A classe dominante dos países convulsionados está banhada em corrupção
Brasil de Fato
Queridos amigos e amigas,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Impossível antecipar o que desencadeia uma rebelião. No Líbano, foi um imposto sobre o uso do WhatsApp; no Chile, o aumento das tarifas de metrô; no Equador e no Haiti, o corte nos subsídios aos combustíveis. Cada uma dessas conjunturas levou pessoas às ruas e, em seguida, à medida que as ruas se enchiam de gente, mais e mais pessoas se uniram a elas. Elas não fizeram isso por causa do WhatsApp ou do metrô, mas porque estão frustradas e irritadas. Fizeram porque a História parece desconsiderá-las, pois favorece repetidamente a classe dominante.
O Chile tem uma taxa de crescimento de 1,5% – uma queda de 6% em relação a 1992. A exportação de cobre tem sido a principal renda do país; como as exportações de cobre se retraíram, o mesmo ocorreu com a economia. O Chile luta com uma alta taxa de desigualdade – seu coeficiente de Gini fica em 0,50 (a meio caminho entre a completa igualdade e a completa desigualdade). Os 10% mais ricos do país obtêm uma renda 26 vezes maior que a dos 10% mais pobres. Se levarmos em conta a riqueza dos 10% mais ricos, a diferença é ainda mais dramática. O sistema tributário do Chile é notoriamente regressivo, com a corrupção legalizada por meio das leis tributárias. O governo aumentou a tarifa do metrô de Santiago (usado por três milhões de pessoas – um sexto do país) mais de vinte vezes desde 2007; para quem usa duas passagens por dia, o gasto absorve 16% da renda. Em 14 de outubro, estudantes frustrados do ensino médio começaram um protesto que visava ao aumento das mensalidades e, de maneira mais ampla, a corrupção estrutural do Chile.
A classe dominante do Líbano, como a do Chile, está infestada pela corrupção, seus líderes políticos recebem rendas de contratos governamentais e os serviços públicos estão repletos de fraudes. Em 2016, o governo estabeleceu um Ministério de Combate à Corrupção, que não inspira confiança; uma ação foi movida contra o ministro da pasta por corrupção. O “orçamento de austeridade” do Líbano para 2019 reduz os gastos públicos, mas mantém um sistema tributário regressivo. Em 2015, os políticos discutiram sobre quem conseguiria o contrato para a remoção do lixo enquanto a população andava sobre os rejeitos nas ruas afirmando o que todos sabiam: a corrupção não é a exceção, mas a regra. “Vocês fedem”, dizia o povo sobre a classe política. É uma frase que ressoa até hoje.
Nas anotações de Antonio Gramsci sobre a França durante a Terceira República (1870-1940), ele aponta que a classe dominante usou a corrupção e a fraude para comprar líderes de diferentes facções e neutralizar qualquer oposição política. A classe dominante não era capaz de obter o consentimento da população e não queria usar a força para levar as pessoas à submissão. Em vez disso, usou a corrupção e a fraude para desorientar qualquer oposição ao seu poder, garantindo que o suborno político paralisasse e desmoralizasse o povo. Os partidos políticos burgueses entraram em conspiração de corrupção, ansiosos para atacar retoricamente a corrupção, enquanto se afundavam no roubo de recursos públicos para suas próprias necessidades, pois permitiam que a classe dominante permanecesse em greve tributária de longo prazo e mantivesse seu controle sobre os subsídios e benefícios fiscais.
O Relatório de Financiamento para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (2019) mostra que a evasão fiscal atinge os países do Sul Global e faz estragos, porque esses países contam mais com as receitas de impostos corporativos do que os países do Norte Global. A corrupção nos países é significativa, mas a corrupção das empresas multinacionais está em outro patamar – com centenas de bilhões de dólares em jogo (para saber mais sobre a ideia de greves tributárias, leia nosso primeiro Documento de Trabalho, Nas ruínas do presente). Técnicas como transferência de preços incorretos e erosão da base tributária e transferência de lucros (BEPS) permitem que as empresas declarem lucros não onde o valor é extraído, mas em jurisdições tributárias baixas. Essas técnicas estão associadasprincipalmente a empresas multinacionais dos EUA. A classe dominante nesses países – do Equador ao Líbano – está banhada em corrupção, incapaz de mover uma agenda contra ela. É por isso que as pessoas foram às ruas: elas veem algo delas nas ruas e querem isso de volta.
