A agonia de um setor asfixiado institucional e economicamente e a guerra declarada de um governo contra a classe artística.
FOLHA DE SÃO PAULO
Do baú infindável de bizarrices do que se pode chamar, sem exagero, de nova realidade distópica brasileira, saiu na semana passada a notícia de que cartazes de filmes brasileiros foram removidos da Ancine (Agência Nacional do Cinema). A limpeza não se restringiu às paredes: informações sobre filmes em cartaz e políticas culturais vêm desaparecendo do site do órgão.
O episódio dos cartazes evidencia não apenas o estrabismo completo do governo Bolsonaro, mas também força o observador atento a contemplar algumas hipóteses distintas sobre o verdadeiro enredo do pesadelo dantesco que vive a indústria cultural brasileira.
A extinção do Ministério da Cultura no primeiro dia de 2019 foi um golpe institucional significativo —aliás, tentado já pelo governo Temer em 2016—, revelando o desprezo presidencial pela área. Mas o processo de demolição sistemática começou bem antes da tomada de posse, já com a paralisação da Lei Rouanet em 2018.
O sufocamento financeiro do setor continuou em 2019 com a revisão da política de patrocínio das principais empresas estatais, que promoveram na prática uma retirada total do suporte via editais de fomento. A isso somou-se o bloqueio de recursos do Fundo Setorial Audiovisual (FSA).
Paralelamente, houve neutralização da Ancine, que já havia sofrido um ataque em 2018, quando o Tribunal de Contas da União determinou a avaliação retroativa de todas as prestações de conta dos últimos anos —um julgamento irresponsável que gerou até pedidos esdrúxulos de devolução de dinheiro comprovadamente aplicado em obras audiovisuais.
O esvaziamento institucional do órgão envolveu a paralisação do processo de reposição de seus dirigentes e a ameaça de transferência do Rio de Janeiro para Brasília. Esta última, ainda que não concretizada (o capricho presidencial custaria R$ 1,5 bilhão), deixou funcionários catatônicos e perturbou profundamente o funcionamento da agência.
O ano de 2019 marca a dissolução de qualquer perspectiva futura da indústria cinematográfica, que se viu convertida numa massa paralisada, paranoica e incapaz de se planejar a longo prazo. De um lado, a agonia de um setor asfixiado institucional e economicamente, de outro, a guerra declarada de um governo contra a sua classe artística. Quer dizer, não toda ela.
O governo Bolsonaro, que tanto acusou a oposição de dirigismo cultural, revelou pudor nenhum em instrumentalizar a cultura: “se vai envolver recurso público, nós temos o direito de opinar sobre os temas que são importantes”. Se a arte de antes é “pornografia”, cria-se o conceito de arte boa, que “defende os valores da família” e “presta homenagem aos heróis brasileiros”.
Para o comando da Ancine, o presidente queria um evangélico com “joelhos machucados de tanto rezar” que soubesse “recitar de cor 200 versículos bíblicos”. E assim chegou-se à verdadeira pintura dadaísta da atual equipe de dirigentes culturais brasileiros.
Na presidência da fundação responsável pela formação de público para as artes no Brasil, um sujeito para quem os Beatles surgiram para implantar o comunismo. A promoção da diversidade cultural nas mãos de uma fundamentalista religiosa e a promoção da cultura africana para um negro de direita que nega a existência de racismo real no Brasil. O setor audiovisual administrado por uma funcionária que defende a “valorização do belo e da arte clássica”. À frente do órgão responsável pela Lei Rouanet, um cristão conservador que vê o mecanismo como uma forma de “marxismo cultural”.
Nesse contexto, o episódio dos cartazes seria uma tentativa de “endireitar” o cinema brasileiro: os filmes de linha mais progressista são apagados e substituídos por uma nova produção audiovisual alinhada com os valores de tradição, família e propriedade. Só que essa forma de pensar incorre em duas falácias lógicas.
A primeira é que a turma de Bolsonaro parece imaginar que o público brasileiro e internacional continuará consumindo cinema brasileiro qualquer que ele seja. Se enganam.
Não é por dirigismo cultural que Estados Unidos, França, Itália, Alemanha e tantos outros admiram a produção brasileira. Se o cinema brasileiro alcança hoje sucesso inédito mundo afora, isso se dá pela diversidade de linguagens e temas da produção nacional, que tem projetado uma imagem multifacetada do nosso país.
E isso sim é fruto de política. São anos de apoio governamental robusto e consistente a uma produção audiovisual diversa e descentralizada, que deu voz a tantas parcelas silenciadas da população brasileira.
O segundo erro diz respeito à própria produção artística. Se hoje se faz muitos filmes sobre minorias sociais, étnicas e sexuais, isso vai além do espectro político de qualquer governo. Não é porque um edital assim determina, que artistas passarão a ter interesse na celebração de 200 anos da independência do Brasil.
Os talentos da indústria nacional, conquistados em décadas de investimento público, são agora ideologicamente e financeiramente asfixiados pelo governo. A eles não restará outra opção senão migrar para a esfera privada, ocupada por plataformas estrangeiras de streaming, como Netflix, Amazon e HBO, que entraram com tudo na produção de conteúdo original no Brasil.
Na nova distopia brasileira, a rede Globo, que sempre simbolizou o monopólio comercial no setor audiovisual brasileiro, passa a ser a opção alternativa para os artistas. Estaria, assim, destruída uma indústria independente construída em décadas de trabalho árduo.
Mas, alto lá: o episódio dos cartazes pode significar um cenário ainda pior.
E se a limpeza da Ancine for um movimento de esvaziamento do próprio audiovisual nacional, qualquer que seja seu espectro político? Estaríamos diante de uma rejeição ao nosso próprio cinema —o que, convém dizer, não seria novidade numa administração com manifesta síndrome de vira-lata, inclusive escrevendo Brasil com z no slogan de promoção do turismo nacional.
A deferência do clã Bolsonaro à cultura americana nos deixa na iminência da declaração “Cinema bom é cinema de Hollywood”. Desde 2018 já não se aplica o sistema de cotas para filmes brasileiros e paira no ar o risco de mudança —também tentada por Temer no Conselho Superior de Cinema (responsável por políticas públicas), com substituição de cineastas brasileiros por representantes de estúdios e conglomerados estrangeiros.
Talvez nem precise: a alta concentração na cadeia distribuidora no Brasil combinada com a dormência das quotas deixa o sistema vulnerável a situações de monopólio predatório como vivido com “Vingadores”, em 2018.
O governo deu mais um indicativo nesse sentido: o programa Mais Brasil propõe a extinção do FSA e, mais do que isso, do Fundo Nacional de Cultura (R$ 1,4 bilhões em 2019).
O que a retirada dos cartazes realmente significa ainda não se sabe. Mas com o cinema nacional à beira do precipício, sabemos que coisa boa não é. Esse ano que nunca acaba, de 2019, promete mais episódios da descida ao inferno da cultura brasileira.