Modelo se expande pelo país, mas é criticado por excluir alunos mais vulneráveis
Pedro Rafael Vilela
Brasil de Fato
O Distrito Federal experimenta, desde o início deste ano, um modelo de gestão compartilhada de escolas públicas entre a Secretaria de Educação e a Polícia Militar, vinculada à Secretaria de Segurança Pública. Promessa de campanha do então candidato, agora governador, Ibaneis Rocha (MDB), as chamadas escolas militarizadas são um fenômeno em ascensão no país. Impulsionado pela onda conservadora crescente, expressada mais claramente no Bolsonarismo, o número de escolas sob gestão da PM cresceu 212% entre 2013 e 2018, segundo um levantamento da revista Época. Estima-se, para esse ano, que mais de 70 escolas estejam sendo geridas por policiais militares em pelo menos 14 estados.
No caso do DF, o projeto-piloto abarcou quatro unidades escolares, localizadas em diferentes pontos da região – todas zonas pobres e com níveis altos de vulnerabilidade social, segundo indicadores de renda e de violência. A rapidez com que o novo modelo foi implantado surpreendeu pais, alunos e professores. Houve um esforço grande do governo em “vender”, nos meios de comunicação, a ideia de que a militarização seria a solução para a redução da violência e da indisciplina nas escolas, com ganhos consequentes de rendimento e aprendizagem.
“Nós, da educação em Brasília, fomos surpreendidos [pela implantação] em plenas férias de janeiro, com zero de debate. Todo mundo estava de férias quando disseram que essas quatro escolas seriam militarizadas”, afirma Júlio Barros, diretor de organização do Sindicato dos Professores (Sinpro/DF) e integrante do Fórum de Educação do DF.
Para o Governo do Distrito Federal (GDF), o modelo já havia sido legitimado nas próprias eleições do ano passado. “Essa questão da gestão compartilhada [com a PM] já vem na campanha do então candidato Ibaneis. Foi uma campanha largamente referendada pelas urnas. A gente primeiro tem que entender que, dentro do processo democrático, esse projeto específico teve grande apoio bastante da população”, defende David de Oliveira, assessor da Secretaria de Educação do DF.
Ainda segundo Oliveira, nenhuma escola foi forçada a aderir. “Até agora, as comunidades escolares foram unânimes em aceitar o projeto”, acrescentou. Neste semestre, o GDF quer expandir a iniciativa para outras seis escolas, mas deve enfrentar mais resistência.
Para amparar a militarização nas escolas, foi editada uma Portaria, que define de forma genérica diferentes níveis de gestão, sendo que a parte pedagógica permanece à cargo da Secretaria de Educação e a gestão “disciplinar cidadã” seria comandada pelos policiais militares, com total autonomia entre as partes, mas sem detalhamentos mais específicos sobre o exercício dessas atribuições.
Na prática, os relatos de alunos e professores sobre o modelo é a imposição de regras duras de disciplina, que incluem ordenamento austero das movimentações dos estudantes na escola, formação de filas, mãos para trás e cabeça baixa. Há também exigência de uniforme específico (fardamento) e obrigação de cortes de cabelos curtos e presos, proibição de brincos e colares chamativos, entre outras.
Desempenho
A ideia de que a militarização das escolas melhora o desempenho dos estudantes é questionada. Normalmente, os governos se referem ao aumento da notas dos alunos dessas escolas em provas como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e no Índice Nacional de Desempenho da Educação Básica (Ideb), que mede fluxo escolar, como reprovações e evasão, e média das notas.
O deputado distrital Fábio Félix (PSOL), que acompanha o projeto desde o início, articulou a criação de um Observatório da Militarização, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa, que ele preside. O colegiado é integrado por especialistas e representantes da sociedade civil. Para Félix, além de errar no método de implantação do modelo, sem diálogo amplo e por meio de uma portaria genérica, o GDF tampouco embasou a iniciativa em dados mais científicos sobre o assunto.
“Eles querem implantar um projeto sem qualquer base científica”, critica. O deputado cita um estudo de dois pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC), que analisaram o desempenho das escolas militares no Enem e na Prova Brasil e concluíram que o fator determinante para um resultado médio melhor em relação às demais escolas não está na militarização, mas justamente num processo de seleção de estudantes, que acabam elevando o patamar de desempenho geral da escola.
“O estudo fala que não há melhoria, de fato, nas notas. O que eles fazem é eliminar as notas baixas com essas pessoas se retirando das escolas. Então, há uma grande evasão escolar nesse processo de militarização das escolas, nesse estudo nacional. Esse estudo analisou as notas de português e matemática e revelou que ninguém melhorou as notas de português e matemática e ninguém melhorou a nota, mas na verdade o que houve foi que as notas baixas de português e matemática foram [de alunos] excluídos das escola”, argumenta.
David Nogueira, do GDF, defende que tem havido uma melhoria significativa no rendimento das aulas após a militarização. “É essencial para o aprender que haja um ambiente de tranquilidade para os estudantes, e essas escolas de gestão compartilhada têm possibilitado, em lugares que antes não tinham esse ambiente. Aí os resultados são menor evasão e maior tempo para os professores poderem dar aula. Em uma aula de 45, 50 minutos, o professor conseguia lecionar, de fato, a sua matéria, no máximo 25 minutos. Todo restante do tempo ele estava ali gastando sua energia na organização disciplinar da sala”, afirma.
