“O caso Corumbiara é um caso bem típico porque põe o conjunto da sociedade organizada, juízes, políticos, poder executivo, poder legislativo, tudo de um lado só, do lado do latifúndio, contra a organização dos camponeses” (Dom Tomás Balduíno).
No Justificando
Por Cassiano Ricardo Martines Bovo
[Nove de agosto]
Corumbiara, “interior do interior”, no dizer de João Peres, Estado de Rondônia, retrato de um sistema que concentra a terra nas mãos de poucos, latifundiários privilegiados no período do regime militar e depois dele. O Lote 99 da Fazenda Santa Elina (apenas 500 hectares de vinte mil), no município de Corumbiara, se tornou um acampamento de sem-terra em 14 de julho de 1995; cinco dias depois uma operação de reintegração de posse com 40 policiais fracassa. Os fazendeiros da região não toleram.
Madrugada de 9 de agosto de 1995. Quase 200 policiais da PM (incluindo batalhões da região e COE – Companhia de Operações Especiais – de Porto Velho) mais os jagunços de Antenor Duarte do Vale, poderoso fazendeiro da região que deu suporte humano e material, junto a outros fazendeiros, adentram no Lote 99. As, aproximadamente, duas mil pessoas que lá dormiam acordaram abruptamente com os holofotes ofuscantes, as bombas, o gás lacrimogênio e os tiros. Foram pegas de surpresa. Diziam:
– O que aconteceu? E as negociações? E a trégua combinada?
Maria dos Santos e seus filhos, Vanessa (seis anos) e Romerito (oito anos), acordaram sobressaltados, assustados com o barulho das bombas, ela pega Vanessa, embrulha-a num lençol e em meio à fumaça do gás correm em direção à cozinha coletiva, para onde acorrem muitas mulheres, a maioria colocando panos molhados nas bocas dos seus filhos. Ao perceber que os tiros estavam chegando mais perto, Maria sai em desabalada correria com seus filhos, em direção ao mato, Vanessa cai, sua mãe a puxa, ela diz que dói, Maria a pega nos braços, corre mais um pouco, atravessa um riacho e aí percebe que ela estava morta. Levou um tiro nas costas, atingindo o intestino e uma artéria; perdeu muito sangue. Ali perto, ajudando um ferido, morre também Nelci Ferreira, com dois tiros na cabeça.
No alto de um morro, entre as raízes enormes de uma figueira entranhada na terra, alguns posseiros atiravam. Um grupo de policiais se volta para lá. Como chegar? Usaram as mulheres como escudo; elas sofreram muito, em meio aos xingamentos dos policiais. Alzira Monteiro foi uma delas; o soco que levou na boca quebrou sua dentadura. Os policiais diziam:
– Diga para eles se entregarem, se não vocês vão morrer!
Os atiradores param. José Marcondes da Silva e Ercílio Oliveira de Campos, já rendidos, são executados. O primeiro teve a cabeça completamente estraçalhada; o segundo, levou 19 tiros na cabeça, coração e pulmões. As mulheres não mais esqueceram o que viram.
Outros posseiros foram amarrados e levados para baixo, passando pelas torturas que vários outros sofreram. E os policiais perguntavam:
– Quem são os líderes? Fala ou eu mato!
Odilon Feliciano morre com um tiro na nuca, ao acudir um companheiro baleado. Ari Pinheiro dos Santos tomba com quatro tiros nas costas e dois nas pernas. Alcindo Correia da Silva leva um tiro no pulmão. Todos executados.
No fogo cruzado morrem o Tenente Rubens Fidelis Miranda e o Soldado Ronaldo de Souza, com tiros na cabeça e pescoço.
Enio Rocha Borges, baleado no estômago, morreu no hospital. Oliveira Inácio Dutra e Jesus Ribeiro de Souza morreram dois meses depois. Darli Martins Pereira nunca mais foi encontrado.
Dentre os mortos um homem identificado apenas como H05; aparentando 30 anos, 1,80m, camisa amarela sob uma jaqueta preta, com lesões no cérebro e medula. Quem era? Nunca se descobriu.
Posseiros foram obrigados a se arrastar em meio a terra e sangue, um por cima do outro, em terreno abrupto; alguns tiveram que comer até os miolos de companheiros mortos e carregar os defuntos. Vários deles foram pisados, policiais e jagunços pulavam sobre seus corpos.