No Tero – Nossa entrevista do mês de agosto foi com Magno Riga, que é Auditor Fiscal do Trabalho (AFT) e coordenador de uma das equipes do grupo móvel de combate ao trabalho escravo, que nos conta um pouco sobre seu trabalho, sobre as “reformas” trabalhista e previdenciária, além de uma reflexão sobre as relações de trabalho no Brasil e no mundo.
tero: Magno, você poderia nos contar um pouco sobre sua formação e trajetória?
Bom, eu sou o Magno Riga. Sou formado em Direito pela USP e pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela mesma universidade. Antes de ingressar na Faculdade de Direito, fiz Geografia na USP também, mas acabei não concluindo o curso. Esses dois anos de Geografia foi uma experiência importante. Valeu muito mais do que os cinco anos de Direito, em termos de compreensão de mundo e de experiência acadêmica mesmo, enfim. Ainda vou voltar para a FFLCH para terminar Geografia.
tero: Por que resolveu mudar para o Direito?
Na verdade, fui para o Direito porque eu já era servidor público. Eu era funcionário do INSS na época, concursado. Trabalhei oito anos e meio no INSS. No balcão de atendimento mesmo. Trabalhava na agência de Pinheiros, aqui em São Paulo. Minha área dentro do INSS sempre foi a perícia médica, então lidava com os médicos que atendiam os beneficiários e com beneficiários, principalmente. E também operando o sistema de informática, processamentos dos benefícios, analisando juridicamente os benefícios, etc. Ou seja, lidava com esse segmento dos trabalhadores – os adoecidos, os acidentados. Enfim, foi bem marcante também. Antes eu já tinha trabalhado com diversas outras coisas.
Desde os 12 anos que eu trabalho, na verdade. Trabalhei em construção civil, trabalhei vendendo bolo com a minha mãe, em feiras. Com 15 anos, meu primeiro emprego registrado, na Drogaria São Paulo. Depois fui office-boy. O trabalho esteve sempre muito presente, inclusive por conta da experiência dos meus pais, que estudaram apenas até a quarta série, pois eram trabalhadores rurais que migraram para a cidade. O trabalho está no centro da vida de 99% da população, né? Aqueles 99% que não vivem da renda do capital e, sim, do próprio suor.
Bom, aí, depois do INSS, fui para o antigo Ministério do Trabalho e Emprego, para a Auditoria Fiscal do Trabalho. Tem oito anos agora em outubro que eu sou fiscal do trabalho. Foi meio que por acidente, assim, não foi planejado. Já conhecia a carreira, mas pensava em outros concursos, outras coisas. E aí terminei a graduação, saiu o edital e resolvi fazer o concurso para conhecer, e acabou calhando de passar, né?
tero: Quais são os temas mais recorrentes na fiscalização do trabalho?
Os fiscais do trabalho lidam com todos os assuntos pertinentes ao trabalho: trabalho infantil, segurança e saúde do trabalho, aprendizagem, inclusão de pessoas com deficiência, pagamento de salários. Todos os temas são da nossa competência. A gente acaba lidando com tudo, claro. Mas eu me dedico ao tema do trabalho escravo há sete anos. Faz dois anos e meio que estou no grupo móvel, que é um grupo que já existe há vinte e quatro anos e que é ligado diretamente à direção da inspeção do trabalho, que fica em Brasília e é um grupo que atua em todo o território nacional. Nós somos, ao todo, dezessete fiscais. São cinco equipes e sou coordenador de uma delas. A gente atua nessa temática do combate ao trabalho escravo, mais recentemente também ao tráfico de pessoas. A gente tem, ainda incipientemente, atuado nesse tema do tráfico. É um tema mais policial ainda, mas a gente tenta lidar também.
tero: O que que é tráfico de pessoas? Qual a relação do tráfico com o trabalho? Por que é da competência de vocês?
O combate ao tráfico não ocorre diretamente, mas, como o tráfico exige uma finalidade, então acabamos entrando aí. É uma atuação decorrente da definição jurídica de tráfico. Basicamente, é aquela conduta, aquela ação de aliciar, alojar, acolher uma pessoa. Há outras. Há uma série de condutas. Ludibriar, estimular… Eu não me lembro de todos verbos agora, mas são uma série de verbos que fazem referência a um meio para determinado fim. A questão é o meio fraudulento, o engano… O engodo, a falsa promessa com uma finalidade. Obviamente, essa finalidade nem sempre está relacionada com trabalho. Afinal, pode ser o tráfico de órgãos, pode ser a venda de crianças, o casamento servil etc. Isso tudo na definição do Protocolo de Palermo. O Protocolo de Palermo é um tratado internacional sobre tráfico. Então esses temas não são trabalho. Mas, na realidade cotidiana, grande parte dos casos de tráfico são ou para trabalho escravo ou para exploração sexual – que tanto nós quanto também a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) consideramos ser uma forma de trabalho. Não pode ter essa distinção: “ah, é para trabalho escravo ou para exploração sexual?”. Pode ter exploração sexual que não seja trabalho, como por exemplo numa relação familiar abusiva, mas em geral a exploração sexual tem uma conotação laboral também. Tem a finalidade de gerar um ganho financeiro para alguém. E, da perspectiva do trabalhador ou trabalhadora, também costuma ser um trabalho, quer dizer, ser uma atividade profissional. Então a gente percebe que é da nossa competência. Não sei dizer com precisão, mas estimo que 90% dos casos de tráfico são para trabalho escravo ou exploração sexual. Alguma forma de exploração do trabalho alheio. É assim que tráfico e trabalho se correlacionam.
tero: Quando não há essa correlação, vocês encaminham para outro órgão, é isso?
A gente tem atuado ainda incipientemente no tema. Eu diria que quando não é, a gente nem atua, na verdade. A gente já nem põe a mão. Quando a gente vai atuar é porque já teve uma investigação ou uma denúncia com elementos suficientes para a gente saber que tem trabalho ali. Então a gente já atua sabendo que tem essa correlação. Acho que, na verdade, o esforço maior agora é o contrário. É enxergar o tráfico onde há o trabalho escravo. Então, por exemplo, quando trabalhadores… E isso passou na mídia esses dias. Eu vi na TV. Quando trabalhadores que vieram do Nordeste para trabalhar em Rafard, que é um município do interior de São Paulo, para trabalhar em obras do programa “Minha Casa, Minha Vida”, a construtora abandonou a obra e deixou os trabalhadores lá sem salário, sem ter como voltar para casa e tal. Então esse caso pode vir a ser configurado como um trabalho escravo, dependendo das condições em que eles se encontram. Se houver condição degradante de alojamento, é possível que também acabe se configurando como tráfico. Se eles foram aliciados lá, trazidos sob falsa promessa ou sob influência de um daqueles outros verbos que a lei dispõe para a configuração do tráfico, com esse fim de serem explorados, pode acabar sendo configurado como tráfico interno também. Então o desafio maior não é nem enxergar os casos de tráfico e ver se tem trabalho ou não. É pegar os casos que a gente já vê como trabalho escravo e dizer que também é tráfico de pessoas.
tero: Na prática, por que acaba sendo um desafio maior? Quem vocês da fiscalização do trabalho precisam convencer de que se trata de tráfico?
