Um grande grupo de acadêmicos e advogados defende o redimensionamento dessas empresas
O gigante fundado por Jeff Bezos nos anos noventa, sustenta Khan, é juiz e parte interessada: “Os milhares de varejistas e negócios independentes que precisam usar a Amazon para chegar ao mercado dependem cada vez mais de seu concorrente. (…) Ele tem tantos dados de tantos consumidores, está tão disposto a abrir mão do lucro, é tão agressivo e obtém tantas vantagens de sua infraestrutura de envio e armazenamento que exerce uma influência que vai muito além de sua fatia de mercado”.
Khan e outros especialistas norte-americanos −Barry Lynn, Tim Wu− que seguem essa linha são chamados por seus admiradores de “novos brandeístas”, em referência a Louis Brandeis, conhecido como o advogado do povo por enfrentar, na primeira metade do século XX, oligarcas como John D. Rockefeller e J. P. Morgan. Já os críticos da jurista qualificam a nova corrente de “antimonopólio hipster”. Neste sentido, destaca-se um artigo publicado em junho por Timothy Muris, ex-presidente da Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos, e Jonathan Nuechterlein, ex-conselheiro do mesmo organismo, em resposta ao movimento de Khan, intitulado Antitrust in the Internet Era (“antitruste na era da Internet”). Os autores destacam que a Amazon “contribuiu com centenas de milhões de dólares para a economia dos EUA” e é “um inovador brilhante”. Eles também alertam que muita regulamentação pode arruinar uma empresa, e citam alguns exemplos do passado de empresas que tiveram problemas, segundo eles, pelas pressões das autoridades. O debate está aberto.
Apesar das resistências, a ideia que parece ganhar cada vez mais peso é a de que é necessário fiscalizar e impor mais limites aos chamados Big Four (“quatro grandes”) ou GAFA (por suas iniciais). Google, Amazon, Facebook e Apple controlam os dados de milhões de cidadãos de todo o mundo, sabem o que compram, do que gostam e não gostam, o que leem, aonde vão de férias, quanto ganham, suas lembranças fotográficas, se estão buscando um carro novo ou tênis para comprar… Além disso, essas empresas são capazes de conectar e vender todas essas informações. Suas plataformas são o gigantesco mercado do novo século, um espaço em que atuam como juiz e parte interessada, em uma escala inimaginável há apenas três décadas e, portanto, muito difícil de controlar com a legislação existente. Os novos gigantes estabelecem as regras, escapando em grande medida das restrições às quais estão sujeitos aqueles negócios mais tradicionais. Jogam com vantagem?
“É necessário que os Governos regulem, assim como ocorreu em outras épocas com o setor ferroviário, as telecomunicações e a energia”, defende Michael Cusumano, professor da Sloan School of Management do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Hoje, a natureza do sistema permite que as empresas tecnológicas cresçam muito rapidamente e se transformem em líderes indispensáveis de sua especialidade. “É por isso que temos um sistema operacional dominante para computadores (Microsoft), outro para celulares (Android), um grande buscador (Google), uma rede social (Facebook), um grande mercado real (Amazon) e uma grande loja digital (iTunes)”, explica. “Precisamos de regras atualizadas para a era das plataformas digitais e da Internet.” Tudo isso, insiste, deve ser feito com cuidado, sem que os Governos intervenham além do necessário.
A questão fundamental é como conter o irrefreável impulso canibal dessas empresas. Uma resposta —até recentemente impensável— que começa a ter eco entre especialistas, legisladores e políticos é que, de alguma forma, será necessário fatiar esses gigantes para defender a concorrência na nova economia digital. Está aberta a discussão de restrições às big techs e sua atividade está sendo investigada tanto na Europa como nos Estados Unidos. As mesmas empresas que uma década atrás eram saudadas como “heróis da inovação” capazes de quebrar esquemas e mudar o antiquado panorama empresarial enfrentam hoje críticas crescentes, embora seus negócios continuem prosperando.
Nos Estados Unidos −um lugar muito menos propenso que a Europa a intervir nos mercados−, Elizabeth Warren, aspirante democrata à Casa Branca, é uma das vozes que defendem com mais firmeza a necessidade de fragmentar os gigantes. Ela prometeu fazer isso se for eleita presidenta em 2020. Mark Zuckerberg, presidente e fundador do Facebook, já reagiu com um aviso: “Queremos trabalhar com o Governo e fazer coisas boas. Mas se alguém ameaça algo que é tão existencial, você vai para o ring e luta”, disse ele em uma gravação vazada na semana passada, referindo-se a uma hipotética vitória de Warren.
