Assim como o eterno ídolo rubro-negro, Gabriel entra para a galeria de jogadores imortais ao conduzir o Flamengo a mais uma conquista da Libertadores.
No El País
Um gesto audacioso marcou seu primeiro ato na decisão da Libertadores. Ao pisar no gramado do estádio Monumental, em Lima, Gabriel Barbosa não resistiu à tentação e acarinhou a taça que o Flamengo não via há exatos 38 anos. Para um atacante que incorporou ao apelido o sufixo “gol”, tocar o troféu antes do jogo começar, muito além de presunção, manifesta a confiança despida de falsa modéstia esbanjada pelo maior artilheiro da atualidade no Brasil. O ato final, como a coroação definitiva para uma temporada irretocável, viria com a assinatura de oportunismo, sorte e persistência que distingue os craques predestinados a fazer história. A partir de agora, quando um torcedor rubro-negro olhar para o dia 23 de novembro de 2019, cheio de saudosismo, vai se lembrar que sim, “hoje teve gol do Gabigol”.
Mas o roteiro da epopeia não poderia ser escrito sem a boa dose de drama que moldou o estado de espírito do flamenguista ao longo das jornadas malsucedidas pelo torneio continental. A tarde parecia ser daquelas, cena rara neste ano, em que o time é amassado pelo rival e sucumbe aos próprios erros. No primeiro tempo, o Flamengo não foi o irresistível Flamengo de Jorge Jesus, muito por méritos de um River Plate que lhe negou todos os espaços possíveis. E, consequentemente, Gabigol não foi o implacável Gabigol em quem a torcida aprendeu a confiar de olhos fechados. Pelo mesmo túnel onde flertara com a taça, saiu cabisbaixo após 45 minutos de domínio dos argentinos, nenhuma finalização a gol e um placar adverso para contornar sobre o atual campeão.
O segundo tempo até dava indícios de conspirar a favor de uma reação. Porém, o centroavante continuava em outra rotação, pouco inspirado, errando os passes mais triviais. Em sua primeira chance, com o gol aberto, dentro da pequena área, chutou em cima da defesa. Típica oportunidade que, em dias normais, não costuma perder. Quando o jogo parecia fadado a mais um triunfo do River, naquela altura em que muitos torcedores e secadores rivais já preparavam os memes com a imagem de Gabigol tocando o troféu antes da hora, o camisa 9 começou a transformar seu 23 de novembro particular em um dia anormal.
Com o faro que lhe é peculiar, acompanhou até o fim a bola esticada de Bruno Henrique para Arrascaeta, que, de jogada quase perdida, se converteu em assistência açucarada. Bastou um toque com a canhota para empatar. A massa rubro-negra ainda comemorava o renascimento do sonho enquanto Diego buscava o goleador do time com um lançamento longo, já nos acréscimos. Gabriel acreditou. Viu Pinola hesitar no primeiro corte e falhar no segundo, oferecendo, de bandeja, a chance de consagração à perna esquerda que não costuma vacilar. Os dois quiques no gramado foram suficientes para chegar inteiro na bola e disparar o tiro certeiro. Na comemoração, extravasou como manda o figurino, tirou a camisa e, tal qual Messi e Cristiano Ronaldo, a exibiu com seu nome e número em destaque, para que ninguém jamais esqueça o autor da façanha.
Assim como Zico, em 1981, no mesmo 23 de novembro, Gabigol anotou os dois gols da vitória em uma final de Libertadores. Dessa vez, de virada, sobre um rival tetracampeão da América. Depois de voltar ao Brasil desacreditado, recuperar a confiança no Santos e cravar a melhor temporada de sua carreira no Flamengo, onde balançou as redes 40 vezes em 54 jogos, o centroavante do cabelo descolorido e das comemorações irreverentes se tornou a representação fiel do torcedor rubro-negro dentro do campo. Mais do que isso, um membro da seleta galeria de jogadores que marcam época por um clube. Algo profundamente notável quando esse clube se trata do mais popular de um país com 200 milhões de habitantes.
“Esse momento vai ficar gravado para todos nós, flamenguistas e brasileiros. Eu fiz história”, disse, ainda no gramado do estádio Monumental. Gabigol não bateu o martelo sobre sua permanência no Flamengo por mais uma ou várias temporadas. Até o fim do ano, deve confirmar o título brasileiro, novamente liderando a artilharia da competição, e também pode sagrar-se campeão mundial. Talvez, um dia, caso permaneça, consiga superar os feitos em série do maior ídolo rubro-negro de todos os tempos. Mas se a temporada terminasse hoje, neste 23 de novembro, independentemente do que aconteça no futuro, seu nome já tem um lugar reservado no mesmo panteão da geração de Zico, como o artilheiro que, com a certeza da conquista, tocou a taça antes de devolver a América a sua nação.