É importante perguntar por que as pessoas saíram às ruas e qual a orientação política delas. Em cada um desses casos – Chile, Equador, Haiti e Líbano – a questão central é que as pessoas desses países foram enganadas por sua própria burguesia e por forças externas (principalmente empresas multinacionais). Os protestos têm como alvo seus governos, mas isso é apenas porque são mobilizações que desejam defender a democracia contra o capitalismo. Esses protestos podem ser mais profundos ou fracassar. Essas são as principais escolhas.
Enquanto isso, a classe dominante faz o que as classes dominantes fazem: usa as forças armadas. A resposta no Chile, Equador e Haiti tem sido dura. É algo de se esperar no caso chileno, onde o governo de Sebastián Piñera se parece muito à ditadura de Augusto Pinochet (o atual ministro do Interior Andrés Chadwick foi elegantemente de sua antiga nomeação sob Pinochet para Piñera sem pestanejar após defender por muitos anos o notório ditador). Que lo vengan a ver, que lo vengan a ver, esto no es un gobierno, son puras leyes de Pinochet [Venham ver, venham ver, isso não é um governo, mas puras leis de Pinochet], canta o povo do Chile: A violência está no nível de Pinochet, com emergências, toque de recolher e um grande número de prisões.
Abaixo, veja o Alerta Vermelho sobre o Haiti, escrito por nossos camaradas de lá que fazem uma avaliação mais completa dos protestos em cascata naquele país. Você pode baixá-lo aqui e ler abaixo. Compartilhe essa importante declaração.
O que está acontecendo no Haiti?
O Haiti, com seus quase 11 milhões de habitantes, é a nação mais povoada das Antilhas e ocupa um terço, do lado ocidental, da ilha chamada La Española, a segunda mais extensa da região do Caribe.
Desde meados de setembro ocorre um intenso ciclo de protestos, bloqueios de estradas e mobilizações populares massivas que, estima-se, teve a participação de quase 5 milhões de pessoas exigindo a renúncia do presidente Jovenel Moïse, a resolução da crise econômica e energética e a não ingerência externa. Intensificados pela falta de combustível, esses protestos têm ocupado e paralisado a capital Porto Príncipe e as principais localidades, onde praticamente não existe atividade governamental, comercial ou civil. A impossibilidade de distribuir água ou alimentos, como ocorre na região sudeste, ameaça mergulhar o país em uma grave crise humanitária.
A resposta do governo tem sido a repressão policial, que deixou, só nas últimas semanas, mais de duas dezenas de mortos e centenas de feridos. Além do mais, evidencia uma tendência à paramilitarização da vida cotidiana. À atuação de grupos ilegais que perpetram massacres nas zonas rurais e nos bairros urbanos mais mobilizados, se soma o acionar de grupos de crime organizado vinculados diretamente a representantes do poder político.
Como resposta, a chamada “comunidade internacional” tem oscilado entre a invisibilização da situação haitiana, com a qual os Estados Unidos, França, Canadá, a OEA e a ONU possuem uma evidente responsabilidade, e a ingerência externa mais evidente. Nos últimos dias o Core Group, que agrupa essas nações e organizações supranacionais, posicionou-se claramente a favor da continuidade do governo, enquanto sustenta conversas secretas com setores da oposição moderada e conservadora.
Os movimentos sociais, os partidos de esquerda e os setores progressistas têm conformado um amplo espaço de unidade sob a denominação de Fórum Patriótico. Esses atores exigem a demissão imediata do presidente, o processamento dos responsáveis pelo desfalque de fundos públicos e pelos massacres perpetrados; pedem também: a construção de um governo de transição por um período de três anos; a criação de uma agenda de emergência que atenda às necessidades mais elementares da população; uma reforma que legitime novamente o viciado sistema político e eleitoral; e a convocatória para eleições limpas e para uma assembleia constituinte para refundar a nação.
O ciclo de lutas atuais se inscreve em um processo mais longo de protestos iniciado em julho de 2018 com as mobilizações e a greve geral que convocou mais de um milhão e meio de pessoas às ruas contra a tentativa de aumentar o preço dos combustíveis, decidido pelo governo por indicação do Fundo Monetário Internacional, e que culminou com a suspensão da impopular medida e a renúncia do primeiro-ministro Jack Guy Lafontant.
Por que o Haiti e o Caribe são tão importantes?
O Caribe é uma das zonas mais relevantes do planeta geopoliticamente. Além de abrigar ou estar próximo dos processos políticos mais radicais da região – Venezuela e Cuba – é um importante território de circulação de capitais e mercadorias entre o Atlântico e o Pacífico, entre Oriente e Ocidente.
O Caribe, historicamente, tem sido uma região disputada por diferentes impérios europeus, e hegemonizada desde princípios do século 20 pelos Estados Unidos. Atualmente, a expansão da China concentra ali boa parte de suas iniciativas comerciais e financeiras.