Para Júlio Barros, do Sinpro, no entanto, o problema está na falta de estrutura dos prédios escolares. “Temos muitas quadras de esportes descobertas, temos lanches precários, não temos, na maioria das escolas, laboratórios de ciências e de informática. Todos esses fatores refletem na qualidade da educação”, diz.
‘Pede pra sair’
Alunos que não se enquadram no modelo estão sendo pressionados a sair das escolas, e muitos já saíram. A Secretaria de Educação não informa números, mas o Sinpro estima que ao menos 70 movimentações de alunos podem ter ocorrido nos últimos meses. O uso do termo “pede pra sair”, que ficou famoso em cenas do filme Tropa de Elite (2007), quando o Capitão Nascimento, personagem interpretado por Wagner Moura, humilhava os aspirantes a integrar a equipe do Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro (Bope).
O professor Jorge Santos, que atuava no Centro Educacional (CED) nº 308, do Recanto das Emas, uma das primeiras escolas militarizadas no DF, pediu transferência da unidade por não concordar como novo modelo, e passou a dar aulas em uma escola não-militarizada que fica nas proximidades do Recanto das Emas. Doutor em História, Jorge é crítico contundente da militarização e relata o drama de estudantes que têm sido pressionados a saírem da escola por pressão dos militares.
“Os alunos que estou recebendo de lá [CED 308], que são esses excluídos, todos estão relatando graças a Deus por terem saído de lá, porque eles não aguentavam esse massacre ininterrupto e constante, essa figura do xerife, que é um aluno designado para vigiar outros alunos. É um rigor de disciplina que, para qualquer jovem, é insuportável, porque é uma violência constante com a liberdade dele, com a expressão dele, com a diversidade dessa garotada que está crescendo”, afirma.
“Só fica na escola quem se adapta à lógica, inclusive em relação ao rendimento. Se ele não tem rendimento esperado, a escola dá transferência a esse aluno. A escola pública que foi militarizada é um público muito diferente”, afirma Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). Ela define como um apagamento de subjetividades o processo de repressão qual os alunos são submetidos.
“Porque, por exemplo, as alunas precisam andar com cabelo preso, então você imagina uma aluna com cabelo crespo, um aluno que é black power, um aluno que usava determinadas características. Imagine os alunos vinculados às religiões de matriz africana. Não ficam dentro da escola, ou a sua identidade é apagada, alunos que gostam de usar cabelos longos, então tudo isso deixa de existir nessa escola, porque nessa escola todo mundo tem que se comportar igual, vestir igual, as indumentárias são iguais, alunos não podem usar brinco, a saia tem que ser de um determinado tamanho. É um negócio que apaga completamente aquilo que constitui a nossa sociedade, que é a diversidade”, analisa.
Segundo Júlio Barros, do Sinpro, o próprio Plano Distrital de Educação prevê um modelo de escola voltado especificamente para alunos de maior vulnerabilidade. Nessas unidades, além do ensino em tempo integral, o ensino é individualizado, como forma de impulsionar o aluno. “O Plano prevê que cada região do DF tenha uma escola nesse modelo, mas só temos uma, que ainda está com número de alunos abaixo de sua capacidade”, afirma.
Ainda sobre o problema da violência nas escolas, com envolvimento da PM, há o Batalhão Escolar, medida que tem sido descontinuada pelo governo. Das 643 escolas do DF, só 200 estariam sendo cobertas pelo Batalhão, ainda sem regime de revezamento.
“O Distrito Federal tem o Batalhão Escolar há muito tempo, e o governo alega que está sem efetivo [para ampliar], aí de repente tem efetivo para jogar dentro das escolas”, observa Catarina de Almeida Santos, da UnB.
Elitização
No estado que aplica esse modelo há mais tempo, que é Goiás, desde o final dos anos 1990, já são mais de 50 escolas nesse formato. O que se viu, em parte dessas unidades, foi um contínuo processo de mudança do perfil social dos estudantes. Aqueles alunos considerados mais problemáticos foram sendo afastados e a escola passou a receber apenas alunos com melhores desempenho, boa parte oriundo de famílias de classe média. Em várias escolas públicas, há inclusive a cobrança de uma mensalidade não-oficial, uma espécie de contribuição vinculada à Associação de Pais e Mestres, coordenada pelos militares.
“Aos poucos, como acontece em Goiás, vão ser os filhos da classe média que vão estudar lá. Daqui a pouco, lá está cheio de filho de PM, de professor. Essa coisa de sorteio vai trazer gente de longe, que se enquadra nesse modelo, nesse perfil, para estudar lá. E as pessoas que estão lá em volta dessa escola, que precisam dela, tendo ela os defeitos que ela tinha, essas pessoas vão ser apartadas dessa escola”, aponta Jorge Santos, professor da rede pública de ensino no DF.
Para o professor, a militarização inviabiliza o desenvolvimento pleno dos alunos, e a simples implantação de um rotina de disciplina baseada no medo e na coerção não forma melhores cidadãos.
“Eu estou lá para formar sujeitos, sujeitos críticos, para formar cidadãos, para as pessoas pensarem com a própria cabeça delas, não para chapar a liberdade delas, tolher, pintar esses meninos todos de cinza, colocar eles para bater continência para mim, e ainda falar, como falam os PMs, que eles estão fazendo isso para recuperar o respeito pelo professor”, desabafa.
Edição: José Eduardo Bernardes
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