O Chile continua sendo palco de intensos protestos, que causaram um variado leque de sensações: esperança por mudança, pena pelo que foi destruído, raiva contra o vandalismo e perplexidade.
Paula Molina
De Santiago para a BBC News Mundo
Nos últimos, apesar do toque de recolher imposto pelos militares, o país testemunhou a destruição de estações do metrô em Santiago, panelaços — inclusive nos bairros mais ricos de Santiago —, vandalismo e saques a supermercados e farmácias nos últimos dias.
O estopim da revolta foi quando, por recomendação de um grupo de especialistas em transporte público, o governo do presidente Sebastián Piñera decidiu elevar o preço dos bilhetes de metrô em 30 pesos (R$ 0,17), chegando a um máximo de 830 pesos (R$ 4,73).
O caos se propagou em várias cidades do Chile. Para acadêmicos como a socióloga e doutora em estudos americanos Kathya Araujo, os sinais que anteciparam a crise vinham se acumulando há tempos — e não está apenas no aumento do preço do bilhete de metrô.
Há três anos, a socióloga começou a estudar a experiência dos usuários no metrô chileno, que vê como “uma metáfora do que ocorre na sociedade”.
No estudo de campo, seus entrevistados repetiam uma mesma frase: “o metrô é o lugar onde nos tratam como animais”.
Confira a entrevista da socióloga à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
BBC – Que condições se deram para que os protestos explodissem no Chile após a alta na passagem do metrô?
Kathya Araujo – É bem difícil saber por que agora, por que hoje e não ontem, mas creio que há alguns fatores que podem ser reconstituídos: um tem a ver com o transporte público.
Este não é o único caso no mundo, nem na história do Chile, em que o transporte público causa revoltas, porque tem a ver com uma coisa cotidiana.
No caso chileno, ele representa uma parte muito alta do orçamento familiar: o efeito de uma alta na passagem é direto, visível e afeta muitas pessoas.
Outro fator em jogo nesta crise é que, há um bom tempo, como diziam os estudos e era visível, o metrô se converteu numa espécie de metáfora do que ocorria na sociedade.
Em nossos estudos, as pessoas usavam o metrô como metáfora extremamente forte da sociedade, com suas contradições, seus abusos, suas tensões, onde as pessoas dizem ser “tratadas como animais” na hora do rush.
É um lugar onde elas são obrigadas a funcionar “como em uma guerra contra os outros”, onde para subir há que se lutar contra todos, onde queremos que não nos empurrem mas somos obrigados a empurrar.
O metrô funciona como uma encarnação da desigualdade quando se comparam as estações de algumas linhas com outras.
BBC – Ainda assim, o metrô de Santiago representa uma grande melhora na forma de transporte de algumas décadas atrás…
Araujo – Exato. E a experiência do metrô tem momentos muito gratos, claro, mas também tem outros momentos, como nas horas do rush, que são precisamente as horas nas quais se transportam as classes trabalhadoras e os estudantes, em que o metrô é verdadeiramente a selva.
O metrô é as duas coisas: um lugar querido, celebrado, que ao mesmo tempo resolveu e não resolveu nossos problemas, assim como é o país.
BBC – De que forma?
Araujo – O metrô é como nossa sociedade: melhoramos as condições de vida, mas não a qualidade de vida.
E são melhoras que, no Chile, em geral, estão nas costas das pessoas.
Então, claro, o Chile está muito melhor, mas você não tem tempo para seus filhos, tem que trabalhar todo o tempo, está endividado, estuda e não tem onde exercer sua profissão. É uma permanente contradição.
São condições melhores, em geral, mas não uma qualidade de vida melhor.
As coisas materiais melhoraram para todo mundo, mas não a qualidade.
Por isso insisto na metáfora do metrô: as pessoas gostam de suas condições, mas não gostam de tudo o que isso implica para sua qualidade de vida e se perguntam “temos de pagar um preço tão alto pelo que temos?”
Os salários não aumentaram, o endividamento é muito alto, e não é um endividamento do consumo de luxo, mas para sobreviver.
É essencial entender que essa é a tensão que temos no Chile.
E o problema não é só o diagnóstico. O problema é o que vamos fazer adiante, que é o essencial.
O que está acontecendo com a sociedade, o que está acontecendo com os políticos.
BBC – Alguns ministros do presidente Piñera disseram às pessoas que se levantassem mais cedo se quisessem comprar um bilhete mais barato, ou que fossem comprar flores porque estavam mais baratas.