As autoridades criminais. Ministério Público Federal e Polícia Federal, sobretudo. Acho que o desafio é maior por causa da atualidade do conceito, que é meio recente. Porque o artigo 149-A do Código Penal foi criado a partir de uma lei de 2016. Acho que passou a ter vigência no final de 2016. Então já tinha o Protocolo de Palermo, já tinha a Norma Internacional, entretanto… E tem a Comissão Nacional do Combate ao Tráfico de Pessoas também, que é a Conatrap. É uma comissão nacional de combate ao tráfico internacional de pessoas, que já existe desde quando o Protocolo de Palermo foi internalizado, desde quando o Brasil aderiu.
tero: De onde costuma partir as denúncias? Em geral, elas vêm de organizações ou de pessoas físicas? Quem mais denuncia? Como ocorre a apuração delas?
Depende muito da temática, eu acho. Nas ocorrências de trabalho escravo, por exemplo, por muitos anos, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi a principal denunciante. Foi o principal canal de denúncia, por atuar na linha de frente dos conflitos agrários. E, historicamente, a grande parte dos trabalhadores resgatados são de territórios bem demarcados. O Maranhão, o Leste do Pará… São lugares de onde vem a maior parte dos trabalhadores resgatados. Então a CPT atua muito forte nessa região. Nessa temática do trabalho escravo, principalmente. Então por muitos anos eles foram o principal canal de denúncia. Por atender as vítimas e nos encaminhar. Mas, nos últimos dois, três anos, muito em razão do acirramento do conflito agrário, houve certe desconcentração do conflito, que passou estar ainda mais presente nas fronteiras agrícolas, estando mais relacionado com a grilagem de terras. Porém, acho que os conflitos mais específicos do Maranhão e do Pará chamam mais a atenção da CPT. Também muito devido ao nosso trabalho. Afinal, são mais de 53 mil trabalhadores que nós resgatamos nesses 24 anos. Quase 55 mil já, eu acho. 53 mil era o número de dois anos atrás. Nessa região específica do Maranhão e do leste do Pará a gente é mais conhecido. As condições que são consideradas de trabalho escravo já são mais conhecidas pelo empresariado também, então a própria CPT nessa região já está ligada, digamos assim.
Nas outras regiões do país, Rondônia, por exemplo, eles atuam mais em outros temas, não tanto no trabalho escravo. Então, nesses últimos três anos, grande parte das denúncias de trabalho escravo vem pelo Ministério Público do Trabalho. É o MPT quem encaminha boa parte mesmo. E quem demanda o MPT geralmente são trabalhadores mesmo ou, enfim, pessoas que veem a situação do trabalhador, mas acho que em um número um pouco menor. Geralmente são os próprios trabalhadores que fogem daquela situação ou que dão um jeito de sair e denunciar. Depois voltam e continuam lá. Pensando nesse tema do trabalho escravo, principalmente no meio rural do norte. Além disso, nesse âmbito do trabalho escravo também tem muitos casos que não são denúncias, mas que a gente mesmo busca. Faz, em certo sentido, uma busca ativa. A gente procura compreender e atacar aquelas atividades, meio sem ter denúncia. A situação dos bolivianos nas oficinas de costura aqui em São Paulo, por exemplo. Eles não denunciam. Quando tem denúncia, geralmente, a denúncia é de vizinho, alguém que vê muita gente concentrada. Começa como um problema de vizinhança mesmo. De ter muita movimentação naquele lugar ou gerar muito lixo, enfim. Nesse caso não é o trabalhador que denuncia. Às vezes nós chegamos até às oficinas por um trabalho de inteligência, de pegar uma cadeia (produtiva) de uma marca, por exemplo, e investigar para saber quem está costurando para aquela marca.
tero: Então também há um trabalho de fiscalização de rotina, que independe de denúncia?
Há fiscalização. Cruzamento de dados, enfim. Em setores como garimpo e desmatamento, por exemplo, a gente não recebe denúncia, mas tentamos fiscalizar nesse viés do trabalho escravo. Agora, se você pensar em condições de segurança no trabalho mais urbano, por exemplo, daí geralmente são os sindicatos que denunciam. Principalmente no setor industrial, em que o emprego é um pouco mais estável, com pouco menos de rotatividade que outros setores e que, portanto, também acaba sendo um segmento que tem uma sindicalização um pouco maior. Enfim, os sindicatos acabam trazendo mais denúncia de acidente, muito adoecimento por questões de ergonomia, de inadequação dos procedimentos, das máquinas, falta de cuidado mesmo com a segurança no ambiente de trabalho. São vários fatores que acabam fazendo com que o sindicato acompanhe um pouco mais as legislações de trabalho. Então nesses temas das legislações de saúde e segurança do trabalho os sindicatos apresentam mais demandas e, eventualmente, até acompanham nossas fiscalizações. A legislação permite o acompanhamento dos sindicatos nas inspeções, mas é algo cada vez menos comum. Isso era mais comum na década de 80, 90. Dos anos 2000 para cá tem sido menos comum do sindicato estar presente nas inspeções.
tero: Justamente nesse período, em que os sindicatos vêm fiscalizando menos, parece que também o Estado passou a ter menos interesse na fiscalização, não? Parece meio raro acontecer concursos para a área de fiscalização do trabalho.
Sim. Teve um em 2000 e, depois, em 2010 e 2013. Eu terminei a graduação em dezembro, aí o edital saiu dia 24 de dezembro, 23 de dezembro, estudei e acabou dando certo. Mas não sem luta. A nossa nomeação foi bem difícil. O prazo para expirar o concurso se aproximava e nada de o Estado realizar novas nomeações. Não estavam nomeando quase ninguém. Daí montamos uma “comissão”, com mais de 200 candidatos excedentes ao número de vagas. Outras comissões de aprovados também foram formadas. A minha comissão passou o ano pressionando, mostrando que o Estado precisava de mais fiscais do trabalho. Foi quando aconteceu, por exemplo, de alguns trabalhadores terem colocado fogo lá em Jirau, na hidrelétrica em Rondônia, já em maio de 2011. Foi algo que movimentou essa nossa organização. Eu era um dos chefes da comissão de aprovados no concurso. Fui bem ativo nesse processo. Na época a gente procurou o pessoal do PSTU, por exemplo, que estava pressionando o Governo Federal para ter um maior rigor nas condições de trabalho dessas grandes obras. Então, enfim, dessa pressão acabou saindo um acordo do Planejamento com o Ministério do Trabalho para nomear todos os aprovados e criar um grupo que ia fiscalizar essas grandes obras.
