Dados são do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e comparados com 2017. Número de denúncias de discriminação contra outras religiões caiu 9,9% no mesmo período.
O número de denúncias de discriminação religiosa contra terreiros e adeptos de religiões de matriz africana como umbanda e candomblé aumentou 5,5% em 2018 em relação a 2017 no Brasil. Foram 152 casos em 2018, contra 144 em 2017. Os dados são do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que recebe denúncias por meio do Disque 100.
Já o número de denúncias de discriminação religiosa contra adeptos de outras religiões, excluindo as de matriz africana, caiu 9,9% no mesmo período, de acordo com o ministério. Foram 354 em 2018, contra 393 em 2017. Nesta quarta-feira (20) é celebrado o Dia da Consciência Negra.
As religiões de matriz africana com maior números de adeptos no Brasil são a umbanda e o candomblé.
Imagem de preto velho, guia de umbanda que trabalha dentro da religião de umbanda, no Colégio Pena Branca, na Zona Sul de São Paulo — Foto: Bárbara Muniz Vieira/G1
Para o doutor em direito e ex-secretário da Justiça de São Paulo Hedio da Silva Junior, os números não surpreendem e tendem a piorar.
“As chamadas tradições judaico-cristãs estão mais protegidas pelo discurso do governo federal e o contrário é verdadeiro, os adeptos de religiões de matriz africana, indígenas e ateus não estão tão protegidos e têm enfrentado com maior frequência a intolerância religiosa. A Constituição Federal expressamente tutela as manifestações culturais e a contribuição dos diferentes grupos étnicos que formam a nacionalidade brasileira. Dessa forma, o discurso oficial do estado brasileiro hoje é um discurso que contraria a Constituição, que sujeita o presidente da República inclusive a eventual processo de impeachment.”
Segundo os números do ministério, o tipo de violação mais registrado em 2018 foi a violência psicológica, com 201 casos. A violência psicológica é qualquer atitude que ultraje, humilhe, constranja ou avilte uma pessoa por sua prática ou identificação religiosa.
A umbanda é a religião que teve mais registros no ano passado. Foram 72 denúncias de ataques contra umbandistas em 2018. Em segundo vem o candomblé, com 47 denúncias. Em terceiro, está a religião testemunhas de Jeová, com 31 registros no mesmo período.
De janeiro a junho de 2019, o ministério registrou 61 denúncias de discriminação contra adeptos das religiões afro. Até agora, neste ano, a violência institucional registrou o maior número de casos neste ano (119). A violência institucional se reflete pela omissão das instituições.
Altar do Colégio Pena Branca, no bairro do Ipiranga, na Zona Sul de São Paulo — Foto: Bárbara Muniz Vieira/G1
“Sai, capeta”
O recém-criado Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), em São Paulo, coordenado por Hedio, tem um plantão 24 horas e recebe uma agressão a adepto ou a terreiro de matriz africana por dia. Especialistas acreditam na subnotificação dos casos registrados pelo ministério porque as vítimas ainda têm medo de denunciar.
É o caso da dirigente espiritual e cientista da religião Claudia Alexandre, que nunca denunciou os adeptos de uma igreja evangélica que funciona ao lado de seu terreiro em Paraty, no Rio de Janeiro.
“Foram pelo menos três anos de provocações. Todas as vezes que nossos encontros aconteciam, o grupo evangélico aparecia, ligava uns auto-falantes e começava a gritar palavras de exorcização do tipo ‘sai capeta’. Temíamos por alguma invasão ou depredação, mas dizemos que não ter cedido a provocações foi o melhor, apesar do silêncio prejudicar as estatísticas. O racismo religioso fica velado se não houver violência física. Como reclamar de um outro culto que supostamente está fazendo sua pregação?”, afirma.
Cláudia e Luiz Alexandre são irmãos e fundadores do Cecure (SP) um centro de estudos e atendimento espiritualista e do Templo de Umbanda Liberdade Tupinambá — Foto: Leo Vitulli/Tuany Maia/Divulgação
Segundo Hedio, os números do ministério são insignificantes perto dos casos que acontecem. “Estamos falando de milhões de pessoas que professam as religiões afro-brasileiras e que não assumem por medo justamente da intolerância”, diz ele.
Para a deputada estadual Leci Brandão (PcdoB), as religiões de matriz africana são mais atacadas por terem relação com o povo negro.
“Tudo o que tem relação com a povo negro sempre existe uma forma das pessoas cometerem discriminação direta ou indiretamente. A liberdade religiosa é um direito garantido pela Constituição Federal e as vozes das vítimas são importantes no enfrentamento. A denúncia é muito importante, mas ainda existe muito medo”, diz Leci.
