Músico e escritor angolano, embaixador do kuduro nos principais festivais de música eletrônica, lança seu primeiro romance, no qual mistura música e imigração
Os autores mais vendidos da 17ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho passado, são quatro negros e um indígena. A manchete que circulou nas últimas semanas desagradou o músico e escritor Kalaf Epalanga (Benguela — Angola, 1978), que entrou nesta lista com seu primeiro romance, Também os Brancos Sabem Dançar (Todavia). “Estou honrado, mas, no momento em que a vi, imediatamente li os nomes ao lado dos nossos: Companhia das Letras, Todavia, Cobogó, Harper Colllins… Nenhuma editora negra e, tenho certeza, com nenhum editor negro. Estamos a celebrar o quê? Que esses editores tiveram olho e coragem de editar essa literatura e encontrar valor nela ou o fato de que o público amadureceu ou realmente se diversificou? Esse discurso não pode ser apenas uma manchete. A coisa é mais profunda”, reflete, em entrevista ao EL PAÍS antes de uma palestra em São Paulo.
Epalanga questiona também, com sua voz grave e dentes que sorriem a cada frase, o fato de celebrar nomes já sonantes no mercado global. “Será que não é possível fazer isso com um escritor negro desconhecido?”. Ele próprio conquistou notoriedade anos antes, na música, à frente da banda Buraka Som Sistema (em hiato desde 2016), que espalhou o ritmo do kuduro pelo mundo e conquistou as principais pistas e festivais eletrônicos da Europa. Radicado desde os 17 anos em Lisboa —hoje vive entre a capital portuguesa e Berlim—, foi no Velho Continente que ele tornou-se tanto músico quanto escritor.
“Eu já escrevia sem a consciência de que estava a escrever. Lembro de fazer aquelas redações de escola e caprichar um pouco mais do que o normal, mas nunca achei que seguiria carreira. Sempre tive uma família de bons conversadores e, quando se é bom orador, a tendência é você conseguir construir frases bonitas, criar efeitos, dar impacto”, lembra. Quando chegou em Lisboa, conheceu o rap e começou a fazer letras. Colocando anúncios nos classificados dos jornais, formou a primeira banda. À medida em que suas letras conquistavam o público e a imprensa lisboeta, chegaram os primeiros convites para escrever. Aceitou o de ser cronista do jornal portuguêsPúblico, onde assina até hoje, e, em 2011, publicou a primeira parte de uma coletânea: Estórias para meninos de cor. A segunda parte, O angolano que comprou Lisboa (pela metade do preço), saiu em 2014.
Este é um resumo de sua trajetória, já que Epalanga, seguindo a tradição de sua terra, não sabe dar respostas curtas, e todas elas vêm permeadas de infinitas anedotas de suas andanças pelo mundo ou lembranças familiares. Algumas delas estão em Também os brancos sabem dançar, onde narra sua trajetória musical, a história do kuduro e da kizomba, e faz um retrato de sua Benguela natal e da Lisboa que o recebeu.
Foi precisamente o kuduro —referência literal a quadris duros, expressão que nasceu dancinha sem ginga do ator Jean-Claude Van Damme no filme Kickboxer(1989)— que abriu-lhe as portas ao mundo. Quando fala desse gênero musical, Epalanga fala em reconhecimento. Diz, que, pela primeira vez, o medo do estigma de ser estrangeiro “deixou de ser grave” e que aprendeu a aceitar essa condição como alguém que fala uma segunda língua. Acrescenta que, com a música, a cor da sua pele passou a ser um fator preponderante para sua autoaceitação. “Não consigo me ver de outra forma. Fora da Angola, me sinto sempre estrangeiro. Sou minoria, eu vim de um lugar onde eu sou a maioria e a exceção é o resto. Embora hoje eu pague impostos na Europa, trabalhe lá e tenha toda uma vida lá, vai demorar para sair dessa condição… Se é que algum dia sairei dela”.