Enfim, um grupo que foi criado para pressionar pela nomeação dos aprovados acabou atuando em coisas bem concretas mesmo. Bom, aí eu entrei. Fui mandado para Rondônia, onde fiquei quatro anos trabalhando. Após um treinamento inicial, a gente foi para a rua em janeiro de 2012 e, desde então, lido com o tema do trabalho escravo, principalmente.
tero: Hoje não existe mais Ministério do Trabalho e, desde essa época, portanto, não se contrata mais auditores fiscais do trabalho?
As coisas foram mudando bastante. E nesse último concurso, que foi o único que teve depois que eu entrei, tinha 100 vagas e acabou que não aprovaram nem 100 candidatos. Talvez, porque queriam evitar o que tinha acontecido no meu concurso, de ter excedentes que depois ficavam brigando para entrar, como a gente brigou por meio da comissão a que me referi. Resumindo, após ações judiciais, acabou que entraram um pouco mais de 100 candidatos. Mas todo ano saem cerca de 150 fiscais.
tero: Imagino que não tenha efetivo o suficiente para fiscalizar o Brasil todo…
Não, não tem. O número de auditores fiscais só diminui. Atualmente, temos pouco menos de 2 mil auditores ativos.
tero: O ideal seria quantos mais ou menos?
O IPEA fez um estudo que provou que seria necessário algo em torno de 5 mil e 6 mil auditores, para se aproximar do ideal. Nunca tivemos mais do que 3.600. Esse foi o número máximo. É o número de cargos criados em lei: 3.600 e alguma coisa. Isso em 94. Foi quando teve esses 3.600. Foi o auge. Nessa época, foram nomeados mais de 1.500 auditores de uma vez. De lá para cá, ladeira abaixo. O maior concurso que teve foi o meu que entraram 430. Trabalhamos com menos de 1/3 do ideal. A OIT tem um parâmetro, que seria de cerca de 10 mil para um contexto como o do Brasil. Isto é, um auditor fiscal do trabalho para cada 10 mil trabalhadores nos países industrializados. Um, para cada 15 mil, nos países em desenvolvimento e, nos países subdesenvolvidos, um para cada 30 mil trabalhadores. Esse parâmetro consta de alguns documentos da década de 90 da OIT.
tero: E você sente algum efeito desse processo de sucateamento da fiscalização?
Sim. E é um processo contínuo, que não foi interrompido sequer pelos governos petistas. A gente discute muito isso tudo, internamente. A minha percepção do fenômeno é que nos governos petistas eles promoveram reestruturações de alguns segmentos do Estado. Então, pela minha experiência pessoal no INSS, posso dizer que ocorreu um processo inverso no INSS. Por exemplo, quando entrei, em 2003, era um órgão que não tinha concurso há 19 anos, desde 1984 até 2003 – é possível tirar algumas conclusões. Afinal, passou Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique sem nenhum concurso. E esse foi o primeiro concurso que o Lula determinou que fosse feito, logo que eleito presidente. E aí, desde então, desde 2003, quando entrei nesse concurso, o salário do INSS era de quatrocentos e poucos reais. Só em São Paulo, acho que entraram mais de 2 mil servidores de uma vez nesse órgão. E depois teve novo concurso em 2005, 2007, foi um concurso atrás do outro, entrando sempre muita gente. E foi um processo relativamente rápido, mas claramente um processo de reconstrução do órgão mesmo. Assim, foi, digamos, um órgão que foi muito bem aparelhado, mas para fazer o mal. O INSS cresceu muito, mas muitas vezes ele chega a ser perverso, principalmente nesse tema do adoecimento, do auxílio-doença. E não é culpa dos servidores, evidentemente. É mais uma distorção institucional que se decidiu fazer com a estrutura do que da estrutura em si. Outros órgãos também cresceram muito, como os Ministérios Públicos, a Polícia Federal, Rodoviária Federal e as Universidades Federais. Grande quantidade de expansão, de concurso. Então isso, por um lado, se reflete no aumento do salário dos servidores e realização de concursos, em melhoria de estrutura física, construção de prédios, aberturas de unidades, investimento em tecnologias. A Receita Federal que saiu de uma realidade de fiscalização no papel para uma fiscalização real, e que atualmente faz fiscalização em malha. Fiscalização que está dando polêmica, que agora chegou até mesmo no Gilmar Mendes e na sua esposa. Há uma tecnologia que eles fazem uma pesca na rede com base em critérios de rendimento, de bens etc., numa escala de 800 mil pessoas. Depois, conseguem filtrar a rede, com o melhor da tecnologia de ponta. No INSS ocorre a mesma coisa. O banco de dados do CNIS, que é o Cadastro Nacional de Informações Sociais, que é a base de dados do INSS, é o segundo maior banco de dados do mundo. Ele perde apenas para um banco de dados da China ou da Índia, mas o fato é que CNIS é o segundo maior do mundo. E é uma tecnologia que funciona. Então houve muito investimento.
Enquanto isso, o Ministério do Trabalho como um todo, não só a fiscalização, foi sendo sucateado. Mas acho que a fiscalização é uma das principais políticas do extinto Ministério do Trabalho e ela não teve investimento tecnológico nenhum nesses anos de governos petistas. A tecnologia existente foi desenvolvida pelos próprios auditores fiscais do trabalho. A gente não tem sequer pessoal de Tecnologia da Informação (TI) no Ministério do Trabalho. Nunca teve. Era uma empresa terceirizada contratada que fazia. Era contratada da Dataprev. Era contratado o “Serviço Federal de Processamento de Dados” (Serpro), que é ligado ao Ministério da Fazenda. Agora todos estão no Ministério da Economia, mas até o momento anterior a essa junção dos Ministérios, a Serpro era mais da Fazenda e o Dataprev mais da Previdência. Mas, no fim, são essas empresas públicas que produzem os sistemas para o governo, mas não para nós. Temos que contar com uma empresa terceirizada para arrumar o computador que quebrou e tal, mesmo para fazer essa prestação de serviço mais originária. Essas terceirizadas são contratadas para desenvolver sistemas de atendimento ao público, emissão de carteira, seguro-desemprego. Isso era o Serpro, passou para Dataprev, por exemplo, o seguro-desemprego. Já para a fiscalização são os próprios auditores que fazem. Somos nós que temos que desenvolver os sistemas. Ou seja, se um auditor que entrou na carreira agora tiver conhecimento de TI, ele é quem vai ter que desenvolver o sistema. Todos os sistemas que a gente usa são assim.
tero: Você se referiu até os governos petistas, mas e depois deles?
Dá para a gente dizer que depois do impeachment da Dilma foi ladeira abaixo. O que estava ruim, piorou. O contingenciamento de recursos foi decisivo. Não é só para fiscalização do trabalho, mas já era uma área que tinha pouco recurso e esse recurso tem sido cada vez mais achatado. Então a gente vê desde 2014 a fiscalização rural definhando e não é só pela falta do recurso para execução, tem outros fatores também. Inclusive o baixo número de auditores. Mas certamente esse enxugamento dos recursos é o fator principal. A fiscalização rural no país está praticamente extinta. Nula.