Araujo – Esses comentários representam a grande distância entre a elite e os cidadãos chilenos, mas essa distância não explicaria a crise, porque é comum a outros países latino-americanos.
A separação, a distância da elite política chilena, é uma parte da explicação para essa crise, claro, mas a arrogância da elite no Chile não é só da elite política, é da elite em geral: é como se não tivessem se dado conta de que estão em outro país, com outros indivíduos que têm ideias muito mais fortes do que antes, que têm outras expectativas de relação, mais expectativas de horizontalidade.
É como se não soubessem como o povo mudou.
Não se deram conta da magnitude da mudança, e, como não se dão conta, seguem com esses tiques de responder como se estivessem conversando com o caseiro da fazenda.
BBC – Em que momento acha que começou essa demanda por mais horizontalidade por parte de chilenos e chilenas?
Araujo – Eu fiz trabalho de campo de 2004 a 2007 para o livro Usos e Abusos no Chile Atual, e as pessoas ali já estavam saturadas do abuso e esperavam situações mais horizontais.
E a elite teve reações pragmáticas, mas sem se dar conta de que os fundamentos de sua autoridade estavam se transformando.
Há algo que se produziu ali, que eles não notaram, que o país estava mudando, que pedia mais horizontalidade, que tinha mais consciência e que as bases de sua própria autoridade tinham de ser distintas.
BBC – Como avalia a decisão de enviar os militares para controlar a ordem?
Araujo – O peso simbólico de uma medida como essa no Chile é altíssimo.
Isso só poderia alimentar o fogo, como ocorreu real e metaforicamente: só poderia alimentar o fogo da sociedade.
Havia que se recorrer às forças da ordem, claro, há que se proteger as pessoas, porque aqui se começaram a mesclar muitas coisas, algumas delituosas.
Mas acho que foi apressado enviar os militares, foi um erro.
No momento em que o governo o fez, como fez, avivou o conflito.
Isso foi construir um cenário de guerra.
BBC – Os saques têm chamado muito a atenção…
Araujo – Acredito que há um setor de pessoas que de forma alguma faria saques, incêndios ou vandalismo.
Mas acho que há um setor que cruza as fronteiras.
Acho que não temos informação para saber quem são, ou como são, ou de que idade, ou de que setor.
No entanto, esses não são os primeiros casos de vandalismo, e isso quer dizer que há um grupo de pessoas que não compartilha de certas normas comuns.
Aí há um sintoma que devemos seguir investigando, porque há uma coisa muito forte com a questão dos saques, mostram que alguns princípios da vida em comum parecem não funcionar para um setor da população.
BBC – Havia irritação no Chile…
Araujo – Eu creio que as pessoas no Chile estão sendo demasiadamente exigidas e o nível de exigência em algum momento terá de parar.
Isso não é um estalido que vem do nada, a sociedade chilena está muito irritada, e isso era vislumbrado há vários anos.
Já em 2009 e 2012 se mostrava que a sociedade estava crescentemente enojada e com uma tendência cada vez maior a sobrerreagir aos eventos que tinha de enfrentar.
E isso emergiu com toda sua potência desta vez.
Porque essa irritação, essa violência foi se instalando em lugares distintos da sociedade: nos bairros com “balas perdidas”, em escolas, em universidades, na fragilidade das classes menos favorecidas do país.
Há uma violência que está instalada há muito tempo, com muitos focos, e acredito que temos de nos recuperar disso.
Isso não explica a ocorrência disso agora, mas sim que isso esteja ocorrendo.
BBC – Assim como o metrô se via como um dos mais modernos da América Latina, o Chile também se vê como um país moderno…
Araujo – Sim. Essa é a contradição: o país é um dos mais ricos e estáveis da América Latina.
Mas hoje temos de explicar por que as pessoas estão nas ruas e por que há “panelaços” em toda a cidade.
E acho que tudo isso tem a ver também com as elites empresariais e políticas arrochando mais do que podiam arrochar, aplicando uma certa lógica capitalista no país.
Porque, claro, te colocam em um escritório lindo, mas te fazem trabalhar por um salário miserável.
BBC – Acredita que é o fim do “modelo chileno”?
Araujo – Não acho que seja o fim do modelo chileno se com isso você queira dizer “fim do capitalismo”.
Mas espero que seja uma inflexão maior, ou ao menos um bom estímulo para repensá-lo à luz dos efeitos do neoliberalismo chileno mais de 40 anos depois.