Apesar de ser um dos países mais pobres e desiguais do continente americano, o Haiti conta com abundantes recursos minerais em ouro, cobre e bauxita, com um valor estimado de 20 trilhões de dólares. Sua força de trabalho é explorada por meio de baixos salários que beneficiam empresas internacionais nas zonas industriais livres, onde se fabricam têxteis e se faz montagem de eletrônicos para o mercado americano. O capital financeiro e as economias ilícitas obtêm enormes lucros com as remessas da diáspora haitiana e com os dividendos do narcotráfico, que encontram no país um estratégico ponto de passagem.
O Haiti tem um grande significado político e histórico desde a primeira revolução social bem-sucedida da América Latina e Caribe, ocorrida em 1804, onde a primeira República Negra do mundo foi estabelecida. A tentativa de aniquilar seu exemplo levou ao isolamento do país e à imposição de uma dívida pela França, em 1825, uma invasão dos Estados Unidos, de 1915 a 1934, e quase 30 anos da ditadura da família Duvalier na segunda metade do século 20, que teve apoio internacional, além de uma ocupação civil-militar das Nações Unidas de 2004 até o presente.
Quais são as causas dessas lutas e da crise no Haiti?
O país atravessa sua sexta semana de escassez de combustível e o consequente aumento de seu preço, a expansão do contrabando e a paralisação do transporte. Isso se deve à retenção de combustíveis pelo governo, que promove a eliminação dos subsídios, em sintonia com os preceitos do Fundo Monetário Internacional. Também se deve ao fato de o bloqueio dos Estados Unidos à Venezuela não permitir que o combustível barato da Petrocaribe chegue ao Haiti e outras ilhas.
A situação econômica é crítica: aos preocupantes indicadores sociais de miséria, desigualdade, desemprego e insegurança alimentar, soma-se agora uma desvalorização incessante da moeda nacional, inflação anual de 18%, congelamento de salários e aumento dos preços da comida e do transporte.
A classe política está completamente desacreditada. Uma fraude eleitoral em 2010 permitiu a chegada ao poder do partido ultraneoliberal PHTK, que teve uma continuidade, também fraudulenta, no atual governo de Jovenel Moïse. A isso se acrescenta o maior caso de corrupção de fundos públicos do país: setores da burguesia comercial e da oligarquia, altos funcionários do Estado e até o próprio presidente participaram do desfalque de pelo menos 2 bilhões de dólares, o equivalente a um quarto do PIB do país.
As políticas neoliberais implementadas no início dos anos 1980 e que continuaram quase ininterruptamente até agora destruíram a produção agrícola e as últimas ilhas de atividade industrial, quebraram as finanças e privatizaram as empresas públicas, informalizaram e tornaram o mercado de trabalho mais flexível, empobrecendo a maior parte da população e forçando o êxodo de milhões de jovens.
O Haiti não tem nada parecido a uma burguesia nacional que visa o desenvolvimento do país. Sua classe dominante é composta por uma oligarquia rentista e uma burguesia comercial, improdutiva e meramente importadora.
A ocupação americana, ditaduras com apoio externo, golpe de Estado e proteção internacional impediram o exercício da soberania haitiana por mais de um século, impondo uma orientação política e econômica fundamentalmente voltada para fora e antinacional.
Por mais de um século, a soberania do Haiti foi obstruída. A ocupação dos EUA, a ditadura militar apoiada por atores externos, golpes, a tutela internacional da ONU – tudo isso impõe uma direção política e econômica que é fundamentalmente contrária aos interesses do povo haitiano e favorece os interesses externos à soberania nacional. A reconstituição da soberania do Haiti é fundamental.
Marie Vieux-Chauvet, em Amour, colère et folie (1968), capturou a intensidade da história do Haiti de escravidão e plantações, revolução, ocupação pelos Estados Unidos, ditadura militar dos Duvaliers e a grande esperança – da revolução de 1804 – pela liberdade. Claire, neste romance milagroso, escreve:
A liberdade é um poder profundo. É por isso que a sociedade a limita. À luz do dia, nossos pensamentos nos tornariam monstros e loucos. Mesmo aqueles com a imaginação mais limitada escondem algo horrível. Nossas inúmeras falhas são uma prova de nossa origem monstruosamente primitiva. Rascunhos ásperos que somos. E permaneceremos assim enquanto não tivermos a coragem de abrir um caminho através da vegetação emaranhada da vida e andar com os olhos fixos na verdade.
Cordialmente, Vijay.
Edição: João Paulo Soares