Escritor diz não entender ‘como uma pessoa que enxerga o país à sua volta, vive suas desigualdades e sabe a causa das suas misérias pode não ser de esquerda’
Roberto DiasSÃO PAULO
A convite da Folha, Luis Fernando Verissimo imaginou como atuaria o Analista de Bagé diante de alguns temas contemporâneos.
Por exemplo: Jair Bolsonaro. O presidente seria recebido no consultório com uma das clássicas joelhadas de um dos mais famosos personagens criados pelo escritor gaúcho.
Lançado em 1981, o “Analista” foi um sucesso instantâneo. Psicanalista heterodoxo, de traços gaúchos marcantes, o personagem ganhou um monumento em Bagé. Além de uma do próprio Verissimo, há estátuas do Analista e de sua secretária, Lindaura, fundamental para ajudá-lo a resolver os casos mais complicados.
Aos 83 anos, Verissimo reclama dos males do corpo, mas não deveria ter nenhum motivo para se queixar da mente. Está intacto o pensamento aguçado e bem-humorado que fez dele um dos mais populares escritores brasileiros.
Sua fama o transformou numa vítima frequente de fake news nas redes sociais. “Já fui muito elogiado pelo que nunca escrevi”, afirmou ele à Folha há dois anos.
Nesta conversa, Verissimo escreveu. Optou por fazer a entrevista por email, após um encontro em São Paulo –onde ele participaria de uma homenagem ao pai, o também escritor Erico Verissimo (1905-1975).
À saída, diante do elevador, o repórter disse à mulher de Verissimo, Lúcia Helena, e às filhas Mariana e Fernanda que compreendia a opção pelo formato da entrevista: “Se eu escrevesse como ele, também preferiria responder por escrito”.
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Como seria uma consulta de Jair Bolsonaro com o Analista de Bagé? O Analista receberia o Bolsonaro com um joelhaço, para inveja de muita gente.
E se Olavo de Carvalho estivesse na antessala com Lindaura, que indicação ela daria ao Analista? Ela avisaria: “esse veio pelo SUS, doutor, que no caso dele quer dizer Sou Uber Sim”.
O Analista de Bagé teria um tratamento para os aspectos que o escritor Luis Fernando Verissimo critica no governo Bolsonaro? Teria, mas envolveria tratamento com águas, lobotomias e talvez uma nova eleição. Séria, desta vez.
Para encerrar essa jornada do Analista de Bagé: como o inventor do personagem narraria, em 2019, uma consulta de um transexual no consultório do Analista? O sr. se sente como o roteirista de ‘De Volta para o Futuro’ ao pensar nisso? O transexual procuraria o Analista por estar em revolta contra a sua porção mulher, o que poderia ser interpretado como homofobia.
Quando as fake news ganharam a visibilidade atual, imagino que o sr. tenha pensado algo como “bem-vindos ao meu mundo”. As fake news chegaram a ser engraçadas para o sr.? Se sim, deixaram de sê-lo? Quando? Na medida em que são formas de ficção, as fake news requerem alta dose de criatividade para competir com as news de verdade, estas sim, frequentemente incríveis.
O Bolsonaro e alguns dos seus ministros são claramente figuras do realismo mágico, mas reais.
Uma hipótese: o sr. recebe muito mais comentários de leitores quando escreve sobre temas políticos do que sobre outro assunto. Se certa a hipótese, isso faz sentido? Por que tamanho fascínio das pessoas em discutir política? A eleição de um candidato improvável como o Bolsonaro energizou o meio político. Parafraseando o que disse aquele irmão Karamázov do Dostoiévski sobre a ausência de Deus, se um Bolsonaro chegou à Presidência do Brasil, tudo é permitido.
As pessoas mundo afora se cansaram de fazer política no sentido de ganhar corações e mentes? Eu acho que é o contrário, grupos que não sonhavam com o sucesso político, quase sempre de extrema direita, estão chegando ao poder pela via eleitoral em várias partes do mundo.
Quando o sr. navega em redes sociais, o que mais chama sua atenção? O ódio das pessoas. Prova do que eu sempre digo: o mundo não é mau, é só muito mal frequentado.
É cansativo ser de esquerda? Ou seria mais cansativo não ser de esquerda? Talvez ingenuamente, eu não entendo como uma pessoa que enxerga o país à sua volta, vive suas desigualdades e sabe a causa das suas misérias pode não ser de esquerda. Ser de esquerda não é uma opção, é uma decorrência. Mas que às vezes desanima, desanima.
Como o sr. escolhe um tema para escrever uma coluna no jornal? A crônica, ou a coluna, nos permite variar de assuntos e chamar o que sair de crônica. Não nos obriga nem a ser coerentes na escolha do tom, do “approach” como dizem na Mooca, ou do estilo. Pelo menos eu não me sinto obrigado.
Como é ser convidado a opinar sobre tudo? O sr. se impõe limites? (Por favor, não os estabeleça nesta entrevista). É bom ter a liberdade de opinar sobre tudo, dentro dos limites da clareza e do bom senso que você mesmo se impõe. Eu comecei a ter um espaço assinado em jornal em 1969. Época do Médici, da censura à imprensa, dos assuntos proibidos. Sei bem como era.
