METADE DA AMAZÔNIA SEM PROTEÇÃO TEM 81% DAS QUEIMADAS

METADE DA AMAZÔNIA SEM PROTEÇÃO TEM 81% DAS QUEIMADAS

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Revista Piauí – De janeiro a agosto deste ano, período com recorde de queimadas na Amazônia, a metade menos protegida do bioma registrou 81% dos focos de fogo identificados por satélites. Dessa metade fazem parte as terras privadas, griladas ou ocupadas por assentamentos. Já a metade preservada em territórios indígenas, áreas de proteção ambiental ou de conservação registrou 19% dos incêndios, atuando como um escudo contra a devastação da floresta. Os dados foram divulgados nesta quarta-feira pelo Ipam, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – organização científica não governamental que atua na região desde 1995.

O Ipam constatou que 33% dos focos de fogo ocorreram em propriedades rurais privadas – que, em extensão territorial, representam 18% do bioma. Outros 20% dos pontos de fogo estão em florestas públicas não-destinadas, como são chamadas terras públicas de destino ainda indefinido e que, na prática, acabam se transformando em terra de ninguém, alvo fácil de grilagem. Esse tipo de área corresponde a mais 15% da Amazônia. Os assentamentos de reforma agrária tiveram 18% dos focos de incêndio, apesar de ocuparem apenas 8% das terras da região. Mais 10% das queimadas ocorreram em áreas sem cadastro, ou seja, cuja situação fundiária se desconhece, porque faltam registros.

O município de Novo Progresso, no Pará, é um dos melhores retratos da concentração dos incêndios em áreas não protegidas. Quanto mais distante de áreas privadas, menor foi a chance de a floresta amazônica ser consumida pelo fogo. As propriedades rurais estão concentradas às margens da BR-163. São 190 quilômetros de comprimento e cerca de 60 de largura, formando uma mancha de queimadas que lembra uma espinha de peixe. É exatamente neste trecho que foi registrada a maioria dos focos de incêndio no município. Outra parte das queimadas ocorreu na Floresta Nacional de Jamanxim, área de proteção criada em 2006, justamente no trecho que se avizinha das propriedades rurais.

Juntas, propriedades privadas, florestas públicas não-destinadas, assentamentos e áreas sem cadastro correspondem a metade da Amazônia. Nelas estão oito de cada dez focos de incêndio e nove de cada dez hectares desmatados em 2019. Já na metade mais protegida da floresta, as unidades de conservação registraram 7% dos focos de fogo, terras indígenas, 6%, e áreas de proteção ambiental, onde pode haver ocupação e exploração econômica limitada, também 6% – apesar de terem apenas um sexto do tamanho das áreas indígenas.

De 1º de janeiro a 29 de agosto deste ano, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) detectou 45 mil focos de calor na Amazônia – o maior número registrado desde 2010. No mesmo período, o sistema Deter, também do Inpe, registrou indicativos de desmatamento em 6,38 mil quilômetros quadrados da região, equivalente a quatro vezes a cidade de São Paulo – os números são considerados subestimados, já que o Deter não estima com precisão a área desmatada.

Para saber onde acontecem as queimadas, o Ipam sobrepôs o mapa dos focos de incêndio identificados por satélite a mapas do uso da terra em toda a Amazônia, como o Cadastro Ambiental Rural, que identifica propriedades privadas, e os limites de unidades de conservação ambiental, territórios indígenas, projetos de assentamento e florestas não destinadas. “O que mais chamou a atenção foi o aumento de mais de 120% nos incêndios nas áreas de floresta não-destinada. Isso mostra que há um processo de grilagem e de ilegalidade associado ao fogo na Amazônia”, diz Ane Alencar, uma das autoras do estudo.

“Outro número que reforça que o aumento das queimadas está relacionado ao desmatamento é que 33% delas ocorreram em áreas de propriedade privada. Isso demonstra claramente que são incêndios relacionados à abertura de novas áreas para o processo produtivo”, completa Alencar. Por lei, as propriedades privadas também têm uma área que tem que ser preservada, chamada de reserva legal – o que chama ainda mais atenção para a concentração de focos de queimadas em áreas particulares.

