Ao criar projetos de lei (ainda) inviáveis de tão absurdos, presidente sinaliza aos interessados: façam o serviço por conta própria.
Luiz Fernando Vianna
Revista Época
É injusto dizer, como fiz no texto publicado no domingo (5) , que “ao menos no Brasil, o clichê ‘as instituições estão funcionando’ se esvazia mais e mais”. Não fossem as barreiras impostas pelo Legislativo e pelo Judiciário, o governo de Jair Bolsonaro teria avançado bastante com seus planos anticivilizatórios.
Estaríamos vivendo (ou morrendo) sob o afrouxamento das leis de segurança no trânsito, o liberou-geral do porte de armas e a formalização da licença para policiais matarem, entre outros projetos que não vingaram.
Esses planos, porém, não foram totalmente derrotados. O estímulo ao uso de armas é bandeira do governo, com apoio de leis ou não. De janeiro a novembro, a Polícia Federal concedeu 70,8 mil novos registros de posse, aumento de 48% em relação ao ano anterior.
Em coro com governadores como o do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e o de São Paulo, João Doria, o presidente defendeu abertamente que policiais não devem prestar contas de suas ações. No Rio, a polícia matou 1.546 pessoas de janeiro a outubro, o maior número da série histórica, iniciada em 1998.
É verdade que o “excludente de ilicitude”, sonhado pelo ministro Sergio Moro, foi derrubado na Câmara, mas ele vigora no dia a dia das favelas e periferias. Condenações de policiais só ocorrem em alguns casos de grande repercussão.
No Brasil, mata-se muito e investiga-se pouco. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apenas 8% dos homicídios são elucidados.
Bolsonaro governa não governando. Envia ao Congresso projetos de lei que sabe que não vai passar e medidas provisórias que caducam porque ele não as defende. São jogos de cena que disfarçam o real objetivo: sinalizar aos interessados que façam o serviço por conta própria.
Militar que planejava estourar bombas em protesto por melhores salários e que tem torturadores como heróis, o atual presidente não é alguém que se possa chamar de escravo das leis.
No sábado 11, o jornal O Globo revelou o novo capítulo do jeito Bolsonaro de desgovernar. O repórter Manoel Ventura mostrou que está sendo cozinhado no Palácio do Planalto um projeto de lei que, se aprovado, coroará 520 anos de massacre das populações indígenas.
As terras que hoje são protegidas pela Constituição passariam a ter várias serventias: mineração (por empresas estrangeiras ou garimpeiros independentes), construção de hidrelétricas, exploração de petróleo e gás, pecuária, turismo etc. O trabalho é assinado por Sergio Moro (como não?) e pelo ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque.
Não há bolo de maldades sem cereja. Ela vem quando se diz que os indígenas serão sempre consultados sobre os projetos, mas não terão poder de veto.
De acordo com a reportagem, no caso de uma hidrelétrica, por exemplo, a compensação para os que habitam aquelas terras há séculos será de 0,7% do valor da energia elétrica produzida.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, já disse que não pautará projetos de lei que prevejam mineração em áreas indígenas. É tão vasta e robusta a crueldade preparada por Moro e Albuquerque que fica difícil crer que o governo realmente aposte que ela vá passar no Congresso.
Estão aí, porém, duas marcas do modo Bolsonaro de governar desgovernando. Se um monstro desses passar um dia, a vitória será completa, pois retratará um país já de joelhos diante da barbárie– com o apoio das elites interessadas nas supostas melhoras na economia, é sempre importante ressaltar.
Se de fato não passar, o recado terá sido dado de maneira ainda mais enfática a garimpeiros, ruralistas, caçadores e outros que destroem a Amazônia e o que restou das populações indígenas: façam o que bem entenderem, pois o governo está do lado de vocês.
Quando tem autonomia para destruir sem pedir licença, Bolsonaro não precisa de subterfúgios. Tem sido assim no desmonte da área cultural, com a transformação do ressentimento dos medíocres e do charlatanismo de Olavo de Carvalho em política de Estado. E tem sido assim no desmonte dos órgãos de defesa do meio ambiente, conduzido pelo ministro Ricardo Salles.
O presidente já afirmou que, para baixar o preço da carne, é preciso ter mais gado em áreas indígenas. E sonha com “pequenas Serras Peladas” no país. Parecem ideias de alguém chucro, mas há método. Sob a aparente estupidez, dão-se avais para atos, digamos, voluntariosos: assassinatos de lideranças indígenas; matança de pobres e desafetos por policiais e milicianos; arremesso de bombas e medidas censoras sobre artistas. O verbo suja, mas as mãos oficiais ficam limpas.