Não é possível abstrair a pilhagem da Amazônia do cenário de agudização da crise internacional, simultaneamente financeira e comercial.
No GGN
Ao longo dos últimos 50 anos, a região amazônica, em sua porção brasileira, foi sendo acossada por dinâmicas de incorporação compulsória: a) de caráter governamental-geopolítico (Projeto de Integração Nacional – PIN, Projeto Calha Norte, Sistema de Vigilância da Amazônia; b) de caráter governamental-empresarial: Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento – ENIDs, Implementação de corredores de exportação contidos no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e no Programa Integrado de Logísitica – PIL; c) de caráter não-governamental e/ou multilateral (Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais – PPG7, Iniciativa para Conservação da Bacia Amazônica – ABCI, entre outros). Essas dinâmicas invariavelmente menosprezaram encadeamentos econômicos intrarregionais duradouros e compromissos com a singularidade cultural, com o bem-estar da população amazônida e com o protagonismo das comunidades tradicionais.
Esta panóplia de iniciativas expressa distintos projetos, interesses, experiências e imaginários. São “Amazônias”, como frisou Carlos Walter Porto-Gonçalves, que resultam do entrechoque e convivência de formações sociais e espaciais diferenciadas: áreas de conservação, áreas de uso sustentável, reservas extrativistas, terras indígenas, assentamentos rurais, terras de quilombos, áreas de posse tradicional de ribeirinhos e de agroextrativistas, áreas de posse recente de migrantes das últimas décadas, territórios empresariais, pequenas e médias cidades, regiões metropolitanas. Não se trata aqui do arrolamento de diversidades territoriais fixadas, mas sim de identificar tensões territoriais continuadas e que podem gerar desenlaces, seja em direção a uma maior homogeneidade funcional-mercantil, seja em direção a uma maior pluralidade socioeconômica.
Não é possível abstrair a pilhagem da Amazônia do cenário de agudização da crise internacional, simultaneamente financeira e comercial. Acordos setoriais entre conglomerados de soja, carne, ferro e energia têm origem ou incidência em constelações geoeconômicas e políticas. O arroubos de Governos da União Europeia e advertências do G7, sinalizando cortes de ajuda internacional e sanções comerciais, evidenciam uma tentativa de reenquadramento dos estoques de capital natural disponíveis no mundo, contabilizados nos termos dos regimes climáticos do Acordo de Paris. A União Europeia, em seu Acordo com o Mercosul, reforça a especialização regressiva do bloco em commodities, tendo a Amazônia como principal “estoque”, sem que haja qualquer tipo de proposição para fazer compartilhar avanços tecnológicos que seriam característicos de uma “4ª revolução industrial” ou de uma “sociedade do conhecimento”.
Exploração incondicionada ou autorregulada parece ser o dilema permitido entre os que promovem ou admitem a instrumentalização da Amazônia. O que continua em jogo é o livre trânsito para apropriações de riqueza em bloco, seja nos territórios, seja nos fundos públicos. O sinal verde para devastação negocia com o sinal amarelo as condicionalidades e salvaguardas para que a acumulação prossiga célere e esverdeada. É muito barulho só para garantir minoração de danos ou para manter a obtusidade desse modelo dissimulada.
O problema não são apropriações e privatizações “selvagens”, mas civilizadas demais, por isso apresentadas como necessárias e inevitáveis. O aumento vertiginoso do desmatamento seguido de queimadas na Amazônia, nos meses de julho e agosto de 2019, pode ser interpretado como um teste do que pode e do que não pode ser feito na região. Como a concepção de injustiça depende do nível de tolerabilidade que vigore num dado arranjo societal, a tolerância frente à injustiça e os danos socioambientais se torna um exercício de renovação da desordem organizada.
É notório o estrago produzido por décadas de desregulamentação dos setores especializados em recursos naturais, mas reverter esse desmanche está fora de pauta no país das commodities. No brinde e na reverência aos investidores que sustentam o país pelo cangote, parece não haver divergência. Intercambiaram-se de tal modo os papéis e funções entre licenciadores e empreeendedores que já praticamente não se distinguem. Ao final, tem-se um bloco de poder interescalar móvel, descolado e desaforado que é resultante das alianças entre segmentos de conglomerados em competição e burocracias políticas capturáveis.
O arranjo territorial concebido para a região como um mosaico de terras protegidas em meio de corredores de ocupação que respeitassem o marco do zoneamento econômico-ecológico já não cabe nem mesmo como marco lógico. O brutal ajuste espacial imposto à Amazônia está agora sendo acompanhado por um “ajuste institucional” que normaliza e programa a extinção da região.
A meta conjugada é regularizar o vale-tudo para os setores dedicados a commodities com a varredura e sabotagem dos últimos intrumentos de efetivação de direitos territoriais e de normativas ambientais. A Amazônia se tornou o palco preferencial de sacrifícios que servem para solidificar acordos entre esses agentes. Para converter a Amazônia em um não-lugar, guerra total e assimétrica não basta para descrever o que será preciso. Não vai ser possível calcular quanta dor se acumulará nas dobras dos próximos dias, meses, anos, para que finalmente terra e territórios nus se rendam, amortecidos, à exploração compulsória do agronegócio, da hidroeletricidade e da mineração.
Exemplo disso é o projeto Barão do Rio Branco que faz uso de um simulacro de ideologia de segurança nacional para disponibilizar aos “bons parceiros” novas levas de rios, terras e jazidas minerais na Amazônia. Trata-se de um subproduto do alinhamento incondicional do bolsonarismo à potencia militar norte-americana para destravar negócios inaceitáveis com bens públicos. Esta é a utilidade total e o valor de troca do pseudonacionalismo: embalar um pacote de grandes obras estratégicas somente para um conjunto apátrida de capitais.
O projeto teve sua formatação civil-empresarial abortada para posteriormente se disseminar em sua versão paramilitar-empresarial. Depois de entregar a Amazônia a toda sorte de intervenções desfiguradoras, revindicar soberania formal sobre a região soa a artimanha de leiloeiro interessado em oficializar os próximos lances. Se a cortina de fogo que percorreu os principais eixos de expansão dos setores de commodities na Amazônia foi uma sinalização de acordos tácitos entre grupos empresariais, grupos políticos e suas milícías entrelaçadas, o projeto assumidamente aloprado anuncia explicitamente que quer integrar para entregar.
Luis Fernando Novoa Garzon – Professor da Universidade Federal de Rondônia. Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. l.novoa@uol.com.br