Altar, ou congá, do Colégio Pena Branca, no Ipiranga, em São Paulo — Foto: Bárbara Muniz Vieira/G1
Jurados de morte
Além da discriminação, há agressões físicas consumada. É o que aconteceu no terreiro de candomblé da yalorixá (mãe de santo) Gabriela Beck, 39 anos.
No ano passado, em entrevista ao G1, ela contou que vinha tendo problemas com um vizinho evangélico do terreiro Centro Cultural Eyin Osun, na Vila Industrial, extremo Leste de São Paulo, que ameaçava ela e o pai idoso com faca.
O medo de Gabriela se concretizou. Em setembro deste ano, o vizinho agrediu o pai verbalmente, foi para cima dele e deu uma facada em um filho de santo que entrou na frente na tentativa de proteger o pai de Gabriela.
“Ele começou a falar coisas horríveis para meu pai, aí um dos filhos de santo pediu para ele parar. Ele vinha até o portão gritando muito e sem camisa, uma cena horrível. Começaram a discutir com ele e ele voltou para casa e saiu de novo com uma faca muito grande. Quando ele veio para cima do meu pai, meu filho de santo entrou na frente para tentar apaziguar e recebeu uma facada no abdômen. Foi aquela loucura. Chamei o socorro, que não vinha, coloquei ele no meu carro e o levei. Ele precisou passar por duas cirurgias. O vizinho foi preso em flagrante por tentativa de homicídio e deixou bem claro no momento da prisão que quando ele voltasse ele mataria a mim e a meu pai”.
Yalase Gabriela de Yewa e seu pai biológico, Cido de Osun, babalorixá há 45 anos, estão à frente do Centro Cultural Eyin Osun, na Zona Leste de SP — Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação
Adeptos brancos
O número de brancos que têm se associado a religiões afro é um fenômeno difícil de ignorar. Uma pesquisa de 2011 da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial diz que, em São Paulo, são 60,6% brancos, 13,1% pretos e 25,5% pardos.
Para Hedio, os brancos que aderem a essas religiões também passam a ser vítimas do que ele chama de “racismo religioso”.
“A umbanda aqui em SP tem entre 60% e 70% de brancos e parte grande que frequenta é classe média alta. Mas o branco com esse perfil passa a ser tratado como preto ou até pior, de uma forma que eu comparo aos brancos da África do Sul que foram contra o apartheid e passaram a ser vistos como traidores”, afirma.
O ex-secretário de Justiça afirma que se trata de uma tendência, como o é a adesão de negros a religiões neo pentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Renascer em Cristo e a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, entre outras.
“A base social das religiões neo pentecostais é de negros, ao passo que o preto da macumba é o cara com educação superior e renda mais alta, como é o perfil dos brancos na macumba. Quanto maior o nível de formação, mais ele se sente corajoso de admitir sua crença. Quanto mais miserável e iletrado, mais ele opta pelas igrejas neo pentecostais, o que não deixa de ser um caminho para aceitação. O cara já é preto e você ainda vai pedir para ele ser macumbeiro? O branco vai mais para o enfrentamento”, opina.
Adeptos do Templo de Umbanda Liberdade Tupinambá, em Paraty, no Rio de Janeiro: 80% brancos — Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
A adesão dos brancos a religiões de matriz africana são, para o jurista, a comprovação de o quanto o Brasil é africanizado.
“O que se propaga como uma escola de derrotados é na verdade a escola de vencedores. Os adeptos de religiões afro não batem na casa das pessoas para pregar, são associadas ao demônio, não têm canal de TV e no entanto essas religiões só crescem e ganham adeptos. Isso é a demonstração da vitalidade, da pujança e do vigor da cultura africana”, diz Hedio.
Hedio cita como cultura africana naturalizada no Brasil o costume de vestir branco no Réveillon, o que já está no “ethos” (conjunto de hábitos ou crenças que definem uma comunidade ou nação) da cultura brasileira.
“Não há discurso fundamentalista, tirânico ou fascista que possa destruir um patrimônio cultural de tamanho esplender e capilaridade na nossa cultura e na nossa sociedade. As religiões de matriz africana há muito deixaram de ser uma coisa de preto e isso é ótimo.”
Amparo na lei
Em São Paulo, a deputada estadual Leci Brandão acredita que uma penalidade monetária pode ajudar a coibir crimes de discriminação religiosa. Ela é autora da Lei Estadual nº 17.157, publicada no Diário Oficial do Estado de SP último dia 20 de setembro, que dispõe sobre penalidades administrativas a serem aplicadas pela prática de atos de discriminação por motivo religioso, inclusive pela internet.
A multa por reincidência no crime é de 3 mil Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESPs), valor que atualmente é de R$ 79,590 mil.
“O que motivou a criação dessa lei foram questões objetivas de intolerância. Ficamos sabendo de vários fatos de invasão de terreiros de candomblé e umbanda em São Paulo e no Rio de Janeiro e começamos a perceber no cenário político que as pessoas têm um comportamento de ódio e ofensa, uma coisa muito ruim por causa da religião do outro”, afirma Leci.
