Militantes organizados, admiradores de passagem e vizinhos da abastada Santa Cândida convivem há quase 500 dias no entorno da carceragem que abriga o ex-presidente. Gritam “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” para lembrá-lo que não está só. O EL PAÍS acompanhou um dia desse microcosmo da polarização política nacional
Santa Cândida é um bairro residencial de classe média alta a 10 km do centro de Curitiba. Um visitante que chega à vizinhança arborizada às sete da manhã de uma quinta-feira de junho é recepcionado por um frio de sete graus. E pelo barulho de pássaros. Mas o silêncio de Santa Cândida termina quando começa o horário comercial. O bairro mudou no último ano e meio porque é lá que fica o prédio da Polícia Federal onde está preso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E onde se formou uma vigília que dá “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” para Lula.
A brigada passou quase sete meses, de abril de 2018 a novembro de 2018, acampando nas ruas da região, até que foram proibidos pela prefeitura curitibana de acampar no bairro. Desde então, se criou uma estrutura que conta com casas, um centro cultural e um terreno alugado em frente ao prédio da PF, de onde os ativistas se comunicam com o ex-presidente.
Nos últimos meses, a rotina de tempos em tempos tem um sobressalto, na expectativa de que algo da situação legal do ex-presidente, condenado por corrupção na Operação Lava Jato, mude e o faça deixar a carceragem da PF. Na última quarta-feira, a movimentação se deu pela decisão de uma juíza do Paraná que ordenou a transferência de Lula para um presídio paulista. Entre os argumentos, estava justamente o de que a presença do petista afeta tudo em volta —o Supremo Tribunal Federal acabaria vetando a ideia, deixando tudo como está. Em 25 de junho, foi mais um dia de agitação, quando o STF negou à defesa de Lula dois habeas corpus que o permitiriam sair da cadeia. No dia seguinte, o EL PAÍS acompanhou a rotina da vigília pelo petista por 24 horas.
9h
Às nove da manhã em ponto, o silêncio de Santa Cândida é quebrado. Por um coro de dezenas de pessoas:
“Bom dia, presidente Lula!
Bom dia, presidente Lula!
Bom dia, presidente Lula!
Bom dia, presidente Lula!”
A saudação é repetida mais nove vezes, somando treze bons dias. Há cerca de 60 pessoas no terreno que fica atravessando a rua do prédio da Polícia Federal. O quartel-general dos apoiadores de Lula é chamado de A Vigília.
O terreno cercado onde fica A Vigília era antes um estacionamento para quem ia ao prédio da PF fazer passaporte, e foi alugado por um ano. Há cinco tendas. Uma delas é o escritório da comunicação e da liderança dos movimentos que formam A Vigília. Outra, tem uma biblioteca com livros doados por visitantes. Na terceira, fica uma barraquinha que vende camisetas com estampa do rosto de Lula e outras com frases como “Lute como uma garota”. A quinta é uma cozinha, em que ficam à disposição um tonel de café e outro de chá. Há um bebedouro coletivo com a placa “Beba 2 litros de água por dia”.
A Vigília é administrada por quatro grupos diferentes: o Movimento dos Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Partido dos Trabalhadores. “Cada um ficou responsável por um dia da semana. Na segunda é o MST, na terça é o MAB, na quarta é a CUT, quinta-feira é a Educação. Sexta-feira a gente sempre coloca as mulheres, coloca juventude, movimento LGBT. Sábado e domingo é a organização que está aqui. Então a gente meio que se divide para que cada um tenha uma tarefa”, diz Regina da Cruz, presidente da Central Única dos Trabalhadores do Paraná.
Naquela manhã, além dos integrantes da CUT, do MST, do MAB e do PT, havia turistas. Uma família com duas crianças, ambas vestindo camisetas com o rosto barbado de Lula, chega antes do bom dia. O estudante de medicina Ezequiel Lemos está em Curitiba com um único propósito: “Passamos em Curitiba somente para dar o bom dia. A gente chegou ontem à noite, dormimos em um hotel e viemos pra cá”, diz Lemos.
Ezequiel foi criado no interior da Bahia, e diz que ele e a mulher levaram os dois filhos, de quatro e seis anos, para prestar reverência a Lula. “Nunca outro governo uma pessoa fez tanto… a nossa família inteira fez faculdade. Hoje nós temos três professores, temos um médico. Minhas tias que são três professores. Tenho um primo que é professor em uma universidade federal na Bahia, a UFBA. E assim, Lula representou muito, muito, muito, muito, para o Nordeste inteiro”, diz o estudante de medicina, enquanto as crianças correm com máscaras do rosto de Lula no rosto.
A família de Ezequiel espera um táxi para ir embora de Curitiba. Perto dali, dezenas de jovens sobem a rua e entram em um casarão. O imóvel, a dois quarteirões da Vigília, é o Centro Cultural Marielle Franco, uma casa alugada para servir de escola para os vigilantes. Na entrada do centro Marielle, há um muro com figuras históricas pintadas. Além de Mariele, há o rosto de Fidel Castro, de Hugo Chávez, de Rosa Luxemburgo e de Lyudmila Pavlichenko, uma franco-atiradora soviética que matou centenas de alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
O muro termina em um galpão com dezenas de cadeiras de plástico branco dispostas em um semicírculo. No meio do círculo está o professor, do MST, que ministra uma aula de história. “Então percebam”, diz o professor. “Percebam. Que depois de 500 anos, 500 anos de história, o povo brasileiro consegue eleger um presidente da República que tem sua origem no trabalho. Ele é alguém do trabalho, que possibilitou chegar lá. Ele incorpora o trabalho do indígena. O trabalho do negro. O trabalho do posseiro. O trabalho do agricultor familiar.”