É triste constatar que voltam a falar em controle da mídia e ameaçar com uma nova edição do AI-5. No Brasil a nostalgia é uma força politica ainda a ser estudada.
A possibilidade de o leitor reagir a qualquer mensagem hoje é muito maior. Em que medida isso altera a mensagem original? Quem escreve pode ficar com medo da polêmica? Ou, ao revés, escreve tão somente para procurá-la? Não se deve escrever com medo da reação e da polêmica, ou atrás da reação e da polêmica. Deve-se aproveitar a liberdade que existe hoje, com todas as restrições econômicas combinadas com a revolução tecnológica que afetam os jornais e os jornalistas, antes que os censores e os nostálgicos voltem.
O sr. lê as mensagens que recebe? Só os elogios.
O sr. gosta de lembrar que a medicina melhorou. E a literatura: melhorou? Não estou capacitado para responder. Leio sempre com prazer o Milton Hatoum e o Sérgio Rodrigues, estou lendo o último Le Carré e o último Chico Buarque está na fila, mas não sou mais o leitor voraz e omnívoro que fui um dia.
A despeito de ela ter ou não melhorado, os escritores, como conjunto, têm menos impacto na sociedade do que já tiveram antes. Isso é irreversível? Os escritores não têm mais o impacto que já tiveram na sociedade? Não sei. Talvez os atuais cronistas, como o time de humoristas da Folha, estejam recuperando o impacto que tiveram Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Antônio Maria, na época clássica da nossa crônica.
Voltando às fake news: elas são literatura? O que as aproxima ou as distancia disso? As fake news que funcionam como fatos falsos e mentiras convincentes obviamente fracassam como literatura.
O sr. costuma ouvir poesia em podcast? O que lhe parece? Ouço e leio pouca poesia. Culpa minha, não da poesia.
Quantos livros uma criança deveria ler? Quais? Que roteiro básico o sr. indicaria a um pai de uma criança de, digamos, dez anos, que lhe perguntasse isso de bate-pronto? Os livros infantis ficaram muito bonitos, acho que a função do pai ou do avô deve ser a de fornecer beleza, torná-la disponível e deixar o ato da descoberta para a criança.
O sr. acredita que os vídeos assumiram ou assumirão o lugar dos livros na transmissão do conhecimento? É a velha questão do veículo e do conteúdo, que existe desde os tabletes de barro da Mesopotâmia. O que é mais importante, veículo ou conteúdo?
Um texto numa tela de computador ou num vídeo ainda é um texto, no caso o conteúdo é que vale. Ou o texto em qualquer outro veículo que não seja papiro, papel ou Kindle é inadmissível? Se o livro como nós o conhecemos e amamos vai desaparecer é outra questão. Já anunciaram a morte do livro várias vezes, mas era sempre boato.
É possível manter a profundidade de um livro num vídeo? É. Depende do valor do conteúdo, não da natureza do veículo.
Como isso pode impactar a maneira como as pessoas raciocinam? Estão dizendo que num futuro próximo os robôs raciocinarão por nós, portanto essa questão estará resolvida.
Escrever no celular algo para publicação: não vou perguntar ao sr. se esse outro mundo é possível porque eu mesmo o faço. Mas pergunto o seguinte: que consequências isso tem no que escrevemos? O principal é não nos deixarmos intimidar pela técnica, esquecermos o veículo e nos concentrarmos no texto.
Como o sr. consome informação jornalística? Zero Hora, Estadão, Folha e Globo pela ordem de entrega em casa, The New York Times, The Guardian, a revista The New Yorker, TV.
E não jornalística: como o o sr. consome ficção? Em que plataformas? Confesso, envergonhado, que tenho lido pouca ficção, além da já citada. Plataforma zero.
A fotografia mais e mais trocou um papel de registro por um de comunicação –informar instantaneamente algo a outras pessoas. O texto sofreu transformação parecida? Ou, pelo contrário, as redes fizeram um desserviço à escrita? Na medida em que voltamos ao texto telegráfico e a signos em vez de palavras acho que houve, sim, um desserviço à escrita tradicional, que depende de tempo e espaço para se desenvolver e se explicar.
E os desenhos, como quadrinhos e charges? Eles terão espaço razoável no mundo digital? A charge é uma das tradições mais antigas e perenes do jornalismo internacional e continua forte na sua capacidade de resumir uma opinião ou um “insight” como faz desde o século 18.
O que será a tradução do papel das cartas nas artes em, digamos, 50 anos. A troca de tuítes? No que o ato de escrever uma carta é diferente disso? Os robôs saberão o que fazer.
O futebol brasileiro ainda existe? O futebol brasileiro hoje parece ser o Flamengo com um deserto em volta.
O que o sr. faz para tentar chegar bem até os cem anos? Vamos com calma. Quando chegar aos 99, eu revelo como foi.