Daí a gente analisa, por exemplo, os dados de resgate de trabalhadores. A gente vê que, desde os anos 2000 tem uma queda relativamente constante do número de trabalhadores resgatados. Também tem várias explicações para isso, mas, nos últimos anos, de 2013 para cá, essa queda é mais acentuada. Cada vez menos trabalhadores resgatados a cada ano. E aí quando a gente divide: quantos foram resgatados pelo grupo móvel nacional, que é o grupo de que eu faço parte, e quantos foram resgatados pelos auditores nas superintendências, a gente vê que o grupo móvel nacional tem um número mais ou menos estável. A gente sempre resgatou mais ou menos aquele número, até aumentou um pouquinho na verdade nos últimos tempos porque essa política, por enquanto, teve continuidade. Com dificuldades orçamentárias e tal, mas fazemos uma forma de resistência interna.
tero: E existe algum tipo de retaliação nesse sentido?
Ainda não. Direta, não. Mas eu chego lá. O número de trabalhadores resgatados pelos auditores nos estados – que cada estado tem uma superintendência do trabalho e auditores locados – esse número cai drasticamente nos últimos anos. Aí são dois fenômenos principais. Um é esse da praticamente paralisação da fiscalização rural, de rotina, fiscalização de: “ah, vamos fiscalizar a colheita do tomate, por exemplo, para ver a questão do registro, do salário, as condições gerais de trabalho”. Isto é, paralisação da fiscalização de rotina. E aí nessa fiscalização de rotina se deparava com uma condição de trabalho escravo, então os auditores resgatavam os trabalhadores ali. Então essa fiscalização rural caiu muito nos últimos anos. Muito pela falta de recurso. E um outro fator importante também é a queda da construção civil. A gente resgatava uma quantidade muito grande de trabalhadores da construção civil. Como a atividade praticamente cessou nos últimos tempos… Paralelamente, há o incentivo para os auditores fiscais se aposentarem e/ou saírem dos cargos.
tero: Sobre a atuação do INSS, quando diz que esse órgão cresce, enquanto a fiscalização do trabalho diminui, e que cresce para fazer mal, como se dá isso na prática?
O INSS não consegue evitar fraudes, apesar de todo o investimento para a prevenção das fraudes. E esse órgão também não tem como foco a prevenção de doenças, nem procura contribuir para melhoria das condições de trabalho, enfim, não está alinhado com a ideia de um Seguro Social. O foco é evitar a fraude nos benefícios previdenciários. Isso é muito claro, por exemplo, pelo discurso dos médicos previdenciários. Inclusive essa é uma categoria, por exemplo, que melhorou. Teve melhorias salariais e estruturais nos últimos anos desde o impeachment. Acho que explica bastante os advogados que ficam na porta do INSS. Quanto mais fraudes os médicos do INSS descobrem, maior a bonificação. Há até uma espécie de metas. Um dos ganhos salariais indiretos que eles tiveram foi esse. Eles criaram uma bonificação para fazer perícias. Para servidores administrativos também, na verdade. Para analisar casos de fraude ou de processos irregulares. No caso dos peritos, fazer perícias para dar alta em benefícios. Era um problema realmente a ser equacionado, vou colocar nesses termos. Como o INSS era muito ineficiente, é ainda, enfim, na análise dos benefícios, e com essa cultura de negar, de cortar, de prevenir a fraude de, enfim, gerir bem o recurso público – é mais ou menos esse o discurso – através de uma avaliação criteriosa de quem faz jus ao benefício, de quem não faz… Isso tudo estimulou uma judicialização do problema. Eles criaram, por exemplo, isso ainda acho que 2009, a alta programada. Acho que antes, até, talvez em 2006. Criaram um programa de alta programada no INSS. O que mudou? Antes, a pessoa adoecia, fazia perícia do INSS, entrava no benefício. E aí, depois de um mês, dois meses, três meses, ela voltava, fazia uma nova perícia. Se ela já estivesse boa, ela voltava a trabalhar. Então o que eles mudaram? Eles criaram a alta programada. Você pede o benefício. Adoece, afasta do trabalho e dá entrada no benefício. Aí você passa na perícia, nessa primeira perícia o médico do INSS já diz quando você vai voltar a trabalhar. Depois de um mês ou dois meses… Se você não voltar mais, acabou o benefício. Então isso é a alta programada.
O fato é que a partir da criação desse programa da “alta programada” houve um endurecimento nessa avaliação da perícia. E aí grande parte do problema, mas tem também outros problemas, como a inconsistência de dados, principalmente das contribuições da década de 70, 80, que não era informatizado. Na prática, às vezes, benefícios eram negados porque a pessoa não tinha a documentação. E não se trata de problema meramente burocrático, pois isso as pessoas até superam. A questão é de cultura institucional mesmo. A instituição está aí não para reconhecer direitos, para promover proteção, que é a ideia do Seguro Social, mas sim para cortar os benefícios, para combater as fraudes e tal. Então a instituição está direcionada para isso. O programa de alta programada fez explodir a judicialização, questionando justamente os auxílios-doença. Aí na justiça os benefícios eram concedidos, mas os processos demoram demais. Tinha uma previsão legal de que esses benefícios seriam revistos a cada seis meses se fosse auxílio-doença ou dois anos se fosse aposentadoria por invalidez, mas o INSS nunca revê. Então tinha pessoas que realmente conseguiram benefício da justiça e estavam lá. Cinco, seis anos recebendo…
tero: A situação que você narra, na condição de quem fiscaliza as relações de trabalho e de quem, antes disso, trabalhava no INSS, é bastante dramática. Nesse cenário, levando em consideração que metade do mercado de trabalho no Brasil é informal, isto é, que metade não tem direito algum e que a outra metade não tem estabilidade no emprego e, consequentemente, não consegue exigir a efetivação de seus direitos, será mesmo possível dizer que há direito social no Brasil?
Há realmente muita fraude trabalhista. Esse tipo de fraude é difícil combater. Os direitos acabam existindo apenas no papel. Mesmo na justiça do trabalho, quando os empregados conseguem ir até o final do processo, sem aceitar acordos, acabam recebendo valores muito abaixo daquilo que pretendiam. Sem contar que só recorrem ao judiciário quando já estão desempregados. Na prática, durante o contrato de trabalho os direitos acabam não sendo efetivados. Se exigirem os direitos previstos, perdem o emprego. Pra piorar, a tendência é a eliminação mesmo desses direitos trabalhistas que muitas vezes não são cumpridos.
