Isolados em área verde visada, cerca de 70 índios awás sobrevivem protegidos pelos guajajaras.
Na FSP
Rubens ValenteEduardo AnizelliTERRA ÍNDIGENA ARARIBOIA (MA)
Eles vivem da caça e da pesca, nus e sem contato com não indígenas em um pedaço da mata calculado em 3% dos 412 mil hectares da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão.
Semana após semana, contudo, esse exemplo raro do modo de vida indígena é progressivamente ameaçado pela ação de madeireiros e caçadores clandestinos, que invadem o território e obrigam os awás à perda de comida e frequentes deslocamentos, no que os transformou, segundo indigenistas, no grupo humano isolado “mais ameaçado do mundo”.
Sem uma base de fiscalização da Funai(Fundação Nacional do Índio), da Polícia Federal e do Ibama na região —os agentes da União só aparecem de vez em quando—, os verdadeiros protetores dos awás são os índios guajajaras, que somam mais de 12 mil e criaram, em 2013, um grupo próprio de repressão a crimes ambientais, os “Guardiões da Floresta”.
A região vive uma escalada de violência. No último sábado (7), dois guajajaras foram mortos em um atentado em Jenipapo dos Vieiras (MA). Com isso, já são três índios da etnia assassinados neste ano.
“Eles [os awás] estão só nessa ‘bolinha’ de mata. Estão aqui pertinho de nós, a uns três quilômetros. Eles circulam de lá para cá. Queremos que a sociedade venha dar proteção não só para nós, mas para eles também. Eles não sabem se defender, eles não sabem falar [português], estão ali igual uma caça, com medo de zoada, de tiros, de coisas assim”, disse o cacique Paulo Providência Guajajara, 47, da aldeia Jenipapo.
“Os madeireiros já estão dentro da rota dos awás. Muitas vezes eles [índios] pegam o material deles, andam no barraco dos madeireiros, onde o sujeito chega com gripe, tossindo, joga gripe no mato. E aí, meu amigo, se [os awás] pegarem o vírus já era, acabam. A gente fica muito triste com isso, com essa injustiça da Justiça brasileira com a gente”, disse o coordenador dos “guardiões”, Olímpio Guajajara, 45.
O grupo de fiscais ambientais trabalha de forma voluntária e sem qualquer ajuda oficial, com motos em estado precário e armas obsoletas, como mosquetões.
Acompanhada de guajajaras, a Folha passou por um ponto na trilha de acesso entre duas aldeias que, segundo os índios, fica a menos de um quilômetro de onde os awás de Arariboia foram filmados pela primeira vez na história.
O “guardião” guajajara Ronilson Lima, 33, o Flái, atua em um coletivo de comunicação indígena chamado Mídia Índia. Com uma câmera pequena, ele registrou, no começo do ano, um grupo de quatro awás caminhando pela mata —as imagens foram exibidas em fevereiro pela TV Globo.
“Um pressentiu nossa presença, parece que cheirou algo no ar. Ele virou e me viu. Três deles se armaram com uma flecha. Eu fiquei com medo de fazerem alguma coisa, mas foram embora. Eu queria que eles me vissem para ficar com eles a minha imagem, para o caso de nos encontrarmos de novo”, disse Flái.
Está claro para os guajajaras que os awás preferem permanecer vivendo como hoje. Eles poderiam facilmente chegar à aldeia Jenipapo, onde vivem 55 famílias guajajaras, com apenas uma hora e meia de caminhada, mas nunca apareceram por lá.
Há cerca de um ano, um grupo de “guardiões” deixou, em um ponto da mata que eles sabiam ser frequentado pelos isolados, uma vasilha d’água, um facão e um machadinho. Os awás levaram as ferramentas, mas atravessaram a vasilha com duas flechas. Para os guajajaras, foi um sinal de “proibido entrar”.
O grupo de awás de Arariboia é estimado em 60 a 70 pessoas. Os guajajaras dizem que sempre souberam da presença deles na mata. Às vezes ouvem os cantos, de noite ou de madrugada, mas não entendem o que é falado.
“Desde criança a gente sabia dos awás. Meu pai era um grande caçador e os via na floresta. E sempre contava para nós: ‘Olha, tem parente que está morando dentro da mata’. Awá significa ‘os homens verdadeiros’, um nome tenetehara [guajajara]. Eles se chamam mesmo é ‘uwájanjara’”, disse o “guardião” Olímpio.
A interrogação sobre o futuro dos awás começou com as constantes invasões do território nos últimos 20 anos por madeireiros e caçadores.