“Também os brancos conhecem boas canções”
Em seu “romance musical”, Epalanga mescla referências que vão de Duke Ellington a Cesaria Evora, Shakira, Pixies, Outcast, M.I.A., Caetano Veloso, Chopin, Fela Kuti, Bob Dylan, Pink Floyd e mais. O fio condutor, no entanto, é a imigração. Dividido em três partes, cada uma com uma voz narradora, o livro inicia com uma experiência real vivida pelo músico e escritor quando foi detido pela polícia migratória na Noruega ao tentar viajar para um show da Buraka (ele tinha perdido o passaporte). “Na cadeia, pensando na minha vida, em por quê não ouvi minha mãe, por que não estudei Direito, fiz essa viagem pessoal pelas razões que me levaram até aquele momento, que eram exatamente o kuduro e a música”, conta.
A ideia de escrever o romance foi de seu conterrâneo e também escritor José Eduardo Agualusa, quem lhe pediu que fizesse a biografia do kuduro. “Como estou sempre em turnê, viajando pelo mundo, não tinha tempo de ir para Angola procurar kuduristas e entrevistá-los, então decidi fazer isso a partir do meu ponto de vista, contando uma história pessoal que ilustra minha relação com o gênero”.
Apesar de fazer autoficção, ele não se aventuraria na não-ficção. “Nunca vou escrever uma autobiografia. Porque, claro, mentiria. Seria um pouco mais alto, um pouco mais inteligente, teria um tanquinho”, ri. “Minha premissa não era necessariamente fazer autoficção, mas contar a história do ponto de vista de alguém que existe”
Epalanga gosta do “leitor distraído”, aquele que não costuma pegar em livros. Por isso, seus títulos são sempre provocadores. No caso do romance de estreia, o título também foi presente do amigo Agualusa. “Ele descobriu esse ditado, que diz ‘também os brancos conhecem boas canções’ ou ‘também os brancos sabem cantar’. Significa ‘não se deve julgar ninguém pelas aparências’. Escolhi essa referência porque essa é a grande questão na Europa agora, esse medo absurdo dos imigrantes, o medo de quem chega de fora. Esse livro é, então, um convite às pessoas olharem para as outras e não julgarem pelas aparências, porque, embora elas não tenham onde cair mortas, também são seres humanos”.
Um cenário recorrente em Também os brancos sabem dançar é a kizomba, nome dado às casas de dança que ele descreve como uma espécie de “santuário”, “um lugar de salvação”, espaços onde o kuduro se fixou e cresceu. “É também o lugar onde nós, africanos imigrantes na Europa, tínhamos nosso próprio nome. Porque muitos chegamos ali com uma mão na frente e outra atrás, trabalhando na construção civil ou na limpeza das casas, em tudo o que os europeus não queriam fazer. Éramos o pedreiro, a senhora da limpeza, não tínhamos nome. Então, na sexta-feira, nos vestíamos, íamos para as discotecas dançar e, ali, éramos indivíduos”, lembra o músico e escritor.
Epalanga diz que, para um africano, “principalmente os da nova geração, que crescem com esse estigma das imagens que existem na televisão e no cinema sempre de pobreza, de miséria“, a música é o único lugar de autoestima. “O rap, por exemplo, é esse lugar. A gente vê sempre os rappers afro americanos com certa arrogância e autodeterminação. Eu vi como, embora muitos da nova geração recusassem essa música africana, de repente, virou moda ou até motivo de orgulho resgatar esses valores. O kuduro veio daí. De repente, para nós, deixou de fazer sentido fazer uma música que copiasse um gênero estrangeiro. E era importante, mesmo que essa música fosse moderna, eletrônica e tudo mais, que ela tivesse nossa língua, nossos elementos e nossas histórias”.
Cosmopolita, Epalanga tem a ambição de retratar a “voz dessa urbanidade contemporânea africana”, que acompanha os debates globais em relação ao gênero, raça, ecologia, identidade e outros. Ele diz escrever em “pretoguês”, e sua relação com a palavra é de responsabilização, tensão e cuidado. “Tenho muita preocupação, quando escrevo, em encontrar palavras certas para sentimentos certos, em não usar uma palavra só para causar choque. Do mesmo modo que um ponto ou uma vírgula, uma palavra mal colocada revela a história só pela metade”.