Novo partido do capitão reformado pode transformar profundamente o cenário político brasileiro
Igor Felippe Santos*
Brasil de Fato
O Brasil viveu durante a Nova República um tipo de condução política para vencer eleições e governar que consistia em ganhar o pleito, construir uma base ampla e permanente no Congresso, perseguir e manter a consolidação de uma maioria na sociedade em torno das medidas do governo.
Diante da radicalização de setores da burguesia e da sua expressão política, dos grandes oligopólios de comunicação, do estrato político-jurídico dentro do Estado e das mobilizações massivas da alta classe média, a desmoralização do sistema político e a desconfiança com os mecanismos instaurados com a Constituinte de 1988 alcançou um novo patamar.
Paralelamente, emergiu o fenômeno do bolsonarismo, uma espécie de “efeito colateral” da radicalização da direita para isolar e derrotar o PT. Jair Bolsonaro sempre se diferenciou da média dos políticos do Congresso Nacional que sempre “fizeram média”. Ou seja, que sempre buscaram camuflar a essência dos seus interesses políticos com um discurso que pudesse ser apoiado ou aceito pela maioria da sociedade.
Bolsonaro sempre se colocou na cena política com um discurso tão agressivo, violento e rejeitável que, para bem ou para mal, denotava coragem, sinceridade e convicção. Conseguiu arregimentar muitos seguidores por admiração ou reconhecimento da sua postura, mais até do que pela concordância com suas posições.
Capitão reformado, o deputado federal manteve posicionamentos que evidenciavam quem eram seus inimigos, a esquerda (e suas variantes, como os petistas, comunistas, movimentos populares), os defensores de direitos humanos, os homossexuais e as feministas.
A seleção dos inimigos deixava subjacente uma agenda política genérica em defesa da família, da ordem e segurança pública, que estaria em contraste com “princípios” da esquerda.
Bolsonaro não tinha relevância sequer na direita, que cristalizou como polo hegemônico o PSDB. Este atuava na política dentro dos marcos tradicionais de apresentar à sociedade bandeiras políticas e propostas de ações para construir uma maioria, como o controle da inflação e a “estabilidade econômica”.
Observar o processo pelo qual o bolsonarismo suplantou os tucanos abre margem para depreender elementos que constituem a forma de ação do núcleo do atual governo.
Bolsonaro se firmou como ator político relevante no movimento da direita pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT). Na vanguarda, entrou nessa campanha golpista na primeira hora ainda no final de 2014, disputando com Aécio Neves (PSDB) – que foi engolido posteriormente em um escândalo de corrupção.
Na medida em que o movimento contra a Dilma foi engrossando, tendo como eixo o combate à corrupção em meio à ofensiva da Lava Jato, da campanha dos oligopólios da comunicação, da revolta da alta classe média e do reposicionamento das igrejas evangélicas, ele lançou sua candidatura presidencial e consolidou uma base eleitoral.
Essa referência se impôs pelas posições radicais e doutrinárias de Bolsonaro, não por qualquer esforço da sua parte para “conquistar” a maioria do movimento golpista. Pelo contrário, fazia da sua “coragem”, “sinceridade” e “convicção” um contraste com aqueles que foram aderindo de forma oportuna (ou oportunista) ao movimento ou que não tinham uma postura, firmeza e trajetória correspondente ao sentimento latente que ganhou força na sociedade.
Com essa postura, estava na mesma trincheira do PSDB e do PMDB, por exemplo, mas demarcando seu diferencial. Uma diferença não só de vocabulário, mas de “tradição política” (a ditadura militar), de referências históricas (militares, policiais e torturadores, como Carlos Brilhante Ustra) e de método de ação (a violência, o combate político-ideológico permanente e o uso das redes sociais e novas tecnologias).
Dentro de um movimento que mirava no PT, Bolsonaro ganhou referência na direita por ter em torno dele a minoria mais ativa, intransigente, coerente e coesa ideologicamente, com a perspectiva de colocar em xeque todo o ciclo político da democratização e da Nova República, que teriam permitido que a esquerda chegasse ao poder, subvertesse valores e deixasse a corrupção destruir o país.
Essa minoria sempre existiu na sociedade, mas conseguiu grande coesão com a radicalização da direita, passou a ver em Bolsonaro uma expressão política comum, recrutou com ação ativista outras faixas da sociedade. Constrangeu aqueles segmentos e representações que se aliaram mas não concordavam com todas as suas posições, neutralizando-as ao afirmar que o mal maior era o PT.
Lançou mão também, com aliados ou não, da convocação de manifestações de massa para mobilizar sua base em torno de bandeiras que incidiam no conjunto da sociedade, apesar da participação se limitar a um setor específico. Embora tenham alcançado um patamar superior no tema da corrupção na defesa do impeachment, os protestos seguiram sendo organizados, seja em defesa da Lava Jato, do pacote “anticrime” ou da reforma da Previdência.