Se não bastasse o pouco investimento e o baixo número de fiscais, a inspeção das relações de trabalho vem perdendo muito também com a extinção do Ministério do Trabalho. Até ano passado a inspeção do trabalho era chefiada por um auditor da Secretaria de Inspeção do Trabalho e esse auditor era subordinado ao Ministro do Trabalho. Então a Secretaria de Inspeção estava no segundo escalão do Ministério. Com a ida do Trabalho para o Ministério da Economia, a gente está no quarto escalão do governo. Isto é, tem o Ministério da Economia e, dentro dele, tem cinco “mini Ministérios”. Então a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, que é o Rogério Marinho o secretário, é como se fosse um Ministério do Trabalho de Previdência dentro do Ministério da Economia. Funciona na prática como um Ministério dentro do outro. Se fosse só isso, nós estaríamos ali no terceiro escalão. Mas, além disso, ainda criaram uma outra secretaria. Você tem agora o secretário da Previdência e o secretário do Trabalho. E a Secretaria de Inspeção é uma subsecretaria ligada a secretaria do trabalho. Esse secretário do Trabalho, o Bruno Dalcolmo, na nova estrutura, é o chefe superior da inspeção do trabalho, digamos assim. Recentemente, ele deu uma entrevista na Folha falando que tem a missão de aproximar a metade que tem direitos da metade que não tem. É interessante notar que ele tem uma formação acadêmica realmente, enfim, mas é muito pautado pela pauta ideológica que elegeu Bolsonaro. O Ministério da Economia está com esse caráter. O próprio Paulo Guedes, que é da Escola de Chicago, e todo esse pessoal formalmente gabaritado que ocupa o Ministério da Economia dizem essas coisas que reforçam a visão de Bolsonaro, que diz: “as pessoas vão ter que escolher entre ter direito ou ter um emprego”. É mais ou menos esse o contexto.
Na verdade, acho que a mentalidade sempre foi essa. É um pensamento próprio da história da formação econômica do Brasil. Escravagismo de matriz exportadora, colonial. É a ênfase na super exploração do trabalho, para ter uma sobra para esse capitalista que faz essa economia periférica. Já que os recursos não migram para cá, então para se ter uma margem de lucro maior, o capitalista esmaga a classe trabalhadora. Para aumentar a mais valia, os direitos acabam sendo negados. Os direitos que acabaram sendo reconhecidos, que são frutos da luta dos trabalhadores, da resistência, são também, eu acho, um peso maior num país periférico. Consequentemente, o cálculo econômico, que em algum momento se fez, de que era mais jogo reconhecer direitos para aumentar a base de consumo e aumentar o mercado interno, pois isso era bom para a expansão do próprio capital, não durou muito tempo. Eu acho que essa premissa é válida para entender por que os direitos existiam no papel até culminar com a Constituição de 88. Eu digo culminar porque a Constituição de 1988, por exemplo, reconheceu os direitos trabalhistas do homem do campo, que eram considerados uma subclasse, com patamar de direitos menor. A Constituição diz que os direitos trabalhistas são do trabalhador urbano e rural, que a previdência é uma Previdência comum, enfim, que é um regime único. Extingue-se o Funrural. Cria-se um único regime de Previdência e coisa e tal. Em tese, é um avanço. Mas se a gente pensa, por exemplo, na lógica de conciliação que elegeu o Lula, é tudo um cálculo econômico. Obviamente, não tem ninguém pegando a calculadora e fazendo cálculo, mas há um cálculo das elites, o cálculo que foi feito era que um PT “conciliador” era mais conveniente, pois iria fazer o que fez: estimular o crédito, promover certas políticas convenientes para o próprio capital, enfim.
tero: Tem teorias que dizem mesmo que a gente sobreviveu à crise por conta da inclusão pelo consumo. Foi isso que salvou o Brasil das últimas crises?
Adiou talvez a crise, a de 2008. Adiou os efeitos. Não sei. Tem gente que fala realmente, eu não sei se é isso, não. Acho que aconteceram várias concessões e que o projeto nunca foi efetivamente implementar os direitos sociais.
tero: Paralelamente, na Europa, também vemos um movimento parecido, né? Redução de direitos sociais, em especial dos trabalhistas e dos de seguridade social…
Lá na Europa, porém, a gente pode dizer que esse movimento não se dá no mesmo nível de exploração. Existem formas diferentes de ataques aos direitos sociais. E lá na Europa houve a efetivação desses direitos. Pelo menos em alguns períodos da história eles viveram uma era de direitos, efetivamente. Foi um projeto do Estado, da sociedade, enfim. Um projeto que em alguns momentos históricos foi exitoso. Talvez nas décadas de 50 a 70, antes da crise do petróleo. E, de novo, antes dessa crise agora de 2008. Uns dez anos antes, enfim.
tero: Você acha que essa retórica do empreendedorismo, do “faça você mesmo”, traz pistas desse novo contexto?
Sim. Eu estava discutindo isso esses tempos atrás. É só uma retórica, só isso. O “faça você mesmo”, “invista em você”, “seja o seu próprio patrão”. Na verdade, você continua subordinado, só que você não sabe a quem.
tero: Como os auditores fiscais conseguem atuar nessa? Por exemplo, o tema da uberização, como vocês trabalham com isso, já que o próprio auditor fiscal, proativamente, independentemente de denúncia, pode fiscalizar essa forma de trabalho?
Nossa resposta ainda é muito presa aos parâmetros anteriores, mais antigos. Acho que esse tema ainda está em disputa mesmo. A gente procura enquadrar essas relações como relações de emprego, com subordinação, enfim, tentando apontar para quem se canaliza esse trabalho, a quem interessa, quem se beneficia desse trabalho prestado. O que a gente teve de concreto até agora são algumas ações judiciais esparsas, que reconhecem os vínculos de motorista de Uber, por exemplo. Isso vem ocorrendo no mundo todo, não só aqui no Brasil.
A gente teve uma fiscalização sobre a empresa Loggi, que é de entrega, com motoboys. Houve reconhecimento de vínculo de emprego com base em subordinação estrutural.
tero: Algum auditor fiscal resolveu investigar a empresa, foi isso?
Na verdade um núcleo de auditores. Salvo engano, o grupo se formou a partir de uma denúncia contra a Loggi. Eu já estava nesse grupo nacional, só acompanhei de longe o trabalho dos colegas daqui de São Paulo. Mas, salvo engano, foi o sindicato dos moto-entregadores que fizeram a denúncia, de jornadas muito excessivas, de motoqueiros que se acidentavam e não tinham nenhum tipo de assistência da empresa. Entre as corridas, por exemplo, não tinha um lugar para ficar lá esperando, com um banheiro, uma água, uma estrutura mínima. Era cada um por si.
tero: Há mais denúncias nesses ramos de trabalho uberizado?
Não, não diria que há mais denúncias. Os próprios motoristas de Uber mesmo, a maioria deles, não procuram lutar por direitos. Tem algumas pesquisas que procuram entender esse fenômeno, se eles se reconhecem realmente como empreendedores. Acho que boa parte desses motoristas contribuem, na verdade, com o MEI. O MEI acaba até estimulando essa onda do empreendedorismo e das fraudes trabalhistas. Mas algo que eu acho que é positivo, é um mérito até do programa: ampliar a cobertura previdenciária. Foi criado para isso. É que acaba sendo mais um obstáculo pela reivindicação do vínculo de emprego. A pessoa pensa o seguinte: “Ah! Já estou contribuindo aqui, então se a empresa vai me registrar ou não, se a Uber vai me registrar ou não, não importa tanto. O que importa é que estou pagando meu INSS todo mês, vou aposentar do mesmo jeito. Estou coberto do mesmo jeito. Qual a diferença deles me registrarem ou não?”.
