Pesquisa do IBGE afirma que mudança é reflexo de políticas públicas que proporcionaram o acessos da população preta e parda na rede de ensino. Recém-formada critica falta de docentes negros nos cursos.
No El País
O número de matrículas de estudantes negros e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou, pela primeira vez, o de brancos. Em 2018, esse grupo passou a representar 50,3% dos estudantes do ensino superior da rede pública, segundo a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, publicada nesta quarta-feira pelo IBGE. Embora representem hoje mais da metade dos estudantes nas universidades federais, esse grupo ainda permanece sub-representado já que corresponde hoje a 55,8% da população brasileira.
O levantamento revela ainda que a população negra e parda está melhorando seus índices educacionais, tanto de acesso como permanência. O abandono escolar diminuiu de 30,8%, em 2016, para 28,8% em 2018. Entre a população preta ou parda de 18 a 24 anos que estudava, o percentual cursando ensino superior aumentou de 50,5%, em 2016, para 55,6% em 2018. Apesar do avanço, o percentual ficou bem abaixo do alcançado pelos brancos na mesma faixa etária, que é de 78,8%.
A melhoria dos índices educacionais dessa parcela da população na rede de ensino é, em parte, reflexo de políticas públicas, como o sistema de cotas, que proporcionaram o acesso e permanências da população preta e parda, segundo o IBGE. A Lei Federal de Cotas, sancionada em 2016, definiu que metade das matrículas nas universidades e institutos federais deveriam atender a critérios de cotas raciais.
Na avaliação do pesquisador Claudio Crespo, do IBGE, a melhora nos indicadores é relevante, mas como a desigualdade é histórica e estrutural, os avanços para a população preta ou parda só acontecem quando há mobilização social e políticas públicas direcionadas. “A intervenção de políticas públicas é um fator essencial para a redução dessa desigualdade. Onde há avanços percebidos, apesar da distâncias que ainda reside, são espaços em que houve intervenção de políticas públicas e também organização do movimento social para a conquista de uma sociedade mais igualitária, como as cotas para acesso ao nível superior”, afirmou à agência Brasil.
Para a mestra em direito Winnie Bueno, integrante da Rede de Ciberativistas Negras, o avanço do número de matrículas de negros na universidade é importante, mas é preciso pensar também em políticas de permanência para que esses jovens concluam o Ensino Superior. “Há uma série de outros desdobramentos, por políticas de permanência que não são aplicadas. É preciso olhar para esse dado com profundidade ou se chegará à conclusão que alcançamos o objetivo da política de cotas e que está tudo bem. E está bem longe de estar tudo bem”, afirma Bueno.
Segundo o IBGE, também houve aumento de matrículas de estudantes negros nas universidades privadas, reflexo de programas como o Programa Universidade para Todos (Prouni), que concede bolsas de estudos parciais e integrais a estudantes de baixa renda. O percentual de vagas ocupadas por essa parcela da população nas instituições privadas avançou de 43,2% em 2016 para 46,6% em 2018.
“Achava que a universidade não era para mim”
Recém-formada em psicologia, Tamires Costa, negra, de 25 anos, foi a primeira da família a entrar em uma universidade. Filha de uma mãe analfabeta e de um pai que teve a chance de estudar apenas até a 3ª série, ela sempre recebeu incentivo familiar para prosseguir os estudos após terminar o ensino médio em uma escola pública. “Eu ficava receosa porque achava que a universidade não era para mim. Tinha a sensação que era elitizado, que era só para quem tinha dinheiro”, diz.
Essa desconfiança fez com que Tamires, apesar de ter realizado a prova do Enem, logo que terminou o ensino médio, adiasse a entrada na universidade. Dois anos depois, tentou outra vez a prova e conseguiu uma nota de corte que possibilitou o ingresso dela em uma faculdade privada de São Paulo com uma bolsa do Prouni, que cobria metade da mensalidade do curso de psicologia. A outra metade ela pagava com quase todo o salário que recebia como auxiliar administrativa de uma empresa de pesquisa.
Em 2016, no entanto, Tamires entrou para a fila do desemprego no país. Impossibilitada de pagar a mensalidade, chegou a pensar em deixar o curso. “Foi o maior pesadelo, fiquei um ano desempregada, acumulando uma dívida de 8.000 reais. Mas minha mãe não deixou que eu desistisse e conseguiu pegar um empréstimo para quitar as mensalidades atrasadas. Só assim, consegui finalizar o curso. Foi a maior vitória, ela que nunca teve uma oportunidade como essa foi a pessoa que mais me apoiou”, explica.
Apesar dos números apontarem para uma participação maior dos negros nas salas de aulas das universidades, Tamires, que chegou a participar de um coletivo negro, acredita que o ambiente acadêmico ainda tem um padrão branco. “Não tive nenhuma referência de docentes negros enquanto estava na graduação”, revela.
Atualmente, a agora psicóloga, é funcionária com carteira assinada de uma editora que produz produtos de psicologia. “Estou muito feliz porque depois de todo o esforço, eu vejo que valeu a pena. No último ano da faculdade, como o futuro é incerto, você fica com muitas dúvidas”. “Quando uma criança negra vê que alguém com cabelo na régua, que veio da favela, que fala e anda do mesmo jeito que ele entrou numa universidade, você está mostrando pra essa criança que ele também pode e deve entrar lá”, disse ao EL PAÍS João da Silva, cuja foto em um ato pela educação no Rio viralizou em maio. Assim como Tamires, João foi o primeiro da família a entrar na universidade.
Os próximos desafios enfrentados por Tamires devem ser dentro do mercado de trabalho. O levantamento publicado nesta quarta-feira revelou que as mulheres pretas ou pardas continuam na base da desigualdade de renda no Brasil. No ano passado, elas receberam, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%), que ocupam o topo da escala de remuneração no país.