A presença ou não de diversidade e pluralidade na mídia reflete os princípios e valores da organização e também da sociedade que representa. Talvez por isso haja tão pouco debate sobre o racismo e o abismo de oportunidades entre negros e brancos no Brasil. Essa realidade ficou bastante clara no dia 20 de novembro, quando é celebrado o Dia da Consciência Negra. Apesar de fazer parte da agenda nacional e em várias cidades brasileiras ser até feriado, a pauta ganhou pouca valorização entre os dez jornais com maior circulação média em 2018, segundo o Instituto Verificador de Circulação (IVC).
Além disso, em outros periódicos regionais, o assunto também ganhou pouco destaque. Muitos sequer o abordaram. Como é possível, num país com mais da metade da população negra ou parda, não priorizar essa pauta?
Para se ter uma ideia, na lista dos dez jornais com maior circulação, Estado de S.Paulo, Extra, O Tempo, Super Notícia e Daqui não apresentaram qualquer menção à data na capa da edição impressa. Já Folha de S.Paulo, O Globo, Zero Hora, O Tempo, Correio do Povo e Diário Gaúcho trouxeram matérias sobre a data, alguns desenvolveram pautas especiais, mas, no geral, em tom comemorativo ou valorizando algum projeto social em busca do “resgate” da cultura negra. A desigualdade social e o preconceito sofridos pela população negra no país mereceram pouco destaque nas chamadas de capa.
Apenas O Tempo trouxe manchete sobre o problema da prevalência de negros e pardos entre os desempregados do país. Folha e O Globoapresentaram fotos de destaque sobre o tema, mas o primeiro abordou o resgate da cultura pelo turismo e a necessidade de ir além da negritude, e o segundo apresentou um factual sobre o salão de livros carioca. Com menos destaque, abordou a falta de diversidade em carreiras de “elite”, nas quais os negros têm baixa entrada. O termo “elite”, de alguma forma, já apresenta um sinal de diferenciação entre negros e brancos. Por mais que se busque debater a lacuna social, o tratamento ajuda a ampliar a desigualdade. O mesmo se verifica na chamada de O Estado de Minas (não listado entre os dez com maior circulação). Na capa, a manchete buscava valorizar o legado da população negra, porém destacava sua importância ao lado de indígenas e portugueses. Considerando a data, existe aí um elemento que reduz o protagonismo dos descendentes de africanos no país, mesmo sem querer.
No jornal Correio do Povo, um especial buscou lembrar as raízes negras do Rio Grande do Sul, “embranquecida” ao longo dos anos num processo de esquecimento da presença dos negros (e da escravidão) no estado. Na página online do veículo, o especial traz o depoimento do jornalista Flávio Bandeira, de 34 anos, que denuncia a invisibilização do negro e questiona: “Qual o medo da sociedade de que algum negro chegue a uma posição de destaque? Isso é uma coisa que eu penso muito todo dia. Vemos que somos praticamente invisíveis”. Segundo seu depoimento, ele nunca se viu representado nos livros de história, nos monumentos. Apesar de essa ser uma abordagem relacionada a um estado sulista, ela está presente em todo o país e também na mídia.
Existe uma invisibilização do negro no discurso da imprensa: pela baixa diversidade de vozes, pela falta de representatividade nas imagens, as pautas que não debatem criticamente a desigualdade estrutural, na composição das redações. Recentemente, uma foto postada por Maju Coutinho, apresentadora do Jornal Hoje, denunciou a falta de diversidade da equipe na qual ela trabalha. Na imagem, a única negra era Maju. A redação retratada não diverge muito da realidade da imprensa brasileira: em geral, a mídia é branca, de classe média, e fala para brancos, de classes média e alta (é esta a parcela da população com maior empregabilidade, educação e renda). A baixa atenção de alguns dos principais jornais brasileiros repercute, então, a baixa diversidade racial das redações, bem como o racismo latente existente na sociedade brasileira.
Em fevereiro de 2019, Dairan Paul debateu a normalização do racismo no discurso jornalístico a partir do caso de um jovem morto por um segurança de supermercado. No comentário para o objETHOS, ele avaliou as manchetes sobre o caso e pontuou o racismo implícito na mídia por meio da suavização do fato e, em certa medida, de sua “banalização”. O pesquisador apresentou outros casos relacionados à segurança pública em que o racismo aparece de forma naturalizada e, em alguns, existe a responsabilização da própria vítima. “No jornalismo, a formulação de estereótipos e preconceitos são alguns dos marcos sociais que atravessam julgamentos tomados nas redações”, afirma Dairan Paul.
