(Re)conhecendo a Amazônia negra

(Re)conhecendo a Amazônia negra

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O projeto colonial tornou invisíveis as contribuições dessa população Norte

Na Folha

Pensar uma Amazônia negra ainda é algo distante para muitas pessoas. O projeto colonial brasileiro, presente até os dias de hoje, é fundado na sua romantização de um lado, e em apagamento e invisibilidade, de outro —sobretudo de identidades traumatizadas pelas violências do período.

São ecos das memórias da plantação, potente expressão desenvolvida por Grada Kilomba. Percebe-se, portanto, uma contínua tentativa de silenciamento das vozes desses grupos por um regime de autorização discursiva que detém o poder de dizer o que é saber, o que pode ser debatido e quem será exaltado.

Um exemplo bem interessante é a máscara da escrava Anastácia, uma estrutura de metal com pequenos furos posta sobre boca e nariz da pessoa escravizada para que ela fosse impedida de se alimentar e falar.

A máscara foi um objeto de castigo às “atrevidas” que teriam a audácia de fazer sua voz ecoar no salão, rompendo o silêncio forçado, como até hoje é um símbolo significativo para intelectuais negras pensarem como a metáfora do projeto colonial busca impedir o que identidades alijadas da condição de humanidade têm a dizer.

Diz Conceição Evaristo, notória escritora brasileira, que as vozes das mulheres negras estilhaçam a máscara do silêncio.

E é justamente isso que a fotógrafa Marcela Bonfim vem fazendo com sua exposição fotográfica “(Re)conhecendo a Amazônia Negra —Povos, Costumes e Influências Negras na Floresta”, que brinda a ancestralidade do Norte amazônico, lar de tantas pessoas negras que, ao longo dos séculos, são parte fundamental da construção da história da região.

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São imagens que compõem belíssimo trabalho que tem sido exposto em capitais do Brasil. Além da capital paulista, a exposição que começou em Porto Velho, passou por Fortaleza e São Luís, no Maranhão.

Em entrevistas, a fotógrafa contou um pouco sobre o seu processo de autoconhecimento enquanto negra, como também a adaptação de vida inevitável após a mudança da loucura de São Paulo para a calma de Porto Velho, em Rondônia, para onde se mudou após uma proposta de emprego.

Contou que teve de lidar com o tempo de outra forma, sem que fosse no frenesi de estar o tempo todo fazendo alguma coisa, para sentir a vida com maior serenidade e tempo para se descobrir. Após um tempo, começou seu trabalho de fotografar pessoas negras descendentes de gerações no local.

No norte do Brasil, o projeto colonial tratou de invisibilizar as contribuições fundantes da população negra nos séculos de história local. Costuma-se pensar a Amazônia como uma região desprovida da negritude, apagada mais uma vez em seus feitos e memórias.

Em entrevista concedida à revista Bravo!, Marcela explica que “falar na Amazônia negra é resgatar também o movimento desses fluxos (i)migratórios. O ciclo da borracha, do ouro, a construção da Madeira-Mamoré, a implantação das usinas, todos esses processos socioeconômicos envolveram os braços do trabalhador negro das mais diferentes regiões brasileiras—com destaque para as regiões do próprio Norte e Nordeste. Desde 1750, vivemos essa ocupação negra em Rondônia”.

E complementa: “A princípio, com os deslocamentos dos negros ainda escravizados da região de Vila Bela para o vale do Guaporé, ainda Mato Grosso naquele período. Esse processo ainda precisa ser mais aprofundado pela academia. É um pedaço importante da história que envolve a existência de Tereza de Benguela e de um contingente de populações negras e, no meio dessas, os quilombolas, ainda não reconhecidos pelo tempo, pela história e pelas políticas públicas”.

Sobre o processo de descoberta, Marcela diz: “Acredito que a Amazônia e eu estamos aprendendo, juntas, a ser negras. E isso é um processo lento, que acontece com outras pessoas negras, em vários lugares do Brasil. A maioria dos negros brasileiros precisam aprender a ser negros no percurso de suas vidas”.

A fotógrafa nos conduz a participar desse processo. Sua página no Instagram (@bonfim­_marcela) é um convite a mergulhar, como a artista diz, “nos lugares que falam” e nas belezas de um Brasil que está sendo descoberto, de fato, contrariamente à visão colonial de invasão. Esse (re)conhecimento da Amazônia Negra se dá pela perspectiva de quem a constrói, em primeira pessoa, entoando vozes que falam há muito tempo e que, a partir de trabalhos como esse, nos dá a oportunidade de escuta.

Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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