Essa minoria de extrema-direita, classificada por alguns como neofascista, tem como método a violência do uso da força como prática para “enfrentar” as situações nas quais o “diálogo” não seria mais possível ou aceitável. Não é por acaso que policiais militares, baixas patentes das Forças Armadas, grupos de extermínio e milícias urbanas e rurais foram a base para a consolidação de Bolsonaro.
A construção de uma rede de apoiadores nas redes sociais, apelidada por muitos de “milícias digitais” , reproduziu na internet esse mesmo modus operandi, em um ambiente bastante favorável para o combate e a “violência” da execração pública e das fake news. O senso comum foi e é usado como instrumento de ataque ideológico.
O método do bolsonarismo com outras correntes de direita não é diferente em essência da forma como trata a esquerda: qualquer segmento que se contrapor deve ser combatido e, se possível, destruído, sem qualquer pretensão de composição ou armistício.
O governo Bolsonaro tem sua fortaleza, mesmo com a multiplicação das contradições, exatamente nesse modo de funcionamento. Ao alimentar a radicalização mais extrema possível, mantem a coesão ideológica e unidade de “ação” dos bolsonaristas (especialmente, na internet, mas eventualmente nas ruas também). Coloca a espada no pescoço da direita não alinhada e combate frontalmente os inimigos ou qualquer um que faça qualquer sinalização a eles.
Não se pode julgar a força ou fraqueza do governo Bolsonaro com a régua das gestões que o antecedeu, que atuaram dentro da institucionalidade padrão da Nova República. O bolsonarismo não pretende repetir essa forma, o que seria uma contradição com o seu DNA. Não há o esforço de construir uma maioria na sociedade que pavimente uma base no Congresso Nacional para aplicar um “programa médio” que seja aprovado sem reação ou com a menor reação possível.
A narrativa construída em torno do governo Bolsonaro é de que está em curso um processo de “redenção nacional”, que remete a “tempos de glória do país” para destruir o “modelo corrupto da (falsa) democracia” que entregou para “políticos e partidos políticos degenerados” e “tirou o direito dos patriotas e pessoas de bem” de definir os desígnios do Brasil.
Diante do processo de “redenção nacional”, na visão deles, se erguem diversas forças que querem manter tudo o que está aí, desde instituições como o Congresso e o STF, a Globo e a Folha, o PT e o PSDB e todos aqueles que ousarem se colocar contra essa “jornada histórica em defesa do país, da ordem e da família”. O vídeo das hienas contra o leão, divulgado pelo próprio Bolsonaro, traduz justamente essa narrativa.
Na dinâmica da extrema-direita, todos esses atores devem ser combatidos e, se possível, desmoralizados, calados ou destruídos. Dessa forma, o bolsonarismo lança mão de uma nova forma de ação política dentro democracia e contra a democracia, que é o regime político que promete a convivência em disputa de diferentes correntes ideológicas.
O programa da Aliança pelo Brasil, lançada por Bolsonaro, tem cinco eixos que vão no sentido contrário dos princípios que se consolidaram na Constituição de 1988 e na Nova República: respeito a Deus e à religião (contraposição ao Estado Laico), respeito à memória, à identidade e à cultura do povo brasileiro (ode à Ditadura Militar), defesa da vida, da legítima defesa, da família e da infância (o retorno à Lei de Talião), garantia da ordem, da representação política e da segurança (regresso ao Estado Policial) e defesa do livre mercado, da propriedade privada e do trabalho (fim do Estado social).
Até agora, o governo alimenta um ambiente de instabilidade permanente e, paralelamente, consegue aprovar o seu programa ultraneoliberal, ganhando o suporte pragmático da unidade burguesa (mesmo com tensões) e manobrar as contradições (sejam defecções, críticas de setores de direita ou iniciativas da oposição) para reforçar a radicalização, o que demonstra a força do modus operandi de conduzir a atuação da mais ativa minoria da direita para manter a força e iniciativa do governo.
Ao ameaçar a democracia e deixar no ar uma possibilidade de fechamento de regime, seja nas promessas de reprimir manifestações, nas declarações sobre AI-5, nas propostas de operações de Garantia de Lei e Ordem (GLO) e na utilização da Lei de Segurança Nacional da ditadura militar, o bolsonarismo coloca sua base em movimento. Faz também chantagem com a sociedade e gera posicionamentos críticos do “centro político”, que se repetem e se banalizam por não ter nenhum efeito concreto, uma vez que esses mesmo campo confere apoio ao programa econômico do governo.
Não há sinais de que essa situação mudará no curto prazo. Com o lançamento da Aliança pelo Brasil, o bolsonarismo pode dar um salto de qualidade. Se conseguir avançar na organização, enraizamento, nacionalização e ação da extrema-direita, poderá ganhar novas perspectivas políticas e transformar profundamente o cenário político brasileiro.
* Igor Felippe Santos, jornalista com atuação no movimento popular.
Edição: Daniel Giovanaz