O compromisso eleitoral da democrata está alinhado com outras ações: em junho, a Comissão Judicial da Câmara dos Representantes dos EUA anunciou uma investigação para decidir se é preciso endurecer a legislação e estreitar o cerco às empresas tecnológicas. Pouco depois, o Departamento de Justiça anunciou outra investigação sobre as práticas comerciais de empresas como Twitter, Facebook e Google, para determinar se asfixiam seus rivais de forma ilegal. Além disso, procuradores de todos os Estados iniciaram uma grande investigação sobre práticas abusivas destas companhias.
Na União Europeia, a Comissão Europeia estabeleceu como uma de suas prioridades a imposição de limites a essas empresas: ela está promovendo o debate sobre como endurecer a regulamentação e já aplicou multas multimilionárias, principalmente contra o Google (três sanções, totalizando 8,23 milhões de euros, ou 36,6 milhões de reais, em dois anos). Essas sanções punem, entre outras coisas, o fato de que a ferramenta esconda em seu mecanismo de pesquisa os resultados que não lhe interessa destacar. Não é de estranhar que a comissária europeia para a Concorrência, Margrethe Vestager, seja conhecida como o flagelo das tecnológicas. O Executivo comunitário investiga desde julho as práticas comerciais da Amazon, por suposto uso indevido de dados de vendedores independentes que operam em sua plataforma. Em Bruxelas foi aberta outra frente, concentrada em garantir que as tecnológicas paguem os impostos que lhes correspondem no lugar em que atuam.
Como conter o poder e apetite descontrolado dessas empresas? Entre as fórmulas propostas pelos especialistas, existem várias opções. Uma delas seria limitar o número de setores nos quais os gigantes atuam; ou seja, impedir que entrem, por exemplo, no mercado financeiro ou no transporte, áreas em que já começam a atuar, como o Facebook com a criptomoeda Libra.
Uma segunda alternativa seria controlar sua absorção compulsiva de concorrentes em potencial −como a compra do WhatsApp e do Instagram pelo Facebook, e do YouTube pelo Google. “Deveríamos considerar a possibilidade de endurecer os controles sobre fusões quando estas operações são realizadas por empresas dominantes de um mercado que comprar sistematicamente startups que poderiam ser rivais”, opina Heike Schweitzer, professora de Economia da Universidade de Humboldt, em Berlim. “Quando são aplicadas as regras de concorrência, devemos tomar cuidado para proteger e não obstruir a inovação”, assinala Schweitzer, um dos três especialistas a quem a Comissão Europeia encomendou um relatório publicado no primeiro semestre sobre como regular o novo mercado.
Outra opção que está sendo debatida −a que efetivamente fatiaria as empresas− é separar alguns de seus negócios em diferentes companhias. Fragmentar o negócio, “cortá-lo em pedaços”, tem seus riscos. Por exemplo, se isso fosse aplicado à Apple e parte de seus serviços e aplicativos fosse separada dos demais negócios (dispositivos móveis, tablets…), o setor com mais perspectivas de negócios, os aplicativos, seria desvinculado da fabricação dos dispositivos nos quais esses aplicativos funcionam, uma área mais madura e, portanto, com menor potencial de crescimento. “Não gosto da ideia de punir as empresas por ser bem-sucedidas”, adverte Michael Cusumano, do MIT.
Mas parece que “dividir e vencer” não é a única fórmula para defender a concorrência e punir as más práticas. Heike Schweitzer considera que seria útil criar uma série de normas simples, específicas para as plataformas digitais, como proibir que deem preferência a seus próprios produtos, exigir interoperabilidade com outros serviços complementares e forçá-las a adotar um regime de portabilidade de dados mais rigoroso.
De qualquer forma, é necessária uma revisão das regras, porque as que estão em vigor são obsoletas e podem ficar presas em processos que duram anos nos tribunais. Elas não foram pensadas para tentar domar os gigantes tecnológicos, cujos negócios vão além do que se conhece até agora. “As dinâmicas da inteligência artificial, os algoritmos e o comércio online levam a concorrência a um terreno desconhecido”, explica Ariel Ezrachi, professor da Universidade de Oxford, em Virtual Competition (“concorrência virtual”). A oferta disponível nas plataformas é muito ampla, mas não é transparente. A nova dinâmica de mercado gerou uma “miragem de bem-estar”, alerta Ezrachi. Os desequilíbrios têm quase sempre forma de algoritmo, e tanto o Google quanto o Facebook têm um grande poder para definir os preços dos anúncios.
