“Triste momento este que vivemos no Brasil. As redes sociais, em vez de contribuírem para conscientizar politicamente a sociedade e para disseminar informações corretas, favorecem o comportamento de manada: as pessoas seguem, sem pensar, as turbas movidas pelo ódio para linchar o desafeto da vez”, escreve Cynara Menezes sobre.
Por Cynara Menezes, no Socialista Morena e para o Jornalistas pela Democracia
Sou fã declarada de Raul Seixas e das músicas que fez com Paulo Coelho. Admiro ambos, a despeito da má vontade da crítica literária brasileira com a obra do “mago”. Foi, portanto, com espanto e indignação que recebi a “notícia” de que o cantor baiano poderia ter delatado o parceiro na época da ditadura, surgida a partir de uma matéria publicada pela Folha de S.Paulo na quarta-feira, 23 de outubro, sobre uma nova biografia de Raul escrita pelo jornalista Jotabê Medeiros, Não Diga Que a Canção Está Perdida (editora todavia).
No livro, aparece um documento que indicaria que o músico “dedurou” o escritor e sua namorada, Adalgisa Rios, que acabaram presos. Paulo foi torturado por duas semanas em 1974, mesma época em que o cantor foi ao DOPS depor e ficou apenas 30 minutos. A reportagem afiança que Jotabê acredita que o escritor “não tem dúvidas de que Raul o entregou”. Paulo Coelho chegou a divulgar a reportagem da Folha com o comentário: “Fiquei quieto por 45 anos. Achei que levava segredo para o túmulo”.
De cara, a tentativa de “simonalização” de Raul me pareceu injusta, primeiro porque o cantor está morto há 30 anos e não pode se defender. E, mais importante, porque o “documento” revelado é absurdamente inconclusivo. Com base nele, não é possível afirmar nada, quanto mais apontar Raul como dedo-duro. Além disso, o que exatamente o cantor poderia “dedurar”? Paulo afirma não ter sido militante de nenhuma organização; e não estava foragido ou na clandestinidade. Delatar o quê? Reagi com firmeza no twitter, lamentando o julgamento precipitado sobre o cantor.
De nada adiantou meu protesto: a fraca “suspeita” se transformou em certeza no tribunal lavajatista das redes sociais. Raul Seixas virou “X-9” e foi “cancelado”, gíria da rede para decretar a “morte” de alguém após alguma denúncia. O assassinato da reputação de Raul, nunca acusado de algo parecido, parecia consumado.
A jornalista Rosana Hermann rebateu meu tweet original, direcionado a Paulo Coelho, em que eu afirmava não achar bacana levantar suspeitas tão graves contra alguém que já não pode se defender. Para Rosana, o que falei seria o mesmo que impedir alguém de atacar o torturador Brilhante Ustra, contra quem existem dezenas de provas e depoimentos e que foi submetido a julgamento ainda vivo, em 2008 (ele morreria em 2015). Ou seja, equipararam Raul Seixas a Ustra!
A partir do tweet de Rosana, passei a ser eu o alvo do linchamento. Fui acusada de tentar “passar pano” na denúncia; e de “duvidar da palavra da vítima”. Disseram que eu não tinha “lugar de fala” para falar do tema. Vários me chamaram de “louca”; e um rapaz me xingou de “putinha” e “vagabunda” por não aceitar que Raul “dedurou Paulo Coelho para comprar maconha”. Ele acabou apagando a postagem.
Fernando Morais, biógrafo de Paulo, afirma que o escritor, em quatro anos de convívio, jamais mencionou a suspeita de Raul ter lhe caguetado, e que o “documento” apresentado nada mais é do que uma ficha do cantor feita pelo DOPS
Mas a história teria uma reviravolta. O escritor Fernando Morais, biógrafo de Paulo, publicou um texto em seu blog Nocaute afirmando que o escritor, em quatro anos de convívio, jamais mencionou a suspeita de Raul ter lhe caguetado, e que o “documento” apresentado nada mais é do que uma ficha do cantor feita pelo DOPS. “O documento não revela que Raul fez depoimento no dia 22 de abril. Não é possível saber, sequer, se ele estava presente quando esse documento foi produzido”, diz Morais. “Até que surja alguma nova informação, o que esse documento prova é que no dia 22 de abril de 1974 o trio Raul-Paulo-Gisa entrou no radar do CIEx/DOI-Codi.”
