Especialistas veem ‘efeito guarda da esquina’ e estímulo a abusos, mas aliados do presidente rejeitam relação
Fábio Zanini
Flávia Faria
SÃO PAULO
O aumento no número de pessoas mortas por policiais, os frequentes episódios de excesso por parte das forças de segurança e o avanço do desmatamento na Amazônia têm ocorrido na esteira de declarações agressivas do presidente Jair Bolsonaro (PSL) nessas áreas.
Uma consequência é que o chamado “efeito guarda da esquina”, que entrou para o vocabulário político após a edição do AI-5, voltou a frequentar o debate público.
A imagem resgata um episódio atribuído ao então vice-presidente Pedro Aleixo, que, ao se recusar a assinar o ato em 1968, teria dito que o problema nem era o então presidente Costa e Silva, mas sim o guarda da esquina.
Em outras palavras, o discurso oficial relativizando ações violentas de agentes de segurança, atacando multas do Ibama e dizendo que são falsos os dados de desmatamento acabaria tendo um efeito prático na ponta.
Exemplos têm sido constantes. O número de pessoas mortas por policiais militares em serviço no estado de São Paulo cresceu 11,5% no primeiro semestre deste ano, comparado com o mesmo período no ano passado.
No Rio, nos primeiros seis meses do ano, a polícia foi responsável por 29% das mortes violentas no estado, um recorde.
Casos de exagero na abordagem policial têm sido frequentes. No último domingo (4), um torcedor do Corinthians foi retirado da arquibancada pela polícia após ter xingado o presidente. No dia anterior, policiais paulistas abordaram militantes do PSOL num evento fechado. Houve ainda o caso de policiais rodoviários federais que interromperam uma reunião anti-Bolsonaro em Manaus, no fim de julho.
Na área ambiental, o desmatamento cresce de forma expressiva. Na Amazônia, houve um salto de 278% no mês de julho em relação ao mesmo período de 2018, segundo o Deter (Detecção do Desmatamento em Tempo Real), sistema do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). No Cerrado, a alta foi de 26%.
Para o historiador Boris Fausto, o poder de persuasão das autoridades no Brasil sobre a sociedade é muito forte. “Isso é uma coisa que filtra lá de cima e se torna um clima que perpassa a sociedade. Estamos vendo em toda parte, tanto em episódios pontuais como outros mais grotescos, como o fuzilamento de um carro por militares do Exército no Rio de Janeiro [em abril]”, diz.
Segundo Fausto, a figura do guarda da esquina é tão forte que virou algo corriqueiro no país. “Entrou tanto na nossa gíria que ninguém precisa mais explicar. A gente já sabe do que se trata”, afirma.
As ações arbitrárias de policiais, para Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, se relacionam a um fenômeno de ideologização das polícias que vem se intensificando desde as eleições. “As polícias, especialmente a militar, estão contaminadas com a ideologia bolsonarista. A polícia tem que ser política e partidariamente neutra porque tem que tratar todos da mesma maneira”, disse.
Ele diz ver leniência por parte das secretarias de Segurança Pública e dos comandos das polícias e pouca disposição em coibir abusos. Alcadipani também relaciona o tom do discurso bolsonarista ao aumento nos índices de letalidade policial.
Em São Paulo, o número de mortes por ação da polícia voltou a crescer após queda em 2018.
“O clima mudou. Não adianta você ter um comandante que seja contra isso [violência policial], pois quando o policial começa a ver que o país está querendo isso, que o governo está incentivando, ele, na ponta da linha, se sente autorizado. Na medida em que você tem um discurso de violência e de que bandido bom é bandido morto, o agente se sente autorizado a cometer abusos”, afirma Alcadipani.
No campo, ativistas da reforma agrária e direitos indígenas veem com preocupação a possível influência de declarações de Bolsonaro no acirramento de conflitos.
O presidente já afirmou que não demarcará novas terras indígenas ou assentamentos e disse que pretende legalizar a exploração de minério em território indígena. Em abril, prometeu dar salvo-conduto ao proprietário rural que atirasse em quem invadisse suas terras —o que, segundo especialistas, contraria a Constituição.
Neste ano, segundo levantamento preliminar da Comissão Pastoral da Terra, houve 17 assassinatos motivados por conflitos no campo, 16 deles na Amazônia —de janeiro a julho de 2018, foram 18 mortes, 16 na região amazônica.
“O número de assassinatos continua com concentração na área amazônica, onde Bolsonaro tem falado em legalizar o garimpo. Os invasores receberam sinal verde e fazem o que bem querem”, diz Jeane Bellini, da Comissão Pastoral da Terra.
Para ela, Bolsonaro inflama as pessoas a resolver questões na base da violência e incentiva a invasão ilegal e o desmatamento. “Ele está sugerindo que, para fins pragmáticos, as leis que foram criadas e estão em vigor durante 30 anos devem ser relativizadas. Estamos na relativização da institucionalidade democrática”, diz.
Como mostrou a Folha, a quantidade de multas aplicadas pelo Ibama por crimes ambientais no primeiro bimestre de 2019 foi a menor nos dois primeiros meses de um ano desde 1995.
Ativistas e políticos próximos de Bolsonaro afirmam que não é possível fazer uma relação direta entre as palavras do presidente e esses eventos.
Ativista pró-liberação de armas, Benê Barbosa afirma que não há dados suficientes para se afirmar que há um novo padrão em eventuais excessos da polícia.
“A gente ainda tem poucos casos para fazer uma análise aprofundada. Pode ser reflexo disso [da atitude de Bolsonaro], pode ser uma coincidência, pode ser um exagero. Temos que olhar para o passado e ver se coisas assim nunca aconteceram antes”, declara ele, que comanda o Movimento Viva Brasil.
Segundo Barbosa, era previsível que a esquerda fizesse uma trincheira política. “Claro que esse tipo de ocorrência acaba fortalecendo o discurso da esquerda. Eles sempre vão jogar essa mudança de discurso e de alguns paradigmas no colo de um suposto efeito Bolsonaro”, declara.
Deputado estadual e líder ruralista, Frederico D’Ávila (PSL-SP) afirma que os dados do desmatamento vêm sendo exagerados por ONGs e ambientalistas.
“Nem se você colocar toda a frota de tratores que existe no Brasil empurrando mato 24 horas por dia não dá para desmatar tudo que eles divulgam”, declara.
Para ele, servidores do Ibama, ao atribuírem a responsabilidade a Bolsonaro, fazem terrorismo ambiental. “Eles vivem do conflito. A hora que isso acabar, acaba a relevância deles.”