Mas se o papel do jornalismo é o interesse público, como é possível que a maior parcela da população seja invisibilizada – e às vezes até criminalizada – pelo discurso da mídia? Apostamos que, além da herança escravagista e da extrema desigualdade social do país, a falta de diversidade das redações contribua para isso.
Falta de representatividade nas pautas é reflexo da falta de diversidade das redações
Para se ter uma ideia, o percentual de pessoas negras entre os jornalistas é inferior à metade da presença de pretos e pardos no Brasil. Entre a população brasileira, negros são 55,8% da população; entre os jornalistas, são só 23% (5% negros e 18% pardos), de acordo com o Perfil do Jornalista Brasileiro (MICK; LIMA, 2012). A situação é ainda mais desigual entre colunistas de grandes jornais: segundo estudo feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), mais de 70% dos formadores de opinião da Folha, Globo e Estadão são homens, e mais de 90% são brancos (chegando a 99% no Estadão). O GEMAA afirma ainda que o perfil profissional desses colunistas também é pouco aberto a um ponto de vista popular acerca dos problemas sociais e políticos do país. É preocupante saber que a mídia brasileira tem um olhar pouco conectado à realidade nacional, quando deveria ser o oposto.
Na edição de outubro deste ano, a repórter da piauíYasmin Santos publicou um texto sobre os negros na imprensa brasileira e, a partir de sua própria experiência como jornalista negra, comenta a falta de diversidade nas redações: “Com poucas semanas depiauí, descobri que Coelho [Tiago Coelho, repórter] tinha sido o primeiro profissional negro contratado pela revista, em 2015, e eu, a primeira mulher negra. Não era exatamente o que uma pessoa negra espera de um emprego dos sonhos. Aquilo me frustrou e ainda me frustra”, revela. Em seu texto, ela traz dados de uma pesquisa feita pela revista Imprensa em 2001, que procurava saber quantas pessoas negras trabalham nesses espaços e quantas ocupavam cargos de chefia. Das 230 redações ouvidas, somente 85 disseram contar com algum(a) jornalista negro(a). O número de chefes negros(as) era irrisório: 57 em um universo de 3.400, ou seja, somente 1,6% do total.
Os poucos profissionais negros das redações brasileiras têm um grande desafio: enfrentar o isolamento e a solidão causados pela sensação de não pertencimento. “Quando você é a cota, não deseja isso pra ninguém”, afirma Elena Wesley, jornalista negra, em texto publicado na newsletter do The Intercept Brasil no dia 16 de novembro. Ela conta que, mesmo entre os coletivos de esquerda na universidade onde se formou em jornalismo, a pauta da diversidade racial era tida como secundária: “[Os coletivos] defendiam a assistência estudantil como prioridade, sob o pretexto de que a política beneficiaria todo mundo. Mas eu estava longe de ser todo mundo. Eu era a cota, a exceção. E, quando você é a exceção, não deseja que ninguém se sinta da mesma forma” completa.
A percepção da pouca representatividade de pessoas negras na redação fez com que a repórter Yasmin Santos escolhesse esse tema para seu trabalho de conclusão de curso da universidade. Seu estudo foi construído a partir da perspectiva de 47 profissionais negros(as) entrevistados(as) e, entre os resultados, aponta que a questão do não pertencimento é uma constante que colabora para a intensificação da insegurança. “É complicado ser o único preto sempre”, contou a ela um entrevistado de 23 anos. “Enquanto os brancos estão lá se apoiando e dando tapinhas nas costas um do outro, você está lutando para não adoecer e pedir as contas.”
Outras descobertas interessantes de seu trabalho dizem respeito aos gargalos na profissão, que dificultam a entrada e a permanência de jornalistas negros nas redações. Um dos grandes fatores, segundo ela, é a baixa remuneração, principalmente para profissionais iniciantes. Esse aspecto acaba afugentando pessoas negras e periféricas que dependem da própria força de trabalho para viver, enquanto jornalistas de classe média conseguem segurar as pontas (seja com economias ou com suporte financeiro da família) numa realidade de baixos salários, empregos voláteis e “pejotização”.