Nesse sentido, a defasagem tecnológica fica mais evidente. Tem fraudes que são muito sofisticadas e que a gente não tem meios para atacar adequadamente. Por isso, a maioria dos 55 mil trabalhadores resgatados, a que me referi antes, foram resgatados na pecuária. Provavelmente, mais de 15 mil ou 20 mil desses resgatados foram em atividades da pecuária. E acho que a proporção de empregadores que eram pecuaristas é ainda maior porque o número de trabalhadores geralmente é pequeno. Então se resgata cinco em uma fazenda, cinco na outra, cinco na outra, mas as grandes, como a JBS, a Friboi e tal, as grandes produtoras nunca foram responsabilizadas diretamente.
tero: Qual é o encaminhamento depois desse resgate? As pessoas resgatadas têm algum acompanhamento social?
Teve um caso em que o governo brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2016, o caso “Brasil Verde”, sobre uma fazenda que tinha trabalho de escravizados e que, apesar de reiteradas fiscalizações, não houve responsabilização criminal dos responsáveis por essa forma de trabalho. E aí o Estado brasileiro foi denunciado, não lembro por quem agora. Não sei se foi a Conectas, acho que não. O Estado foi denunciado e a Corte Interamericana condenou o Brasil. A condenação, a sentença, saiu em 2016, ela manda indenizar as vítimas e determina o cumprimento de algumas obrigações mais imediatas, mas ela diz que o crime de submeter alguém à escravidão é imprescritível. É algo importante também, mas até pouco tempo atrás a grande maioria de quem era flagrado escravizando alguém não era processado criminalmente. A persecução criminal começou, efetivamente, há pouco tempo, então a gente tem pouquíssimas condenações criminais por trabalho escravo. Também não tenho conhecimento de nenhum caso que tenha sido declarada a prescrição pelo crime, pelo menos. E a recomendação da Corte Interamericana é para que o Brasil continue com a política repressiva. A Corte declara que a nossa política repressiva é boa. Está expresso na sentença. Mas condena o Brasil a ser mais diligente, enfim, a criar mecanismos de prevenção e de reparação. Então a prevenção ao trabalho escravo e a reparação àquilo que é tirado das vítimas ainda precisa avançar muito.
tero: Houve maior preocupação com a prevenção e o combate desse tipo de trabalho durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT)?
A gente tem duas mudanças na legislação, que são de 2003, que é o ano que se inicia o governo do PT, mas não é mérito exatamente do PT. Foram três grandes mudanças, na verdade, em 2003, mas que começaram a tramitar antes. Em 2001, 2002, ainda no final do governo do Fernando Henrique. Muito porque o Brasil teve um outro processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que foi o do caso José Pereira. O José Pereira era um trabalhador do Maranhão, que em 1995 foi vítima de trabalho escravo e também não foi amparado pelo Estado. E aí também teve a denúncia à OEA, Corte Interamericana, mas lá não houve uma condenação. O Brasil fez um acordo, em 2003, e nesse acordo o Brasil se comprometeu a tornar mais efetiva a política de combate ao trabalho escravo. Nessa ocasião foi criada a “Conatrae”, que é a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. A sigla é parecida, porém é muito diferente da Conatrap, que teve muito pouca atuação prática e é mais recente também no tráfico de pessoas. A Conatrae, não. Ela é bem efetiva. Repórter Brasil, por exemplo, sempre teve assento. Ela tem uma repercussão social bem maior. E aí vamos ver agora com a nova formação, porque todas foram extintas e as duas foram recriadas. Bem mais enxutas. Eu nem sei se o Repórter Brasil vai continuar. Então tem que ver como que, na prática, ela vai continuar funcionando.
Depois, acho que em 2003 mesmo, ou em 2004, foi editado o primeiro Plano Nacional de Combate e Erradicação do Trabalho Escravo. Acho que foram dois planos, além de duas mudanças na legislação. Uma foi a mudança do próprio artigo 149 do Código Penal, que alterou a redação de 1940, que era bem simples. A redação antiga dizia “submeter alguém ao trabalho análogo ao escravo”, com pena de uns cinco anos, mas nunca ninguém tinha sido condenado. Entre 1940 e 2003 não teve nenhuma condenação. A principal importância dessa definição antiga é o nome. A gente chama de “trabalho escravo” por conta desse artigo do Código Penal. Por isso que, aqui no Brasil, não se fala “trabalho forçado”. A OIT chama de trabalho forçado. Na Convenção 29 da OIT, que é de 1930, ela chama de “trabalho forçado” e aí, dez anos depois, em 1940, a legislação brasileira chamou de “trabalho escravo”, trabalho análogo à escravidão. E esse nome se manteve. E isso é muito usado quando se ataca a política pública: “ah, por que no Brasil a gente adota um conceito maior do que o da OIT”. Na verdade, o conceito hoje é o mesmo. Não é mais amplo. Na prática, é a mesma coisa, a diferença é só o nome. Bom, então, em 2003 mudou a redação. E foi uma mudança decorrente do trabalho de fiscalização, que se iniciou em 1995. Até então, até 1995, também não tinha nenhuma autuação da fiscalização do trabalho para combate do trabalho escravo. Porém, as denúncias chegavam desde a década de 70, sobretudo da Comissão Pastoral da Terra, das pastorais sociais da igreja, dos sindicatos rurais… Mas somente a partir de 1995, com o caso do José Pereira, é que se começou a fazer alguma coisa. Começou-se a cumprir a Constituição, que vedava isso. Essa ideia da condição degradante não existia antes. Foi uma construção da fiscalização. E aí, em 2003, se muda o Código Penal, com base nessa experiência concreta da fiscalização. Não foi do nada que alguém foi lá e inventou que “condição degradante” era trabalho escravo. Foram oito anos de trabalho da fiscalização, que levaram à mudança no Código Penal. Já o terceiro elemento que surge em 2003 é a criação do artigo 2º-C da lei do seguro-desemprego, que diz que todo trabalhador resgatado tem direito a três parcelas de um salário mínimo do seguro desemprego, desde que seja resgatado pela auditoria fiscal do trabalho. O artigo diz: “É devido o pagamento do seguro-desemprego especial àquele resgatado de trabalho forçado ou condição análoga à escravidão, pela auditoria fiscal do trabalho…”.
tero: Apenas um salário mínimo?