A maioria dos alunos é jovem e tem alguma ligação com o MST. O Movimento dos Sem Terra criou um rodízio. A cada 15 dias, membros de um acampamento diferente do MST vêm morar na vigília. Na última semana de junho, é o sul do Paraná que está presente, com pessoas de cidades como Ponta Grossa.
Depois da aula de história, vem uma aula de música. Os jovens do MST que estão no salão se apresentam e escolhem que instrumento querem tocar.
“Bom dia, meu nome é Géssica. Eu vou fazer violão e não tenho violão”, diz uma jovem moreno. “Eu sou Nathália, sou do acampamento livre, e vou fazer bateria”, diz outra, loira.
A aula termina faltando dez minutos para o meio-dia. O grupo anda cinco quarteirões até um sobrado na beira da maior avenida do bairro. Lá fica a Casa Lula Livre, um alojamento para quem vai à vigília. A Casa Lula existe desde novembro de 2018. Entre 7 de abril de 2018 e a fundação da Casa Lula, os manifestantes ficavam acampados na rua. A prefeitura de Curitiba vetou os acampamentos, e o alojamento foi criado.
A organização não revela o quanto paga pelo terreno da vigília e pelos imóveis. O aluguel na região varia, desde 900 reais mensais por uma casa de madeira de dois cômodos até 10.000 por uma casa de 450 m2 e quatro quartos. O dinheiro vem de doações feitas pela Internet, eles afirmam.“Não adiantava locar por uma imobiliária e depois ter que deixar o terreno. A gente foi e explicou que aqui seria o local da vigília. Aí a gente fez o contrato. O PT fez o contrato com a imobiliária”, diz Regina da Cruz, presidente da CUT paranaense.
O contrato, ela afirma, é de um ano. “Mas nós vamos renovar. A gente vai renovando. Tem o contrato do espaço Marielle e o da creche. A gente vai renovando a cada seis meses. Enquanto precisar.”
Meio-dia
Faltando dois minutos para o meio-dia, uma fila se forma instantaneamente no pátio da casa. O almoço está prestes a ser servido no pátio, em esquema de bufê. O cardápio do dia é lombo de porco, polenta, arroz, feijão e salada. Cada um lava sua própria louça ao terminar. Cada quarto tem de quatro a seis treliches, camas de três andares feitas de madeira crua. Os corredores estão cheios de barracas armadas por estudantes de todo o Brasil. Cerca de 50 pessoas ficam na Casa Lula por vez.
Até ano passado, funcionava ali uma escola infantil particular. As paredes ainda guardam algumas pinturas da época de escolinha, como um desenho do Smilinguido, uma formiga de desenho animado que é mascote evangélico, com um provérbio bíblico ao lado. O almoço começa em silêncio, até que um sindicalista fica em pé e, da sua mesa, grita para um homem: “E aí, tá feliz?”. O sindicalista, que preferiu não ser nomeado nesta reportagem, acusa o outro morador da Casa Lula de preferir que o ex-presidente não fosse solto, para ficar morando ali o máximo de tempo o possível. Ele afirma que são poucas pessoas dentro de um grupo de centenas. “A maioria das pessoas só quer ir para casa. Eu não gosto de ficar aqui, sabe? É muito difícil”, disse o sindicalista que se recusou a gravar entrevista.
Uma professora da rede pública comenta que acaba de renovar o contrato de aluguel do apartamento que alugou para morar com outros vigilantes em Curitiba. O novo contrato dura mais um ano, mas afirma que pagaria a multa de rescisão com todo prazer para voltar para casa, se Lula fosse libertado.
13h
A chuva aperta em Curitiba. Chega à Casa Lula Livre um rolo de plástico preto, como o usado para fazer sacos de lixo. O plástico serve para embrulhar as barracas em dias de chuva. Como os treliches do alojamento já estão ocupados, as pessoas começaram a acampar no pátio, a céu aberto. Jovens tiram todos seus pertences das barracas e colocam uma camada de plástico preto embaixo delas. Outra dos lados e uma terceira em cima da barraca. Há quem se apresse para fazer o trabalho e chegar a tempo de dar boa tarde ao presidente.
14h
Os grupos começam a voltar para o terreno da vigília. Lá, um violeiro distribui uma brochura com 40 páginas para as pessoas que chegam. São letras de música compostas na vigília. A apostila tem jingles, como Lula Lá Brilha uma Estrela, e paródias de marchinhas de Carnaval, como Máscara Negra, e de canções clássicas como Asa Branca, que ganhou essa nova letra:
Quando olhei a terra ardendo Tal fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do Céu
Por que tamanha judiação
Quando eu olhei o meu Brasil
Eu
Greve geral não é preguiça
A música termina assim:
Espero Lula voltar de novo
Para eu voltar a ser cidadão
Está chovendo quando cerca de 30 pessoas se voltam para o prédio da Polícia Federal e começam o cumprimento vespertino.
Boa tarde, presidente Lula!
Boa tarde, presidente Lula!
Boa tarde, presidente Lula!
Boa tarde, presidente Lula!
Boa tarde, presidente Lula!