Isso sem falar no racismo estrutural das redações, revelado em vários depoimentos dos entrevistados de Yasmin. Um dos mais chocantes é o de um jornalista de 32 anos que cometeu um erro na sua época de estagiário. Sua chefe, branca, revoltou-se: “Quantas chicotadas eu devo te dar?”. A despeito disso, as redações negam o racismo ou fingem que não existe. O peso emocional para quem o vive na pele é enorme, conforme aponta a autora: “Qualquer negro que busca sobreviver num ambiente majoritariamente branco se vê tentado a andar com uma sacola de eufemismos debaixo do braço para que possa ser ouvido sem provocar mal-estar ou cair em descrédito. É tanto eufemismo que o senso de urgência por vezes desaparece na nossa fala. Eu não vejo o mesmo esforço de comunicação do outro lado.” Elena Wesley, do The Intercept Brasil, dialoga com essa afirmação mencionando que uma análise dos rostos e das reportagens do jornalismo brasileiro pode demonstrar que a figura do negro não está sob os holofotes, e sim em manchetes pejorativas que o apresentam como bandido, suspeito. “Quando não somos invisíveis, nos simplificam com estereótipos”, afirma.
A mudança é urgente e os desafios para o jornalismo são muitos. Mas há caminhos
Corrigir esse problema é uma das questões mais importantes para o jornalismo, se ele quiser de fato cumprir sua função social e se tornar relevante para todas as pessoas. As soluções perpassam por perceber essa falta de diversidade, fazer autocrítica sobre as práticas feitas até então e elaborar estratégias para furar as bolhas, tornando as redações verdadeiramente mais plurais. Afinal, “por que as pessoas confiariam em fontes e notícias onde não se vêem, e cujas reportagens não refletem a realidade que elas vivem?”, questiona Paula Cesarino Costa, da Folha de S.Paulo, responsável pela editoria de diversidade do jornal, criada em maio deste ano. Durante sua palestra no Festival 3i, que aconteceu no Rio de Janeiro no mês de outubro, ela aponta alguns avanços, como o primeiro censo da história da redação. “Antes disso, não havia noção de quantas pessoas negras havia na redação, porque sequer se perguntava sobre isso”, conta.
A partir da criação da editoria, segundo ela, a questão do racismo passou a estar na pauta do dia a dia, e não apenas em momentos específicos do ano. Outro objetivo da editoria é rediscutir critérios para a contratação de jornalistas, valorizando experiências e vivências sociais plurais. “A transformação desse quadro é complexa e tem resultados mais lentos do que a gente gostaria”, afirma Paula, enfatizando que os desafios ainda são muitos, sobretudo em um cenário em que a situação financeira do jornal vai mal, com mais cortes do que contratações de profissionais. Além disso, como lembra Yasmin Santos, apenas contratar não basta. Ter pessoas negras como estagiários, trainees e repórteres, ou no “chão de fábrica”, não é suficiente para garantir mudanças. Ela enfatiza: “política de diversidade é sobre quem se senta à mesa, sobre quem toma as decisões e pode opinar”. Sobre o assunto, a jornalista Nina Weingrill, uma das fundadoras do É Nóis, complementa que é preciso criar espaço e método para diálogo, “caso contrário, quem manda vai continuar decidindo – sem uma escuta amorosa e atenta – o destaque na home e a manchete da capa.”
Em sua fala no Festival 3i, Raull Santiago, do coletivo Papo Reto, provoca a platéia de jornalistas: “Nos lugares em que trabalham, quantas pessoas pretas e faveladas estão falando sobre coisas que não se resumem a ser pretas e faveladas? Quanto tem de preto e periférico que criou uma tecnologia?” A busca por diversidade nas redações significa não tratar as pessoas negras e da periferia como objetos, e sim como sujeitos; significa entender que questões raciais estão no centro, e não à margem de qualquer discussão sobre a sociedade brasileira, e que jornalistas negros não precisam falar apenas sobre negritudes, e sim sobre todos os assuntos que interessam à população. Como declara Elena Wesley, jornalista negra, “defendemos que nossa visibilidade não se limite a falar sobre as demandas da negritude, mas que a negritude seja compreendida como elemento fundamental para abordar qualquer tema”. Buscar diversidade no ambiente de trabalho também encurta caminhos para a busca de sustentabilidade, e inovação. Como aponta Nina Weingrill, as pessoas enxergam o mundo a partir de um acúmulo de experiências pré-existentes, então “exigir variedade de soluções e resultados quando se tem uma equipe homogênea é rodar em círculos”.
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Andressa Kikuti e Janara Nicoletti são doutorandas em Jornalismo no PPGJOR e pesquisadoras do objETHOS.