Por Ana Guedes – Quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada em assembléia das Nações Unidas, em 1948, com o propósito de reorganizar as nações no pós- segunda guerra mundial, sob o manto de reconstrução de ideário democrático, se constituiu em uma perspectiva positiva de avanço civilizacional. Era um novo momento diante da derrota do nazifascismo. O conteúdo dessa Carta apresentava os mais elementares direitos a serem perseguidos pelas nações no esforço de reconstrução. Isso pretendia alcançar os povos, em geral, independente de seu estágio de evolução, conflitos outros entre nações, conflitos internos, numa busca de fazer valer direitos fundamentais para todos.
Tornou-se uma referência a ser observada ao longo desses 71 anos de sua existência. Pactos posteriores de desdobramentos e continuidade da Declaração, como o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), buscavam fazer valer o ideário da Declaração. Isso aconteceu em 1966, mas o Brasil só veio s subscrevê-los em 1992, sete anos após o fim da ditadura militar. Em 1993 é realizada a Conferência Internacional de Viena que define o caráter universal, indivisível e interdependente dos direitos.
A Declaração continua a existir convivendo com diferentes realidades que sempre abalaram seus propósitos. O fim da segunda guerra em 1945 trouxe um alívio para a paz mundial mas trouxe nova divisão política para o mundo. A conhecida guerra fria, entre antigos aliados durante a segunda guerra contra o nazifascismo, passou a balizar a política mundial com importantes disputas entre os países capitalistas, sob a liderança dos Estados Unidos e o bloco socialista, capitaneado pela URSS. O fim da experiência socialista na URSS, e em seus países aliados, trouxe grandes mudanças, fazendo com que o capitalismo viesse a ocupar, mais ainda, grande espaço no cenário político mundial. Hoje, a construção socialista na China, Vietnã, Coréia do Norte e Cuba, representam importante realidade de resistência que vem se consolidando.
Na América Latina, historicamente explorada e com alto grau de desigualdade e pobreza, lutas e conflitos de classe construíram um continente em busca de sua independência e com direitos garantidos. Após o período colonial, sempre foi tratada como quintal de grandes potências imperialistas, particularmente os Estados Unidos. Nessa esteira, os Estados Unidos chegaram ao ponto de articular, armar e executar golpes militares em todo o continente nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado. Período onde os Direitos Humanos passaram ao largo e muito. Com o fim dos períodos ditatoriais, ainda emplacaram governos de pensamento neoliberal, como os governos de Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso aqui no Brasil. Com muita luta e determinação a América Latina se levantou e passou a eleger governos que acenderam a chama da reconstrução democrática. Isso não sem embates constantes e enfrentando muitas dificuldades. Conquistas significativas foram alcançadas nesse período.
Mais recentemente, a crise mundial do capitalismo evidenciou, com maior nitidez , que esse sistema de exploração, excludente, não é alternativa para a humanidade. Como conseqüência disso, problemas de caráter mundial foram se agravando. A questão dos refugiados, que deixam as áreas de conflitos, muitos deles com intervenção de grandes potências imperialistas, tem se tornado das mais graves violações dos Direitos Humanos hoje no mundo, entre muitas outras.
Nessa atual conjuntura, idéias de extrema direita vêm ocupando espaços, num crescendo. Essas idéias, desde o fim da segunda guerra mundial, estavam “adormecidas” mas vêm encontrando terreno fértil. Saem das catacumbas, de forma mais generalizada no mundo, idéias que sempre estiveram latentes na sociedade mas com manifestações mais localizadas ( as ditaduras na América Latina, por exemplo). Hoje existe uma tendência. Governos de direita estão sendo eleitos em muitos países anteriormente caracterizados como democracias clássicas. O cerco à Venezuela, o golpe na Bolívia, são também exemplos da sanha direitista pelo mundo
O Brasil de hoje não fugiu a esta realidade. Após 14 anos de governos democráticos, o país foi tomado de assalto por uma eleição que colocou no poder central o mais improvável já imaginado dos governantes. Passamos a viver um processo de desmonte total de direitos conquistados a duras penas. Toda estrutura e instâncias criadas, para garantir a defesa de direitos dos nossos cidadãos, num lento processo de Justiça de Transição pós ditadura, passaram a cair como pedras de dominó, sem que a resistência tenha conseguido, ainda, barrar essa dramática situação. Setores democráticos e progressistas do país, apesar de muitas análises lúcidas, ainda não conseguiram promover uma reação que venha a modificar esse quadro. Parlamentares que representam a oposição enfrentam lutas fratricidas no Congresso Nacional, buscando brechas de atuação. O movimento popular, apesar de ativo, encontra dificuldades para ações unitárias de porte que possam vir a modificar o quadro atual.
O processo de reparação, constitucional e previsto em lei, aos perseguidos políticos no período ditatorial, passa, agora, pelas mãos de pessoas indicadas pelo atual governo e que são alinhadas totalmente com o pensamento do presidente da república.
O agravamento da violência, caracterizado pelo massacre às populações de periferia nos centros urbanos, no campo, indígenas e a todos os crimes fruto do preconceito, é visível. Existe um estímulo e um clima no país que favorece a esse agravamento. O sistema carcerário está, cada vez mais, caótico. Os problemas ambientais no Brasil são amplificados pelo desmonte de medidas protetoras, contribuindo de forma negativa, para o aumento desse grave problema que assola a humanidade.
A desconstrução é total. Isso tudo acompanhado de um obscurantismo que desafia até a própria ciência.
A luta em defesa dos Direitos Humanos está na ordem do dia, principalmente, agora. O seu conceito é amplo e abarca um conjunto de questões, passando, inevitavelmente, pela defesa da democracia que é o centro do nosso objeto.
As massas populares, mais diretamente atingidas pelo desmonte, precisam ser protagonistas da resistência, sob lideranças conseqüentes. Isso tornará possível enxergar a luz no fim do túnel, nesses 71 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
*Ana Guedes é diretora do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia e integra o Comitê Estadual do PCdoB na Bahia.