São três meses e três salários mínimos, independentemente do salário que a pessoa receba e do tempo de serviço que ela tenha. São três parcelas de um salário mínimo. Em tese, essa é a reparação da pessoa resgatada. E desde que a gente consiga qualificar a pessoa e preencher a guia do seguro desemprego. O que é um resgate? A gente determina a interrupção da atividade, a cessação daquela condição em que ela se encontra. Que ela seja hospedada, tenha a alimentação assegurada pelo empregador até que o procedimento se conclua. A gente declara rescindido o contrato, então são os mesmos efeitos da “rescisão indireta” (da “justa causa” cometida pelo patrão). Tem gente que questiona isso, mas prefiro entender que o resgate tem como consequência trabalhista uma espécie de rescisão indireta do contrato de trabalho, embora isso não esteja definido em lei. A gente determina para o empregador que pague as verbas rescisórias e calcula ou dá os parâmetros para ele calcular. A gente confere e acompanha o pagamento, isto é, se ele pagará todos os direitos trabalhistas que foram sonegados: horas extras, salários, décimo terceiro, férias, enfim. Esse é uma parte do procedimento da fiscalização. E, geralmente, nós não estamos sós. O grupo é sempre acompanhado de procuradores do trabalho, defensores públicos federais… Tem algumas poucas ações com advogados gerais da União também. Geralmente eles determinam o pagamento de uma indenização, quase sempre é muito baixa. Seria uma indenização por conta do dano moral individual que cada um sofreu… Então aí varia muito de ação para ação, de procurador para procurador, enfim. Tem um caso em que eu atuei que nós resgatamos trinta pessoas. Acho que trinta redondo, trinta trabalhadores em uma comitiva de gado. O caso foi ano passado, recente. Um caso bizarro. Recebi a denúncia de um policial rodoviário federal com quem eu tinha trabalhado em Altamira. Ele passou a denúncia dizendo “olha, a gente tem um problema aqui grave, de anos, anos, que sempre existiu em Altamira, que são comitivas de gado. Que atravessam um trecho de mais de 1.000 km na Transamazônica, atravessam a cidade de Altamira, mil cabeças de gado e aí tem acidente na estrada, tem todo tipo de problema”. E tinha tido um acidente com um caminhão que não conseguiu frear. Matou uns vinte bois e, por sorte, não atingiu nenhuma pessoa. O motorista também não se feriu, mas a via ficou interrompida e foi aí que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) entrou, para atender essa ocorrência, e conversou com os trabalhadores. Esse policial falou assim: “olha, eu acho que isso daqui é para vocês (fiscalização do trabalho) verem”. A gente organizou a operação, eles localizaram as comitivas e a gente foi. Eles achavam que eram comitivas esparsas, que iam daqui até ali e tal. Mas na verdade eram quatro comitivas que eles tinham identificado. Uma a gente não conseguir alcançar porque já estava muito longe da Transamazônica. Era a primeira comitiva. As outras três nós pegamos. Eram do mesmo fazendeiro. Era um problema social de décadas, imagina: uma cidade de 100 mil habitantes, todo mês mil cabeças de gado atravessando a cidade. Imagine o rastro de merda que fica para trás, o trânsito e, claro, o problema trabalhista. Era um empregador que fazia isso. E era um empregador que tem 50 mil cabeças de gado e que é o Presidente da Associação dos Pecuaristas do Pará, que é o maior produtor de gado do país. Mas há quem diz que faz parte da cultura local, que deve ser respeitada.
tero: E qual a resposta para quem entende que é apenas uma cultura local, que não é uma forma ilegal de exploração do trabalho?
Tentamos mostrar que não é cultura, mas uma opção econômica, que envolve forma desleal de concorrência. Afinal, o que ele fazia? Ele comprava o gado no Oeste do Pará. Dez cabeças de um, vinte de outro e juntava tudo em uma fazenda em Uruará, que é uma cidade perto de Santarém. Ele comprava o gado naquela região e juntava naquela fazenda para o gado engordar. Reunia lá mil cabeças, por exemplo. A cada 40 dias ele reunia mil cabeças, que ele ia comprando de pouco em pouco. Depois disso, montava uma comitiva dessas, com 10, 15 trabalhadores, dependendo da quantidade de gado, e eles saíam de Uruará, que era essa cidade perto de Santarém, para Xinguara, que é onde ficava a fazenda do fazendeiro mesmo, do patrão, que é um advogado aqui em São Paulo, inclusive.
tero: Será que é advogado trabalhista?
É, talvez (risos)… O filho dele é que é o presidente da Associação dos Pecuaristas do Pará. Ele mora em Marabá mesmo. E a comitiva saía, pegava a Transamazônica, andando cerca de cinco a dez quilômetros por dia, com o gado. Levava quatro meses para chegar na fazenda destino. E aí nesse percurso que ele economizava com transporte, pois ele precisaria de 30 caminhões fazendo essa viagem. Economizava com frete, com pasto, porque o gado vai pastando no caminho e chegava mais gordo no destino. Ao contrário do que a gente imagina: “ah, o gado vai caminhar quatro meses. Os bois vão chegar lá todos magrinhos”. Não. Os bois chegavam mais gordos porque iam no ritmo devagar. Ele ia pastando ao longo da estrada, nas fazendas dos outros. Ele deveria economizar mais com o pasto do que com frete, na verdade. Os trabalhadores iam junto com o gado. Eles só não comiam a grama. Eles iam junto. Então não tinha banheiro, não tinha nada. Dormiam ao relento, sem água, sem banheiro, sem segurança hídrica, sem nada, sem registro.
Enfim, nesse caso o empregador não pagou. Tanto o pai quanto o filho estavam na Itália, em um cruzeiro. Então ele não pagou ninguém. Foi ajuizada uma ação trabalhista, uma Ação Civil Pública (ACP), promovida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). O empregador fez um acordo para pagar, sem reconhecimento do vínculo de emprego. Ele pagou com o argumento de que se trata de mera liberalidade, isto é, de que não precisava pagar, pois não tem vínculo de emprego, mas que paga mesmo assim. E aí deu um milhão e meio de reais. Um valor até expressivo, porque os vínculos mais antigos tinham quatro meses, que era a comitiva que estava há mais tempo em percurso. Mas nesse caso precisou dessa ação judicial promovida pelo MPT.
tero: Os responsáveis não respondem criminalmente? Os fiscais do trabalho não podem dar voz de prisão em flagrante, por exemplo?
Nas ações que coordeno eu tenho dado voz de prisão. Venho fazendo isso desde 2015, mais ou menos. É óbvio que se a gente está chegando em uma fazenda e vendo que tem trabalho escravo, a gente prende. É flagrante. Está cometendo um crime em flagrante. Se você anda com um papelote de maconha, você é preso em flagrante. Então por que não prender a pessoa que está cometendo um crime de trabalho escravo, não é? Só que na história da inspeção do trabalho se construiu numa cultura institucional de não prender, apesar de sempre ter policial nessas operações. Por quê? Criou-se a ideia de que “se prender, não paga”. Se o criminoso for preso, ele não pagaria os trabalhadores. É uma construção institucional. E mais, não se prende, também, porque dá trabalho. Quando a gente prende alguém tem que levar para a Polícia Federal. A gente fica lá doze horas esperando. Isso traz prejuízo, pois você está lá enquanto tem mais três fazendas para fiscalizar. Assim, você já não vai mais fazer a fiscalização das demais fazendas, porque teve que parar a operação. Existem consequências operacionais. Mas, para mim, é evidente que tem que ser feito.
tero: Essas mudanças recentes das Normas Regulamentadoras (NRs) da saúde e segurança do trabalho trazem mudanças nessa fiscalização e repressão ao trabalho análogo à escravidão?
