Pobre da criança pobre que mora no Rio de Janeiro. Não bastasse a polícia com ordem para matar, tem também a água contaminada da Cedae.
No Brasil 247
Gustavo Conde
Pobre do adolescente brasileiro que tem de enfrentar a podridão do processo de correção do Enem, repleta de prepotência, impostura, incompetência e má-fé, capitaneada pelo despreparo de um ministro com déficits básicos de letramento.
Pobres dos funcionários do Inep, que sempre prestaram um serviço de excelência na operação complexa que é lidar com a correção de milhões de provas e sonhos e que agora estão sequestrados por gente que opera sob a égide da vingança.
Pobres dos idosos, que assistem o desmantelamento do SUS e o derretimento do poder aquisitivo, já que a inflação do trabalhador é muito maior que a inflação dos mais ricos.
Pobre da população negra, que assiste o aumento do racismo, da violência policial e da imensa lacuna de representatividade política, sendo ignorada por partidos e governos.
Pobre da comunidade LGBTQ, que sofre o assédio permanente dos setores conservadores, brancos e homofóbicos e que, por isso, vê-se também sub representada na dimensão do Estado e ameaçada nas ruas pelo ódio de classe e de gênero.
Pobre do trabalhador, que vivencia o pior momento da história do emprego do país, com a precarização em massa das profissões, o assanhamento do patronato genocida e a extinção dos direitos e do ministério que lhe representava.
Pobre de quem precisa da justiça brasileira, casta de privilegiados com seus salários nababescos e indiferença atroz diante da mais indecente desigualdade social do planeta.
Pobre dos presidiários, que pagam as suas dívidas com a sociedade sob tutela do Estado, mas que são corroídos por bactérias desconhecidas devoradoras de pele humana, em assustadora violência contra a dignidade humana, espetáculo deprimente de tortura, vingança e sadismo, em que presídios brasileiros trepidam diante dos nossos olhos como ‘Aushwitzes’ contemporâneas disfarçadas de instituições carcerárias.
Sob o silêncio do Estado, sob o silêncio de ministro da Justiça, sob silêncio de ministra de direitos humanos, sob o silêncio da imprensa.
Pobre do país, pobres de nós, pobres dos indígenas, dos estudantes, da Amazônia, do Pantanal, do litoral, dos rios, das águas, dos sonhos, do futuro, dos animais, do convívio, das amizades, da memória, da história, da solidariedade, do amor, da tolerância.
Estamos todos sob a égide da pobreza material e de espírito para satisfazer a ganância desenfreada e o egocentrismo dos políticos oportunistas, milicianos trevosos, bestas salivantes, enunciadores de ódio, portadores de morte.
Pobre de toda a responsabilidade que nos recai sobre os ombros diante de tanta catástrofe social, porque devo dizer com toda as palavras que me restam: nós somos responsáveis por tudo isso.
Nós lutamos e perdemos a luta, mas a derrota é de todos.
Quando vemos a foto de uma criança brasileira, feliz com seu mundo particular e com o milagre da vida que lhe preenche o corpo e a mente, sem saber o que cerca o seu futuro e no meio dessa devastação social desumana, a dor é de tal grau lancinante que somos imediatamente arrebatados por uma espécie de ‘desespero contido’ e levados a perguntar às entidades imaginárias que nos habitam o espírito: por quê?
Nós somos responsáveis por elas. Nós precisamos recobrar a responsabilidade pelo país, antes que nos vejamos como cúmplices de um governo assassino, tal qual o povo alemão em sua chancela histórica e supostamente inconsciente ao nazismo.
Quando perceberam, era tarde demais.
Que não incorramos nesse mesmo erro. Que não deixemos as crianças sem futuro. Que não autorizemos o nosso próprio massacre, o nosso próprio egoísmo, a nossa própria abdução ao universo dos opressores e dos cúmplices.
Se a revolta coletiva nos é impossível pelo serviço de contenção paralisante que nos é prestado pelo nosso jornalismo de controle, tentemos, ao menos, a expressão de uma revolta interna.
Quem assiste a toda essa barbárie inerte é também seu agente, seu cúmplice e seu sócio.