Jerônimo Sansevero, professor do Instituto de Florestas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), avalia que transformar as florestas não-destinadas em áreas protegidas poderia afastar grileiros e frear a devastação. Também opina que seria possível punir casos de queimada irregular em propriedades privadas. “O governo sabe quem é o dono. Quando as pessoas estão deliberadamente queimando a própria terra, é quase uma prova de que acham que não vão ser punidas. Podem pensar: ‘já que o presidente diz que a gente tem que usar a terra, eu não vou sofrer multa, vamos lá’”, continua Sansevero.

Ao contrário do que acontece com os incêndios florestais em países de clima temperado como os Estados Unidos, a vegetação amazônica não evoluiu através do tempo convivendo com os efeitos do fogo. Não está propensa a se regenerar após uma queimada, como acontece com a do Cerrado. Outra diferença em relação ao Cerrado é que, na Amazônia, todas as queimadas são provocadas pelo homem. O início do fogo é sempre resultado da ação humana. Em períodos de seca mais intensa, as chamas podem se propagar com mais facilidade.

Porém, os dados revelados pelo Ipam indicam que a alta de incêndios nos primeiros meses de 2019 não está relacionada a condições climáticas – se estivesse, a tendência seria que o fogo se espalhasse mais facilmente pelos diferentes tipos de território, em vez de ficar concentrado nas áreas privadas. Além disso, no final de agosto, o Ipam também mostrou que há forte correlação entre o crescimento do desmatamento e o aumento de focos de incêndios na Amazônia em 2019. A estiagem, por sua vez, está mais fraca este ano. “Esta concentração de incêndios florestais em áreas recém-desmatadas e com estiagem branda representa um forte indicativo do caráter intencional do incêndios: limpeza de áreas recém-desmatadas”, cita o estudo.

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Os dez municípios amazônicos que mais tiveram focos de incêndios (37% do total) foram também os que mais registraram derrubada de floresta (43% da área desmatada na Amazônia). Novo Progresso está nessa lista. Entre janeiro e julho, foram derrubados 68 quilômetros quadrados de floresta no município – equivalente a mais de quarenta Parques do Ibirapuera, em São Paulo. Já o número de focos de fogo se aproxima de dois mil, segundo registros feitos pelos satélites Aqua, da Nasa, usados como referência pelo Inpe.

O auge das queimadas em Novo Progresso ocorreu entre 10 e 13 de agosto, quando foram registrados 30% dos casos do ano. O crescimento de focos de incêndio nesse período foi um desdobramento do “Dia do Fogo”, em 10 de agosto, quando focos de incêndio se espalharam pela floresta. A ação, que está sendo investigada pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF), seria uma demonstração de apoio dos fazendeiros locais ao presidente Jair Bolsonaro. Desde julho Bolsonaro enfrentava uma queda de braço com o Inpe, cujos dados apontavam para um grande aumento no desmatamento da Amazônia. A disputa terminou com a exoneração de Ricardo Galvão, que presidia a instituição, em 7 de agosto.

Em vez de ajudar Bolsonaro, porém, as queimadas corroboraram os dados do Inpe e geraram uma crise ambiental internacional. O jornalista Adécio Piran, no jornal Folha do Progresso, publicado na própria cidade de Novo Progresso, revelou os planos do “Dia do Fogo”. Depois disso, passou a sofrer ameaças oriundas do grupo de WhatsApp “Direita Unida Renovada”, segundo investigações da Polícia Civil do Pará.

Enquanto isso, Bolsonaro continuou a erguer cortinas de fumaça. Primeiro, levantou suspeitas sem provas contra ONGs, dizendo que poderiam estar por trás da alta de queimadas. Depois, recusou parte do dinheiro internacional oferecido como ajuda. Por fim, reuniu governadores da região amazônica e disparou contra terras indígenas, uma das poucas áreas que resistem à devastação ambiental. Já se confiasse em satélites e bases de dados, o presidente poderia redirecionar suas mensagens para o principal foco do incêndio, ou seja, os proprietários de terra e grileiros. “O Brasil gera muita informação boa, tem cientistas excelentes. Não usar esse ativo é uma insanidade. Mas, do relatório técnico até a política, muitas vezes isso se perde”, lamenta Sansevero, da UFRRJ.

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