Vereador Gilberto Natalini conta detalhes de violência e critica Bolsonaro por chamar coronel de ‘herói nacional’
Joelmir Tavares
Folha
Quando ouviu o presidente Jair Bolsonaro (PSL) louvar Carlos Alberto Brilhante Ustra como herói nacional, Gilberto Natalini, 67, repetiu o que sempre faz quando vê alguém exaltar o coronel-símbolo da repressão durante a ditadura militar: protestou.
Vereador em São Paulo pelo PV, Natalini foi ao Twitter e escreveu na quinta-feira (8): “Bolsonaro insiste em defender e alardear a tortura. A tortura é o ato mais abjeto de um ser humano sobre o outro”.
Naquele dia, o presidente recebeu no Palácio do Planalto a viúva do militar, Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra.
Natalini relatou na rede social que na década de 1970 foi torturado por Ustra, a quem se refere como monstro. Ganhou mil novos seguidores em menos de seis horas —parte se solidarizou com ele, parte o atacou.
“Uma pessoa falou que deviam ter me matado, que eu apanhei pouco”, afirma à Folha o vereador, que teve a chance de confrontar pessoalmente Ustra em 2013, em sessão da Comissão Nacional da Verdade.
Chamado de terrorista na ocasião, Natalini gritou de volta: “Terrorista é você!”.
Ustra chegou a ser condenado em ação civil na Justiça. Morreu em 2015.
A seguir, o depoimento de Natalini à Folha.
Eu fui torturado pelo coronel Ustra.
Aos 19 anos, em 1972, quando eu era estudante de medicina, fui preso pela ditadura militar e levado para o DOI-Codi [órgão de repressão do regime]. Fiquei lá cerca de 45, 60 dias; não lembro bem agora.
O Ustra comandava as sessões de terror. Eu fui torturado pela mão dele e da equipe dele, várias vezes. Colocavam duas latas de Neston [de alumínio], me faziam subir nelas, molhavam meu corpo com água e sal, ligavam fios em toda parte e disparavam os choques.
Era a noite toda: choque elétrico e paulada nas costas, com uma vara de cipó, que o Ustra usava para me chicotear.
Estou descrevendo uma das formas que eles adotavam, mas não me peça para narrar todas, porque é muito doído para mim. A tortura pesada durou mais ou menos um mês.
Choque nos ouvidos era todo dia. Sou deficiente nos meus ouvidos, de choque elétrico que o Ustra me deu. Fiquei com sequelas permanentes. Perdi 60% da capacidade de ouvir na orelha direita e 40% na esquerda.
Você não faz ideia do que é o choque no ouvido. Quando eles ligam a corrente elétrica, você grita. E, quando você grita, surge uma faísca que pula de um lado da boca para o outro. Isso queima toda a sua mucosa bucal. Descasca. Fica em carne viva.
É impossível você não gritar, porque não consegue suportar. Todo mundo grita na dor.
Ali era uma casa de horrores. Uma vez eu vi pendurarem um homem de cabeça para baixo, pelo pé, e deixarem quase 48 horas assim. Quando foi retirado, ele tinha tido uma apoplexia cerebral, e ficou lesado da cabeça.
Eu vi um outro preso entrar vivo, gritar a noite inteira de tanto apanhar e no dia seguinte sair arrastado pelo pé, morto, todo ensanguentado. A gente viu coisa que nunca esquece.
O Ustra era o nosso terror, porque coordenava tudo. Quem vai esquecer uma cara daquela? Aquilo é a própria cara da bestialidade, da monstruosidade.
Ele torturava jovens e velhos, mulheres e homens, crianças. Até matar. Ele e os paus-mandados dele. A equipe era toda de monstros. E ele ria, debochava, tirava sarro, numa boa.
Eu combatia a ditadura, mas não fazia parte de nenhum grupo ou movimento; era independente. Nunca participei de luta armada.
Naquela época, eu era aluno da Escola Paulista de Medicina e trabalhava como monitor de farmacologia. A justificativa para me prenderem foram jornais que acharam comigo de uma organização da luta armada, à qual nunca pertenci.
Os militares procuravam uma militante que mandava os jornais para nós, e nós não a entregamos. Apanhamos quase até a morte, mas não a entregamos.
O irmão dela foi preso junto. Só soltaram a gente depois que esse rapaz recebeu, dentro da prisão, um recado do pai deles informando que a irmã havia fugido do Brasil. Aí ele abriu a boca aos interrogadores e falou.
Quando os agentes foram atrás da mulher, ela já tinha ido embora do país. Aí nós apanhamos mais uns 15 dias, por castigo, vingança. E depois fomos fichados e soltos. Eu saí de lá ferido, magro, não tinha dormido direito. É muito cruel.
E você vê o presidente do Brasil, que foi eleito, defender torturador. Pelo amor de Deus! Incentiva a tortura, embora ela nunca tenha deixado de existir no Brasil, nas delegacias, no crime. O PCC, por exemplo, põe a pessoa dentro de pneus, bota gasolina e taca fogo. A tortura não morreu como método.
Historicamente, o Brasil é o país do acochambramento. A avaliação e a punição dos crimes de tortura também foram acochambrados. No Chile, aquele [Manuel] Contreras, que era um dos chefes da ditadura de Pinochet, morreu já condenado. Aquele [Jorge Rafael] Videla, ex-líder da Argentina, morreu cumprindo sentença.
Já o Brasil fez um acordo para livrar os torturadores e deu anistia geral. Isso ficou mal resolvido.