A princípio, não. Na mesma entrevista a que me referi, do Bruno Dalcolmo, ele fala que não vai partir do executivo nenhuma mudança nesse ponto, de trabalho escravo. Ele disse isso, que se partir uma mudança no trabalho escravo vai ser do Congresso, de mudar o conceito, de discutir a efetividade da política e tal. Não do executivo. Como em 2017 eles tentaram mudar o conceito por meio de Portaria e isso teve uma repercussão social negativa muito grande, acho que eles estão meio vacinados. Eles sabem que é um tema espinhoso. Então eles preferem atacar temas que para eles são mais centrais, como as NRs 3 e 12, por exemplo. No geral, as principais mudanças que eles demandam são impedir ou limitar muito os poderes de embargo e de interdição, que os AFT possuem. Isso afeta principalmente a construção civil.
tero: Em um vídeo que vem circulando pelas redes sociais, o presidente Jair Bolsonaro diz que é preciso “tirar poder” dos fiscais do trabalho para o país poder avançar. Como funciona, na prática, esse poder de embargar e de interditar?
A gente embarga a obra e interdita a atividade. Numa obra, por exemplo, um prédio está sendo construído e não tem a proteção de periferia. Não tem uma proteção contra a queda ou contra a queda de materiais. Essa é a principal causa de acidente fatal: queda de pessoa. O trabalhador cai lá do andaime ou cai do prédio. Ou, então, ocorre queda de materiais. Isto é, cai um tijolo na cabeça de um trabalhador que está lá embaixo. Nessas situações, a gente pode embargar a obra, embargar um trecho da obra ou interditar os trabalhos no andar que está sem a proteção. Então a construção civil demanda muito. A indústria também, mas menos. A principal demanda da indústria é relacionada com a NR 12. Ou seja, não é à toa que essas duas são as duas que já foram revistas. A NR 12 já foi revista e já foi publicada a revisão. Agora, mais recentemente, foi a NR 3. A discussão ocorre na CTPP, Comissão Tripartite Paritária Permanente, que é a instância que reúne representantes do governo, trabalhadores, empregadores. Por ela passa a produção das normas regulamentadoras, das NRs. Então, pelo texto vigente, que é baseado nas convenções da OIT: a norma tem que ser produzida e alterada por conselho tripartite. Então passa por essa comissão. Os representantes dos trabalhadores foram contra as alterações da NR 3, mas foram voto vencido. Ou seja, foram aprovadas na CTPP as alterações das NRs 3 e 12. O governo realmente respeitou o processo tripartite, só que é um processo viciado porque duas partes estão a favor da revisão: empresários e governo. Inclusive os auditores-fiscais que tem assento lá, estão para colaborar tecnicamente com essas mudanças que interessam empresários e governo, mas que são prejudiciais aos trabalhadores. Estes estão meio que “vendidos” no processo. Inclusive pelo desmonte do movimento sindical, feito na reforma trabalhista. Aliás, esqueci de mencionar na apresentação que eu sou também diretor do Instituto do Trabalho Digno (ITD). O Instituto hoje é formado só por auditores do trabalho, mas a nossa ideia é até expandir, abrir para qualquer um se filiar. A gente edita uma revista que é a revista Laborare. Ela teve a segunda edição. Por enquanto só eletrônica. A gente não tem recurso para publicar, mas tem aquela revisão duplo-cega e a gente busca conquistar o reconhecimento de revista científica. Então a escolha dos artigos publicados é bem criteriosa. A gente tem um corpo editorial bem extenso. O Jorge Luiz Souto Maior, inclusive, faz parte do corpo editorial. Valdete Severo, também. A gente ainda não conseguiu produzir tantos efeitos práticos. Falta dinheiro, enfim, todo mundo trabalha. A gente está ali, no dia a dia, matando um leão por vez. Conseguimos produzir uma nota técnica, foi a primeira. A gente está com essa ideia agora de o Instituto elaborar notas técnicas, similares às que o DIEESE faz, sobre temáticas relacionadas ao trabalho. A gente produziu a primeira nota técnica do Instituto que foi sobre a NR 3. Mas, enfim, os colegas do ITD buscaram as representações dos trabalhadores na CTPPM e os trabalhadores negaram aprovar a NR 3. Teve um efeito bem interessante.
Paralelamente, o Rogério Marinho falou em retirar 90% das NRs. Tem já um programa de revisão das NRs. A ideia deles é rever todas, literalmente. E rever para diminuir proteção de quem trabalha. Porém, de qualquer forma, se eu chego em uma fábrica e vejo que as condições de trabalho estão expondo o trabalhador a um risco grave, vou interditar independentemente do que diz a NR 12. Afinal, como auditor, tenho competência para reconhecer o risco e determinar a paralisação, se for um risco grave e iminente, que é como a legislação define. Isso independe de NR.
tero: Por fim, Magno, para fechar, a OIT publicou neste ano uma declaração sobre o seu centenário, reafirmando os seus valores de origem, quais sejam, a promoção da justiça social e a busca pela paz perpétua universal, e se comprometendo a adotar um novo enfoque do futuro do trabalho centrado nas pessoas. Qual você acha que é o futuro do trabalho?
O futuro do trabalho pode ser visto esparso em nosso presente, com os elementos daquilo que virá já sendo gestado em nossos tempos: distanciamento cada vez maior entre as pessoas que detém o capital e aquelas que vivem de seu labor, tendo os trabalhadores as suas vidas mediadas por algoritmos e inteligência artificial, enquanto os capitalistas veem cada vez mais multiplicar suas riquezas advindas da especulação, do mercado financeiro, e não de uma produção real, material, palpável. Os laços sociais, a solidariedade, a noção de coletivo e de bem comum, vão cedendo espaço à maximização dos lucros dos detentores das riquezas, e à crescente dificuldade de sobreviver, das massas. O Estado vai se moldando para assegurar que a lucratividade do capital não fique estagnada, e para que a miserabilidade do precariado não se transforme em revolta, promovendo a máxima liberalização das amarras ao capital a partir da máxima violência contra os direitos em geral, os trabalhistas em especial. Somente a transformação da superexploração em revolta, em capacidade de se afrontar os poderosos e suas estruturas, terá a possibilidade de modificar esse futuro sombrio que se avizinha. Do mesmo modo que a Revolução Russa de 1917 foi decisiva para a concepção de Estados de Bem-Estar Social do século XX, sem os quais a OIT pouco ou nada teria promovido, não haverá futuro decente para os trabalhadores sem luta, resistência e enfrentamento.