O sacerdote de umbanda David Dias posa no Colégio Pena Branca — Foto: Bárbara Muniz Vieira/G1
O ato de recusar, retardar, impedir ou onerar a locação, compra, aquisição, arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis também é passível de punição de acordo com a lei.
Foi o que aconteceu no Centro Espiritualista de Umbanda (CEU) Estrela Guia. As proprietárias pediram de volta o imóvel localizado no bairro da Saúde, Zona Sul de São Paulo, em setembro deste ano.
A Lei de inquilinato, entretanto, diz que hospitais, escolas e entidades religiosas registradas com essa finalidade têm proteção da lei contra o despejo. Ou seja, o proprietário não pode pedir o imóvel mesmo após o encerramento do contrato.
Em setembro, uma decisão da 4ª Vara Cível de São Paulo decidiu que o instituto poderia continuar no endereço e que as proprietárias do espaço deveriam pagar os custos do processo, inclusive o honorário dos advogados. Elas recorreram, e foi justamente a argumentação da advogada Patrícia Torres que gerou a acusação de intolerância religiosa contra os umbandistas.
Trunqueira de exu e pombagira, orixás cultuados na umbanda, no Colégio Pena Branca — Foto: Bárbara Muniz Vieira/G1
No texto, Torres diz que as ações sociais exercidas pela instituição poderiam acontecer em qualquer lugar, “não havendo motivo para se valer da condição especial justificável a hospitais, escolas e entidades religiosas”.
O CEU entretanto, possui estatuto desde 2015 e se declara como entidade religiosa em seu artigo 1º. “ O Instituto CEU Estrela Guia (…) tem por finalidade promover atividades ligadas ao desenvolvimento do ser humano e a sua integração social, através de todos os meios religiosos, culturais, educacionais, esportivos, artísticos e ambientais”, diz o texto.
“A intolerância não se limita à destruição dos templos. Se manifesta de maneira verbal, ou na tentativa de desmerecer a religião. Com essa justificativa ela desrespeita não só ao CEU, mas a toda entidade religiosa que tem no seu local de culto um solo sagrado”, rebate o dirigente espiritual do espaço, Denisson D’Angelis.
Torres disse ao G1 por email que o processo não questiona se centro de umbanda é entidade religiosa. “Toda forma de religião tem proteção constitucional e por óbvio que isso jamais poderia ser discutido em um processo de despejo. São esses pontos que estão sendo levantados na ação, porém o Instituto está buscando, a qualquer custo, enquadrar o caso como intolerância religiosa”, afirmou.
Os dirigentes espirituais do Centro Espiritualista de Umbanda (CEU) Estrela Guia, Denisson e Kelly — Foto: Celso Tavares/G1
Capital paulista
Em São Paulo, o vereador Toninho Vespoli (PSOL) propôs projeto que prevê participação de curso inter-religioso a quem causar danos à estrutura física ou símbolos de matriz africana. “Entendemos que a questão é cultural, de falta de conhecimento, daí o curso”, diz o vereador.
Depois, o texto ainda prevê que a pessoa pode ter punição mais rígida administrativamente, como não ter contratos com a Prefeitura por três anos, em administração direta ou indireta. Em caso de reincidência no crime, a pessoa paga multa de R$ 2 mil por ato.
Mural no Colégio Pena Branca com representações e orixás cultuados em religiões de matriz africana — Foto: Bárbara Muniz Vieira/G1
Como denunciar
– O Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro) tem um plantão 24 horas pelo telefone +55 11 3129-8233. Eles recebem denúncias de todo o Brasil e dão orientação gratuita.
– A Secretaria da Justiça e Cidadania, por meio do Fórum Inter-Religioso para uma Cultura de Paz e Liberdade de Crença, também acolhe denúncias de discriminação religiosa.
Os conflitos podem ser resolvidos por meio de mediação de conflitos. Nos casos em que não há conciliação, é instaurado processo administrativo com base na Lei Estadual 17.517/2019.
Você pode denunciar pelo site ou pelo email denunciaintoleranciareligiosa@justica.sp.gov.br
-O Disque 100 funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel (celular), bastando discar 100.
– Em São Paulo capital, também é possível denunciar casos de violência e discriminação religiosa através da ouvidoria na Secretaria de Direitos Humanos pelo telefone 3113-8697 ou procurar a coordenação 3113-9689. As denúncias também podem ser feitas pessoalmente, na Rua Libero Badaró, 119, 9º andar, ou pelo email combateaoracismo@prefeitura.sp.gov.br.
As denúncias recebidas são encaminhadas para o Ministério Público e para o Decradi – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, onde também é possível denunciar.