No país da ascensão da ultradireita, cujos políticos contestam dados que escancaram a desigualdade racial, os dados retratam a maior taxa de analfabetismo, os menores salários e a maioria das mortes violentas entre pretos e pardos.
No El País
Cento e trinta e um anos se passaram desde a abolição da escravidão, mas o Brasil ainda está longe de ser uma democracia em termos raciais. As marcas da exploração que durou mais de três séculos e a falta de políticas públicas de reparação em número suficiente estão refletidas nos baixos índices de bem-estar da maioria da população composta por pretos e pardos (uma fatia que corresponde a 55,8% dos brasileiros), se comparada à média da população e aos brancos. Ainda assim, o país que nas últimas décadas viu irromper como nunca o debate sobre o racismo e suas implicações, agora convive com a ultradireita no poder. Integrantes do partido do presidente Jair Bolsonaro usam o discurso contra a reparação das minorias, e dos negros em especial, e a negação das estatísticas e dos efeitos do preconceito como uma ruidosa bandeira política.
Nesta terça-feira, véspera do Dia da Consciência Negra, o deputado do PSL Delegado Tadeu (SP), decidiu rasgar um cartaz que mostrava a imagem de um homem negro ferido por uma bala de um policial em uma exposição na Câmara. Tadeu disse que a ilustração ofendia os policiais —as vítimas da polícia brasileira são homens (99%), negros (75%), jovens (78%), segundo a Anuário Brasileiro de Segurança Pública—. Enquanto a oposição pedia que Tadeu fosse levado ao Conselho de Ética da Casa por racismo, seu colega de partido, Daniel Silveira (PSL-RJ), subiu à tribuna para dizer que os negros morriam mais nas mãos dos agentes porque são “maioria no tráfico”. “Não venha atribuir à Polícia Militar do Rio de Janeiro as mortes porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado.” Racismo é crime no Brasil, inafiançável e imprescritível.
Abaixo, algumas das estatísticas que desconstroem a ideia de que não há custos específicos de ser negro no país.
Das primeiras horas de vida à morte violenta
O Brasil tem hoje a maioria da população (55,8%) composta por pretos e pardos, mas é justamente esse grupo que tem a maior taxa de analfabetismo, os menores salários e sofre mais com a violência e o desemprego. A desigualdade em relação à população branca começa desde o nascimento, já que a mortalidade entre crianças negras e pardas brasileiras é bastante superior à da população branca da mesma idade. Em 2017, 50,7% das crianças até 5 anos que morreram por causas evitáveis eram pardas e pretas, enquanto 39,9% eram brancas, segundo dados do Ministério da Saúde.
A disparidade educacional no país também tem cor. Apesar de uma série de indicadores educacionais da população preta ou parda terem melhorado gradativamente nos últimos anos, reflexo de políticas públicas afirmativas como o sistema de cotas, a desvantagem desta população em relação à branca continua evidente. Ainda que o número de analfabetos tenha registrado uma queda entre 2016 e 2018, a taxa de analfabetismo das pessoas pretas ou pardas foi de 9,1% no Brasil, quase três vezes maior que a de brancos (3,9%), segundo dados do IBGE.
Concluir o ensino médio ainda é uma realidade distante para muitos brasileiros, mas o desafio é maior para a população parda e preta. A taxa de conclusão do ensino médio (proporção de pessoas de 20 a 22 anos que concluíram esse nível) deste grupo era de 61,8%, enquanto a dos dos brancos era de 76,8%.
O abandono escolar também reflete a disparidade entre os dois grupos. A proporção de pessoas pretas ou pardas de 18 a 24 anos de idade com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam escola caiu ligeiramente de 30,8% para 28,8%, porém a proporção de pessoas brancas na mesma situação, em 2018, era bem menor, de 17,4%.
Na semana passada, o IBGE informou que, pela primeira vez, os pretos ou pardos passaram a ser 50,3% dos estudantes de ensino superior da rede pública, no entanto, como formam a maioria da população, eles continuam sub-representados. Os dados do instituto mostraram também que, entre a população preta ou parda de 18 a 24 anos que estudava, o percentual cursando ensino superior aumentou de 2016 (50,5%) para 2018 (55,6%), mas, novamente, ainda ficou abaixo do percentual de brancos da mesma faixa etária (78,8%).
Pretos e pardos são maioria na fila do desemprego
A desigualdade educacional acaba se refletindo também nas disparidades do mercado de trabalho e de rendimentos. Pretos ou pardos somavam 64,2% da população desocupada e 66,1% da população subutilizada. O rendimento médio mensal das pessoas brancas ocupadas foi de 2.796 reais, no ano passado, 73,9% superior ao da população preta ou parda que,em média, obteve 1.608 reais.
No caso das mulheres negras o abismo da desigualdade é ainda maior. No ano passado, elas receberam, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%), que ocupam o topo da escala de remuneração no país.
Nem mesmo quando o nível de instrução é igual entre pretos, pardos e brancos a disparidade desaparece. Os brancos com nível superior completo ganhavam, por hora, 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesma escolaridade. A desigualdade também é enorme quando o tema é a distribuição de cargos gerenciais, que demandam maior qualificação: somente 29,9% deles foram exercidos por pessoas pretas ou pardas no ano passado.
Enquanto dois terços dos negros estão entre os 10% com menores rendimentos na população, nem um terço deles faz parte do grupo dos 10% com maiores rendimentos. Segundo pesquisa do IBGE, a proporção de pretos ou pardos com rendimento inferior às linhas de pobreza, propostas pelo Banco Mundial, foi mais que o dobro da proporção de brancos.
Violência atinge mais pardos e negros
A diferença racial também não escapa das desoladoras estatísticas sobre a violência no Brasil. Em todos os grupos etários, a taxa de homicídios dos pretos ou pardos superou a dos brancos. Em 2017, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca. A série histórica revela ainda que, enquanto a taxa média manteve-se estável na população branca entre 2012 e 2017, ela aumentou na população preta ou parda nesse mesmo período, passando de 37,2 para 43,4 homicídios por 100 mil habitantes desse grupo populacional.
As diferenças são ainda mais acentuadas na população jovem. A taxa de homicídios chega a 98,5 por 100 mil habitantes entre pessoas pretas ou pardas de 15 a 29 anos. Entre jovens brancos na mesma faixa etária, a taxa de homicídios é de 34 por 100 mil habitantes. Os números ainda mostram que estudantes pretos ou pardos do 9° ano do ensino fundamental vivenciavam mais experiências violentas do que os brancos. Frequentar escolas situadas em áreas de risco de violência, ter sido agredido por algum adulto da família, envolvimento em briga com uso de arma de fogo ou de arma branca – todas essas variáveis estavam presentes mais intensamente no dia a dia de pretos ou pardos.