O que aconteceu a seguir foi que o escritor recuou. Apagou o tweet original, onde corroborava a suspeita, e publicou outro onde acusa o biógrafo de induzi-lo ao erro, exibindo um e-mail onde Jotabê afirma que Raul “já tinha sido ouvido” e que chamara Paulo ao DOPS sabendo “que ele ficaria por lá”.
O jornalista, por sua vez, publicou um texto no facebook onde diz que “em nenhum momento” seu livro afirma que Raul delatou Paulo. O que existia, segundo Jotabê, era a desconfiança do escritor em relação ao parceiro, como ele mesmo admitiu, aliás, ao compartilhar a matéria da Folha. O próprio biógrafo defende que o documento é “inconclusivo”.
Em entrevista ao G1 nesta sexta, Jotabê Medeiros rebate Paulo Coelho e diz que foi o escritor quem lhe mostrou o documento e não o contrário. “O Paulo me disse que, pelo documento, o Raul havia sido incumbido de vigiar ele. Bom, eu fui até o Arquivo Público do Rio de Janeiro e peguei o documento, ele achava que poderia ser inventado. O original está lá, eu tenho fotos, o número da pasta, tudo.”
“Quando eu vi o documento ponderei que ele não era conclusivo, e o livro diz que ele não é conclusivo. Ele indica que a ditadura determinou que o Raul fosse contatado, mas não se sabe se foi verdade. O Paulo provavelmente surtou, não sei o que aconteceu com ele. Eu não assumi a questão da delação, ele achava que eu fosse assumir.”
O que se conclui dessa história? Que afinal não há nada que indique que Raul Seixas tenha sido colaborador da ditadura e denunciado seu amigo, co-autor de algumas de suas músicas mais famosas. No entanto, a mancha já paira sobre a reputação do cantor. Sem prova alguma, Raul foi julgado e condenado como “dedo-duro”. Foi “cancelado”. Infelizmente, o rancor antigo que Paulo parece carregar até hoje em relação ao parceiro prejudicou seu julgamento e ele acabou participando ativamente desse processo lamentável. Arrependido, voltou atrás, mas era tarde.
A reação dos inquisidores virtuais é reflexo do que vivemos na política. Acusações sem prova e delações de criminosos, replicadas à farta pela imprensa, viraram a nova verdade. Hoje mesmo Lula está sendo acusado por um pilantra de ser mandante de um assassinato e o assunto virou capa de revista
Triste momento este que vivemos no Brasil. As redes sociais, em vez de contribuírem para conscientizar politicamente a sociedade e para disseminar informações corretas, favorecem o comportamento de manada: as pessoas seguem, sem pensar, as turbas movidas pelo ódio para linchar o desafeto da vez, como naqueles filmes antigos de terror onde a multidão ensandecida carrega tochas para queimar o “monstro” –e que, no final, muitas vezes se revela uma injustiça.
Sinto, nessa reação irracional dos inquisidores virtuais, o reflexo do que vivemos na política nos últimos anos. Acusações sem prova, delações premiadas de criminosos feitas sabe-se lá sob quais circunstâncias, replicadas à farta pela imprensa sem nenhuma investigação, viraram a nova verdade. Ora, hoje mesmo Lula está sendo acusado por um pilantra de ser mandante de um assassinato, sem qualquer evidência disso, e a “denúncia” virou capa de revista. Lula foi mais uma vez “julgado” e “condenado” pela opinião pública a partir da declaração de um criminoso, com a ajuda (claro!) do presidente da República, que apressou-se a dar seu “veredito”.
É uma assustadora volta à Idade Média, em todos os aspectos. Multidões sem juízo acreditam em terra plana, confiam sua fé a fundamentalistas aloprados, tomam boatos espalhados por fanáticos como verdades absolutas, queimam pessoas em fogueiras… E quem se levantar para defender os direitos dos acusados que se cuide: será incinerado junto.