Mais de 100 mil trabalhadoras do campo, da floresta e das águas devem ocupar a capital federal a partir deste 13 de agosto
São Paulo – As dicas que constam do material produzido para a construção da Marcha das Margaridas 2019 dizem muito sobre a origem e a força desse movimento. Sob o lema Margaridas na Luta por um Brasil com Soberania Popular, Democracia, Justiça, Igualdade e Livre de Violência, a cartilha sugere a descentralização total das iniciativas do movimento. “Não existe uma receita pronta para construir a Marcha das Margaridas… a criatividade e a ousadia de cada mulher ou grupo é o que prevalece”, afirma a publicação que sugere ações para ampliar o processo de mobilização.
Realizada a cada quatro anos desde 2000, em Brasília, a Marcha se define como uma ação ampla e estratégica das mulheres do campo, da floresta e das águas com o objetivo de conquistar visibilidade, reconhecimento social, político e cidadania plena. Elas lutam contra toda forma de exploração, dominação, violência e em favor de igualdade, autonomia e liberdade para as mulheres.
Para que seja ampla e representativa, são realizadas reuniões descentralizadas e encontros com diversos grupos de mulheres (jovens, idosas, assalariadas, agricultoras familiares, sem-terra, quilombolas, extrativistas, ribeirinhas, pescadoras, etc.). “É fundamental que estes encontros sejam bem participativos, estimulando o debate sobre a realidade vivida pelas mulheres do campo, da floresta e das águas na atual conjuntura do País e relacionando estas questões ao caráter, aos eixos e aos desafios de construção da Marcha”, reforça a organização.
A coordenadora-geral da Marcha 2019, Maria José Morais Costa, a Mazé, conta que milhares de mulheres se envolvem na construção desse evento que este ano ocorre nesta terça e quarta (13 e 14). “É um processo de formação, mobilização e construção na base. A gente define o lema, o caráter e os eixos temáticos que estaremos trabalhando na base”, diz.
“Aí as mulheres passam praticamente dois anos discutindo, fazendo o processo de formação na base. Termina uma marcha as mulheres já vão pensando (a próxima). Faltando dois anos, já começam a intensificar esse processo. Envolve não só as 100 mil que vêm à Brasília, mas milhares de outras por todo o canto do país e do mundo, que sabem o que é a Marcha das Margaridas”, explica a secretária de Mulheres Trabalhadoras Rurais Agricultoras Familiares da Confederação Nacional de Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag).
São 27 federações e mais de 4 mil os sindicatos filiados à Contag, que promove as Marchas com parceria e apoio de movimentos feministas, de mulheres trabalhadoras, centrais sindicais e organizações internacionais.
Crescimento na democracia
Mazé relata que este ano as mulheres estão encontrando muitas dificuldades para a Marcha. “Nesse governo que aí está, que só quer retirar os direitos da classe trabalhadora, sobretudo das mulheres, a gente não tem nem como dialogar.”
Assim, os eixos políticos da Marcha 2019 tocam em pontos nevrálgicos, sob risco no governo Jair Bolsonaro. Tratam da defesa da terra, água e agroecologia; da autodeterminação dos povos, com soberania alimentar e energética; pela proteção e conservação da sociobiodiversidade; por autonomia econômica, trabalho e renda; por previdência e assistência social pública, universal e solidária; por saúde pública e em defesa do SUS; por uma educação sexista e antirracista e pelo direito à educação do campo; pela autonomia e liberdade das mulheres sobre seu corpo e sua sexualidade; por uma vida livre de todas as formas de violência; por democracia com igualdade e fortalecimento da participação política das mulheres.
Esta será a primeira Marcha das Margaridas após o golpe que em 2016 retirou Dilma Rousseff da Presidência da República. “Tínhamos um diálogo muito bom nos últimos anos com os dois governos, de Lula (Luiz Inácio Lula da Silva, 2003 a 2010) e Dilma (entre 2011 e 2016)”, lembra a dirigente da Contag. “A gente pode dialogar sobre nossas pautas e conseguimos várias conquistas durante esses governos através da Marcha das Margaridas.”
Uma delas foi o título das terras destinadas à reforma agrária em nome também das mulheres. Também a criação do Pronaf Mulher, com a ampliação da participação delas no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura.
