Ainda hoje, boa parte do sistema de ensino brasileiro não consegue discutir o verdadeiro papel da escravidão no país e tampouco dá o real valor para a resistência dos oprimidos. Uma invisibilidade que acomete toda a luta por direitos e ganha ainda maior força à medida que se faz o recorte de gênero.
Na Rede Brasil AtuaL
Foi pensando nisso que a jornalista e pesquisadora Bianca Santana escreveu e organizou o livro Vozes Insurgentes de Mulheres Negras, resgatando o importante papel de diversos personagens desde o século 18 até a primeira década da presente época. Nos estúdios da Rádio Brasil Atual, Bianca apresentou a iniciativa apoiada pela Fundação Rosa Luxemburgo e a Editora Mazza, obra que será lançada na próxima quinta-feira (15) na Casa das Pretas, no Rio de Janeiro, às 19h, com um debate sobre a escrita de mulheres negras com a diretora do Instituto Marielle Franco, Anielle Franco, e a pesquisadora Carol Rocha.
“A história da resistência precisa ser melhor contada, não só da abolição, mas do que foram esses 400 anos de escravidão no Brasil porque não foi nada leve e brando – como falam também sobre o regime militar – e na escravidão muito menos. Teve muita luta e resistência, e o papel das mulheres era central, seja das que ficavam no âmbito doméstico e resistiam de várias formas, seja nas plantações, nas organizações familiares, nos quilombos, no candomblé e nas casas de santos”, afirma a escritora aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria.
Esperança Graça Garcia é uma dessas personagens da história que Bianca faz questão de destacar. Mulher africana, escravizada no Piauí, Esperança, por meio de cartas, denunciava ao governador as situações, humilhações e maus tratos que ela e outras pessoas escravizadas eram submetidas em meados de 1770. “Era uma mulher que no século 18 não só dominava a leitura e escrita, como compreendia a escrita como uma arma política, de transformação da realidade”, ressalta Bianca.
Reconhecimento da produção cultural e intelectual
De acordo com Bianca, a produção intelectual e cultural também se faz presente no circuito jornalístico que, entre o século 19 e a primeira metade do século 20, contou com centenas de publicações, entre elas, o jornal Clarin da Alvorada. Com base no trabalho da filósofa, escritora e ativista antirracismo Sueli Carneiro, Bianca explica que, no Brasil, o pensamento das pessoas negras não é considerado conhecimento, o que Sueli Carneiro chama de epistemicídio.
“É um extermínio mesmo, de uma população matar aquilo que as pessoas negras produzem e não nos reconhecer como sujeitos da produção de conhecimento”, afirma.
O racismo contemporâneo
Esse racismo se faz presente em todos os âmbitos da vida das mulheres negras, principalmente no campo do trabalho, que muitas vezes impõe a elas o serviço doméstico.
“As mulheres brancas brasileiras, sejam elas de esquerda e direita, da classe média, vão fazer o trabalho chamado produtivo na rua, e deixam uma mulher negra, pobre, na beira do fogão, cuidando das crianças. Isso obviamente não tem a ver com uma decisão individual, mas é como a nossa sociedade estrutura esse trabalho e como isso é uma marca da escravidão.”
Não é à toa para Bianca que, após o fim da escravidão, o Estado não tenha feito nenhum tipo de reparação à população negra. “A abolição foi agora um ‘vocês estão livres para morrer de fome nas sarjetas’. Além disso, uma série de outras leis depois, como o encarceramento, o extermínio que existe até hoje.” Políticas que são reforças no conjunto de medidas penais do pacote anticrime, proposto pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.
“Não tem nada de combate ao crime, à corrupção, é um pacote de encarceramento, de extermínio, de aprimorar aquilo que o Estado brasileiro faz muito bem desde sempre”, contesta a jornalista, acrescentando que todo esse processo ajuda a explicar a prisão da ativista na luta por moradia Preta Ferreira, além da perseguição e do racismo que sofrem as religiões de matrizes afro-brasileiras. “É uma segregação que ocorre até hoje.”