Além disso, existe o problema espinhoso do uso e/ou abuso de dados, que abre a questão sobre como são comercializados e quem ganha dinheiro com eles. “Em termos de concorrência, como podemos ter certeza de que as posições de hegemonia não são reforçadas e perpetuadas graças ao controle de dados?”, pergunta a professora Schweitzer. “Uma empresa que controla dados pode ter ampla vantagem sobre os concorrentes em setores nos quais nem está ativa. Os novos intermediários da informação, seja esta geral (Google Search), de produtos (Amazon) ou mídia (Facebook, YouTube), podem direcionar a atenção dos consumidores de uma forma que beneficie seus interesses”, adverte Schweitzer.
Num mundo em que ter a informação correta é fundamental para competir, em que o poder não está limitado ao setor financeiro, está também em conseguir dados de clientes reais ou potenciais, os especialistas defendem que as empresas deveriam ser forçadas a compartilhar dados com seus rivais, sem que seja preciso fatiá-las para evitar monopólios.
A ideia de desmembrar as empresas tem outro problema: a tecnologia muda rapidamente e as decisões podem ficar obsoletas em pouco tempo. “Estabelecer algumas restrições seria uma solução mais adequada, porque é mais fácil adaptar as regras a novas situações”, opina Cusumano, coautor do livro The Business of Platforms: Strategy in the Age of Digital Competition, Innovation and Power (“o negócio das plataformas: estratégia na era da competição digital, inovação e poder”), publicado em inglês pela Harper Business. Num mundo em transformação e cada vez mais sofisticado, o professor do MIT propõe um sistema flexível que deixe nas mãos de um painel de especialistas em regulamentação a decisão, segundo cada caso. É possível determinar que uma empresa infla os preços por falta de concorrência, mas como agir quando as plataformas oferecem serviços de graça, porque é isso que lhes permite fazer negócio com seus usuários? Cusumano considera que um grupo de especialistas que avalie cada situação seria a melhor resposta.
Outro exemplo de como é difícil forçar o desmembramento de um gigante é o caso da Microsoft. Em 1998, num dos processos antimonopólio de maior destaque da era digital, o Departamento de Justiça dos EUA e um tribunal de primeira instância decidiram que a empresa de Bill Gates desfrutava de uma posição de monopólio e deveria ser dividida Mas a Microsoft entrou com recurso, e outro tribunal anulou a decisão em 2001. Ficou decidido que a Microsoft, em vez de se fragmentar, deveria cumprir uma série de restrições. Um grupo de especialistas analisou o assunto e determinou que a empresa oferecesse seu buscador e seu reprodutor de vídeo separadamente, sem que viessem incluídos no pacote do sistema operacional Windows, como ocorria até então. Há precedentes em outros setores: a Justiça dos EUA determinou em várias ocasiões a divisão de uma empresa como punição por seus excessos monopolistas (como ocorreu com a petrolífera Standard Oil e com a companhia telefônica AT&T).
“Fragmentar as empresas é uma solução atraente para as pessoas que estão cansadas dos monopólios, mas nem sempre é a melhor opção”, diz Christopher Sagers, membro do American Antitrust Institute e professor da Universidade de Cleveland, muito crítico da conduta das big techs. Se o mecanismo de busca do Google for dividido, o que impedirá que as pessoas continuem usando apenas um dos novos buscadores resultantes? “Se você divide as empresas e não faz mais nada, a situação não muda de verdade”, acrescenta.
O que é exatamente um monopólio no século XXI? As comparações com o passado não servem: as novas companhias tecnológicas são plataformas que permitem que milhões de usuários interajam e milhares de empresas ofereçam seus produtos. Crescem em um ritmo e escala nunca vistos, graças aos efeitos positivos de estar em rede. Ou seja, para o usuário pode ser muito difícil não entrar: como não ter WhatsApp, se todo mundo tem? Em outro trabalho que acaba de publicar, a jurista Lina Khan explora a possibilidade de separar a propriedade das plataformas da atividade comercial que elas hospedam. Teremos de esperar para ver se as pressões de políticos, juristas e cidadãos sobre as tecnológicas chegam suficientemente longe para, como diz Zuckerberg, obrigar seus gestores a ir para o ring e lutar.