No primeiro ano de poder da extrema direita, só o futebol e a cultura, de ‘Bacurau’ a Semayat Oliveira, salvam o país
Com a palavra, já de cara, um insuspeito cronista tricolor das Laranjeiras: “Se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido o Flamengo a Canudos para contar a história do povo brasileiro”. Só o exagero desse tio Nelson explica o Brasil nessa hora. Só a festa na favela, depois de uma disputa em que o time rubro-negro sofreu como um morador de morro imprensado entre polícia e bandido, salvou o ano de 2019 para uma grande massa de brasileiros. O futebol é o pio do povo, fica aí o velho e infame trocadilho quicando na área. Nunca caí nesse conto de que o futebol aliena.
O futebol é o bálsamo, ufa, imagina se faltasse o Flamengo no mundo para quem nunca soube o valor de um décimo terceiro salário e de uma carteira assinada – a utópica azulzinha que a reforma trabalhista triturou no Congresso em troca da vã promessa de milhões de empregos. Seria um desgosto profundo, como escreveu Lamartine Babo na letra do hino. Imagina o que seria este ano para a “poeira”, a parte mais lascada socialmente, se não fossem os milagres de Gabigol e Jesus. Não seria apenas um ano ruim, seriam folhinhas do calendário arrancadas pela tempestade.
Sim, a festa da Libertadores e do Brasileirão vai muito além da favela e dos sertões maltratados pelo governo do arrocho e da extrema direita, mas é o Brasil do desemprego que carece mais do Flamengo. Não caio nesse conto do futebol como ópio do povo. É o desafogo. Queria que você visse as imagens da farra do urubu na Cidade de Deus, caríssimo Henfil, de arrepiar até o mais frio e psicanalizado dos argentinos torcedores do River Plate.
É sim o pio do povo.
Na Rocinha da amiga Lindacy Menezes, doméstica pernambucana sobre quem já escrevi neste “El País/Brasil”, não foi diferente. No meu Cariri idem, palavra deste cronista torcedor do Icasa – o time mais proletário do planeta, nascido no chão da fábrica homônima de beneficiamento de algodão. É de lá, precisamente da subida do horto da estátua do Padim Ciço, o maior flamenguista que eu já vi na face da terra: o Maradona, 47 anos, como é conhecido o comerciante Cícero Jorge Rodrigues. Na casa dele, onde passei no começo deste ano, tudo é pintado com as cores do clube carioca.
O Flamengo, e nenhum político ou entidade, livrou o Brasil Real do desastre econômico de 2019. Foi lenha no fogão na falta de gás barato. O sufoco contra o River, depois do passeio no campeonato brasileiro, foi apenas para repetir a ideia de sacrifício da rotina da massa.
Conversa na Merça
E por falar em coisas que nos livraram do desastre do primeiro ano da administração da direita fascista, que romance importante sobre os diversos tons de racismo este Marrom e Amarelo (editora Alfaguara), do escritor gaúcho Paulo Scott, torcedor colorado do bairro Partenon, com muito orgulho, óbvio. Só a ficção explica o Brasil safra 2019. É preciso ler também, na urgência da hora, A morte e o meteoro (Todavia), do mato-grossense e são-paulino Joca Reiners Terron, que se passa logo ali, algo por volta de 2030, quando a Amazônia estará totalmente destruída. O projeto oficial da turma do trabuco anda bem adiantado nesse aspecto. Nada mais verossímil.
Ainda sobre as coisas que aliviaram a barra pesada, meu botequim-livraria preferido, a Mercearia São Pedro (SP), iniciou um ciclo de bate-papos sobre a realidade brasileira. No primeiro Conversa na Merça, a sorte de ouvir, além do citado Scott, os escritores Marcelino Freire (Balé Ralé), Ana Maria Gonçalves (Um defeito de cor) e o ator Silvero Pereira (BR Trans), o Lunga de Bacurau, um filme que também nos lavou a alma como um gol de placa aos 47 do segundo tempo. Arre!
Quem abriu a noite foi uma jovem jornalista e escritora de quem ouviremos muito falar daqui por diante. Semayat Oliveira, do grupo Nós, mulheres da periferia, paulistana do Jardim Brasil, que leu um texto inesquecível chamado Nascida de ventre livre. Repare nestes ditos e dizeres: “Acho que a gente adoece de silêncio. Acabrunha mesmo, murcha a cara, asfixia com letras penduradas na garganta. Vi um estudo esses dias… sabia que racismo causa ansiedade, depressão e essas coisas? Eu tô meio assim, viu. Tá dolorido pensar. O raciocínio fica perdidinho na encruzilhada da minha cabeça. Passo metade do dia me sentindo meio nada. Uma dificuldaaade de centrar nas coisas, não me acho lá em casa”.
Xico Sá, escritor e jornalista, autor de Big Jato (Companhia das Letras) e do novíssimo Crônicas pra ler em qualquer lugar (editora Todavia), escrito a seis mãos com Gregório Duvivier e Maria Ribeiro. É comentarista do programa Redação Sportv.