Foi também nesse período que se ampliou o combate à violência contra as mulheres do campo e da floresta, com uma série de iniciativas como a criação do Fórum Nacional de Elaboração de Políticas para o Enfrentamento desse grave problema, além da entrega de 54 unidades móveis, inclusive pluviais no Rio Amazônia, para o atendimento às mulheres. Esses governos “populares e democráticos”, afirma Mazé, abriram diálogo com a sociedade, a classe trabalhadora e sobretudo as mulheres. A Marcha da Margaridas, recorda a dirigente, entregava a pauta e tinha oportunidade de debater e dialogar sobre políticas e programas direcionados às mulheres trabalhadoras rurais.
“Não tenho dúvida que foram os governos que deram mais oportunidades às mulheres que estão lá nas mais diferentes comunidades e municípios do Brasil. Foi o momento que fortaleceu a luta das mulheres e nossa mobilização”, reforça Maze, destacando que o fato de serem governos de esquerda não esmoreceu a luta dessas trabalhadoras.
“A gente não deixava de pautar e dialogar sobre o que as mulheres desejam, por que estavam marchando. Mesmo sendo um governo da esquerda a gente pautava muito firmemente no sentido de garantir os direitos das trabalhadoras rurais do campo, da floresta e das águas.”
Diversidade nas ruas de Brasília
Este ano, a Marcha das Margaridas em direção à Esplanada dos Ministérios será realizada na manhã da quarta-feira 14 de agosto. Mas a mobilização começa já na terça, com uma sessão solene no plenário da Câmara dos Deputados, às 9h, e a Mostra de Saberes e Sabores das Margaridas, a partir das 14h, no Parque da Cidade. Lá, à noite, será realizado também um ato político cultural.
Desde o ano 2000, assim que acaba uma marcha a próxima já começa a ser organizada. Entre uma e outra, as mulheres fazem caravanas, seminários, debates, de forma que todos os documentos produzidos sejam fruto de uma produção coletiva. De 20 mil participantes no ano 2000, a Marcha multiplicou-se para 40 mil em 2003, 70 mil em 2007 e 100 mil nos anos de 2011 e 2015.
O segredo do sucesso da marcha, avalia Mazé, está nesse processo de formação e discussão na base. “A marcha envolve profundamente aquelas companheiras que estão nas mais diversas comunidades, localidades dos seus municípios. Isso faz com que as mulheres fiquem mais fortalecidas, empoderadas e que se envolvam mais para querer participar e realizar marchas estaduais, regionais, marchas municipais, até chegar aqui em Brasília.”
São as mulheres trabalhadoras do campo, da floresta e das águas, que comungam suas experiências de vida e luta, explica a organização. Quando surgiram no espaço público, as Margaridas se afirmaram como trabalhadoras rurais. A partir da Marcha de 2007 passaram a se nomear “mulheres do campo e da floresta”.
Em 2015, a denominação “mulheres das águas” foi incluída, para afirmar a diversidade das mulheres rurais, como agricultoras familiares, camponesas, sem-terra, acampadas, assentadas, assalariadas, trabalhadoras rurais, artesãs, extrativistas, quebradeiras de coco, seringueiras, pescadoras, ribeirinhas, quilombolas, indígenas e tantas outras identidades construídas no país.
A primeira Margarida
Margarida Maria Alves é a “força inspiradora” da Marcha. Trabalhadora rural nordestina, conseguiu romper o padrão machista e ocupou, por 12 anos, a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba. Aliada à trajetória sindical, Margarida lutava e incentivava suas companheiras a lutar pelo direito à terra, pela reforma agrária. Também queria que as mulheres estudassem e fundou o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural. Aos 40 anos de idade, em 12 de agosto de 1983, Margarida foi assassinada na porta de casa. Pistoleiros armados de calibre 12 atiraram no seu rosto, na frente de seu filho e de seu marido.
O crime foi uma retaliação às denúncias que a sindicalista fazia contra abusos e desrespeito aos direitos dos trabalhadores nas usinas da região. “Seu nome se tornou um símbolo nacional de força e coragem cultivado pelas mulheres e homens do campo, da floresta e das águas”, lembra a cartilha das Margaridas. “É em nome dessa luta que a cada quatro anos, no mês de agosto, milhares de Margaridas de todos os cantos do País marcham em Brasília, num clamor por justiça, igualdade e paz no campo e na cidade.”