na Coreia do Norte de Platão? Eu não quero!
Um dos doutores do Ministério Público disse em entrevista ser necessário refundar a República. Moro aventou a hipótese de soltar um empreiteiro em prisão preventiva desde que sua empresa rompesse todos os contratos com o poder público, uma exigência que acrescentou por conta própria ao artigo 312 do Código de Processo Penal.”
Fim das aspas. É um longo trecho de uma coluna que escrevi neste espaço no dia 17 de julho de 2015. Não foi a primeira crítica dura à Lava Jato nem a última. Os bravos rapazes se vingaram vazando conversa minha com uma fonte.
E o que havia de grave ou criminoso na dita-cuja? Bem, eu criticava uma reportagem da Veja, que hospedava meu blog, e citava o poeta Cláudio Manuel da Costa. Admito esse erro em particular. Deveria ter escolhido Tomás Antônio Gonzaga.
De qualquer modo, o recado era claro: “Ai daquele que ousar nos desafiar!”. E, como revela reportagem da Folha, em parceria com o site The Intercept Brasil, a mesma ameaça pesava contra ministros do Supremo. A Lava Jato se transformou naquilo que estava destinada a ser desde o começo: aparelho policial de um Estado paralelo.
Quem tinha o Estado de Direito como referência não precisava do acesso a mensagens privadas para perceber o permanente ataque à ordem legal, sob o pretexto de combater a corrupção, perpetrados por esses Savonarolas de meia-tigela.
Ocorre —e os diálogos que estão vindo a público também o revelam— que os ladrões de institucionalidade tinham consciência de que haviam sequestrado também a imprensa.
Enquanto engendravam o Estado policial, eram tratados em reportagens e capas de revista como os novos iluministas do Estado brasileiro. São ainda os cavaleiros sem mácula do Jornal Nacional e do Fantástico, apesar das evidências de crimes. O pedido de perdão pelo “erro” pode vir daqui a 40 anos.
Quando essa nova metafísica pariu seu estadista, deu à luz Jair Bolsonaro. Alguma surpresa?
A “Portaria Glenn Greenwald”, de Sergio Moro, o Pai de Todos, para a expulsão sumária de estrangeiro “que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição” —seja lá o que isso signifique— é a “666”.
É um número de fama milenar. Vou citar o mesmo João de Bolsonaro, só que o do texto do Apocalipse: “Aquele que tem entendimento calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis”.
Também sou cristão e metafórico; “terrivelmente” só às vezes.