Inaugurador do neoliberalismo, país não foi refundado após ditadura Pinochet, segundo sociólogo Boaventura de Souza.
Na Carta Capital
O 1% mais rico da população do Chile abocanha 24% da geração anual de riquezas (PIB) do país. É a terceira maior concentração mundial de renda no topo da pirâmide, segundo um relatório anual sobre desigualdades globais produzido por um instituto de pesquisas francês, a Escola de Economia de Paris. Só menor do que no Catar (29%) e no Brasil (28%).
De modo geral, sem considerar apenas o 1% mais endinheirado, o Chile era o 15o mais desigual em 2017, conforme o Relatório de Desenvolvimento Humano, pesquisa periódica de uma das agências Nações Unidas, o PNUD. Nesse relatório, o Brasil era o 10o mais desigual.
A desigualdade extrema é uma das razões da convulsão social que explodiu nos últimos dias no Chile, governado por um dos dez homens mais ricos do país, o empresário neoliberal Sebastián Piñera. É herança da política econômica neoliberal adotada na ditadura de Augusto Pinochet (1973 a 1990), até hoje a moldar o país e as condições de vida dos 18 milhões de chilenos.
“Venderam aos [empresários] privados nossa água, luz, gás, educação, saúde, aposentadoria, medicamentos, nossos caminhos, bosques, o salar de Atacama, as geleiras, o transporte. Algo mais? Não será muito. Não queremos um Chile de alguns poucos. Queremos um Chile de todos. Basta.” Palavras escritas em 19 de outubro no Twitter por um chileno rico, Claudio Bravo Muñoz, goleiro da seleção e do time inglês Manchester City.
A saída de cena de Pinochet não significou a refundação do país. No Brasil, uma nova Constituição nasceu, em 1988, após o fim do regime militar, em 1985. No Chile, “o Estado é o mesmo, a Constituição de Pinochet foi emendada depois da ditadura, não foi substituída por outra”, explicou o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, em um debate em Brasília em 24 de outubro.
Isso significa que as bases de funcionamento econômico do Chile continuam as mesmas, ainda que políticos progressistas tenham chegado ao poder, caso da socialista Michele Bachellet, presidente por duas vezes, de 2006 a 2010 e de 2014 a 2018, em ambas sucedida por Piñera.
Boaventura comentou que o Chile “era um grande país modelo até a semana passada, um oásis”. Da França, onde é diretor de estudos sobre América Latina no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Scienses Po), o cientista político Gaspard Estrada espanta-se. “O que acontece no Chile é totalmente inesperado, até inédito. Era visto por todo mundo com um país tranquilo”, diz.
No debate em que apresentou seu novo livro, Esquerdas do mundo, uni-vos, Boaventura lembrou que “o vosso ministro das Finanças [Paulo Guedes]” quer um Estado chileno-pinochetista no Brasil. O menor possível, com o máximo de serviços e setores privatizados.
Pinochet assumiu o poder ao dar um golpe no presidente socialista Salvador Allende, em 1973, e privatizou o que podia, vide o tuíte do goleiro Bravo Muñoz. Uma das exceções foi a produção de cobre, base da economia local. É o maior produtor mundial do minério, com cerca de um terço do mercado. Tudo nas mãos da Corporação Nacional de Cobre do Chile, a Codelco, que é estatal.
A dependência econômica de uma matéria-prima é uma das causas da desigualdade e das más condições de vida dos chilenos, conforme o economista Paulo Gala, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. “O Chile é desigual pois tem um sistema produtivo ruim, com baixa complexidade e pouca sofisticação. Faltam oportunidades, faltam bons empregos e faltam bons salários: não tem nem empresas nem produtos para gerar essas oportunidades”, escreveu em seu blog.
Sem bons salários, os serviços públicos privados pesam no bolso da população. O estopim dos protestos foi o aumento, já revogado, do preço do metrô. Subiria de 800 pesos chilenos, o equivalente a 4,40 reais, para 830 pesos, 4,60 reais. Tarifa parecida com a do metrô de São Paulo e do Rio. E bem diferente de Buenos Aires. O metrô portenho custa 18 pesos argentinos, ou 1,2 real.
A política econômica dos Chicago Boysna ditadura Pinochet inaugurou a era neoliberal no mundo, a qual ganharia impulso com a chegada ao poder de Margareth Thatcher na Inglaterra, em 1979, e de Reagan nos Estados Unidos, em 1980.
Uma política econômica tão impopular e sacrificante da população, que exige mão de ferro para ser implantada, como em épocas de crises ou a partir de golpes. É o que diz a canadense Naomi Klein no livrou “Doutrina do Choque”, de 2007.
Algo parecido está em curso no Brasil no governo Jair Bolsonaro, na visão do economista brasileiro Alfredo Saad Filho, professor na Universidade de Londres. Segundo ele, o neoliberalismo vive hoje uma fase “autoritária”, devido à brutal concentração de renda produzida nos últimos 40 anos (pós-Pinochet, Thatcher e Reagan), e agora precisa de líderes autoritários para sobreviver e avançar.
Paulo Guedes, diz Saad Filho, é dono de um “autoritarismo econômico e de ‘mercado’”. Para a delegação ao “mercado” dar certo, segue o professor, “é preciso autoritarismo politico: sem repressão, o ‘mercado’ não funciona”. Eis o papel de Bolsonaro: encarnar o líder autoritário. O Chile foi o primeiro país sul-americano visitado pelo ex-capitão depois da posse.
Guedes bebeu nas fontes pinochetistas em sua carreira, conforme descrito em outubro de 2018 por uma reportagem feita no Chile para o jornal espanhol El País, embora esses detalhes de seu passado não seja muito conhecido no Brasil. “Em seus estudos de pós-graduação na Universidade de Chicago, onde o homem-forte era Milton Friedman, pai intelectual dos Chicago Boys, Guedes estreitou laços com vários estudantes chilenos que depois viriam a ter papéis relevantes no regime militar [de Pinochet]”, narra a reportagem.
Um dos colaboradores de Pinochet de quem Guedes se aproximou foi o diretor de Orçamento da ditadura chilena, Jorge Selume Zaror. Este comandou a Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile no início dos anos 1980 e convidou Guedes para trabalhar como pesquisador e acadêmico.
A privatização do sistema de previdência do Chile aconteceu nessa época, quando Guedes vivia e trabalhava por lá, conforme o El País. Quem comandou a reforma foi Jorge Piñera, irmão do atual presidente chileno. Na reforma da Previdência recém aprovada por aqui, Guedes queria privatizar o sistema como foi feito no Chile, com a criação do regime de capitalização, mas o Congresso barrou.
Em junho, a presidente da associação dos aposentados chilenos, Cristina Tapia Poblete, esteve no Brasil e participou de um debate na Câmara. Deu um testemunho pessoal sobre o que é viver em um país com aposentadoria em regime de capitalização.
Trabalhou dos 20 aos 66 anos e então se aposentou pela Universidade do Chile. Na ativa, ganhava o suficiente para sentir-se da classe média. Agora vive com um terço do salário e a sensação de ter empobrecido. Em seu país, as aposentadas recebem em média 28% do holerite de quando ralavam. Os homens, 35%. “Uma política pública não pode mudar assim o nível de vida das pessoas, é uma queda muito drástica”, disse Cristina.
Para debelar a convulsão social no Chile, Sebastián Piñera anunciou um pacote de medidas. Entras elas, mudanças no sistema de Previdência.