Do ano passado para cá, contudo, o problema se intensificou. Segundo dados de satélite compilados pelo ISA (Instituto Socioambiental), os ramais abertos por madeireiros aumentaram 27% em um ano, atingindo 1.248 quilômetros dentro da terra indígena.
Os madeireiros entram inclusive com apoio de líderes indígenas subornados, segundo os guajajaras, e podem ter encontros fortuitos e fatais com os awás.
No organismo de um indígena isolado, uma simples gripe pode evoluir para uma pneumonia em apenas dois dias, segundo indigenistas.
“Não há mais como separar o lugar onde estão os madeireiros de onde estão os awás. Eles estão se misturando. Os awás estão onde ainda existe madeira. Mas se tirar a madeira, eles vão para onde? Os awás hoje não estão vivendo, estão sobrevivendo, o que é diferente”, disse o “guardião” Auro Guajajara, 34.
Os invasores derrubam árvores que têm frutos ou que são usadas por abelhas para formar suas colmeias. O mel é uma importante fonte de alimentação dos awás. Além disso, matam e afugentam a caça. Para Olímpio, os awás agora sobrevivem basicamente de alguns tipos de animais. “Estão buscando agora mais é cotia, porcão. Capelão [macaco] já está escasso, está em extinção.”
“Os awás estão passando muita sede, tiram raízes para tomar a água. A pior invasão que está tendo é a dos caçadores. Eles matam paca, tatu, anta, porcão. Eles não vêm para comer, levam para vender”, disse o cacique Paulo.
Sua mulher, a agente de saúde Jacirene Ribeiro Guajajara, contou que os caçadores vêm em bandos armados e usam até gerador elétrico, matando “20, 30 porcões” de uma só vez e jogando no mato partes dos animais que costumam ser aproveitadas pelos indígenas, como cabeças e vísceras.
No último ano, o quadro se agravou. “É uma situação bem crítica. Os awás enfrentam o risco de extinção. Eles provavelmente já estariam mortos se não fossem os ‘guardiões’. É exemplo extremo do genocídio dos povos indígenas, não é algo para o futuro, está acontecendo agora”, disse Sarah Shenker, pesquisadora da Survival International, ONG britânica que acompanha o caso dos awás há anos e os considera o grupo isolado “mais ameaçado do mundo”.
Para o indigenista Carlos Travassos, que coordenou o setor de índios isolados da Funai em Brasília e hoje trabalha com os “guardiões”, os awás são hoje os isolados mais vulneráveis do país ao lado do chamado “índio do buraco”, em Rondônia, e dos piripkuras e kawahivas do rio Pardo, ambos em Mato Grosso.
“Nos outros três casos, pelo menos há alguma ação de proteção em andamento. O caso dos awás é o pior em termos de ameaças externas e das pressões que sofrem. A Arariboia é uma ilha verde, ao redor dela está tudo desmatado.”
No projeto de assentamento Brasilândia, que faz divisa com a Arariboia, três passagens de terra dão acesso livre a madeireiros e caçadores para o interior do território dos guajajaras e dos awás.
Não há destacamento da Polícia Militar, delegacia, guarita ou qualquer tipo de controle sobre a passagem de veículos. Caminhões entram vazios, a qualquer hora, e saem carregados de madeira.
Mesmo depois das mortes do “guardião da floresta” Paulo Paulino, 26, e do morador do povoado, Márcio Gleik Moreira Pereira, 37, no último dia 1º, nenhuma medida foi tomada pelas forças de segurança para impedir as invasões na Arariboia a partir de Brasilândia e diminuir o clima de tensão. A polícia só apareceu para tomar depoimentos sobre as mortes e logo foi embora.
O assentado Pedro Paulo Pereira de Souza, 62, presidente da associação dos moradores há mais de 16 anos, disse que as famílias iriam apoiar a presença permanente da polícia.
“Aqui é rota de passagem. E a gente não pode identificar uma pessoa que está passando. Eu não sei se é ladrão, se é assaltante. Aqui deveria ter uma guarita, só passaria quem se identificasse, como tem nos Estados Unidos. Aqui não, é tudo livre, entra quem quer. Eu achava que seria bom demais a presença da polícia.”
Criada há mais de 20 anos pelo Incra, Brasilândia tem hoje 273 lotes. A associação, 140 famílias filiadas. O povoado fica a apenas oito quilômetros dos limites da Arariboia.
Até por volta de 2012 havia moradores envolvidos na compra e venda de madeira. Naquele ano, porém, o Ibama e a Funai fizeram uma grande operação e fecharam várias madeireiras no povoado.