Funai planeja colocar evangelizador de indígenas na chefia de índios isolados

Funai planeja colocar evangelizador de indígenas na chefia de índios isolados

Nomeação pode levar ao fim do princípio do ‘não contato’, linha fundamental da política indigenista brasileira desde 1987.

Rubens Valente
Folha de São Paulo

presidência da Funai (Fundação Nacional do Índio) prepara a nomeação de um teólogo e missionário da organização evangélica americana MNTB (Missão Novas Tribos do Brasil) na chefia de um dos setores mais sensíveis do órgão, a coordenação de índios isolados e de recente contato.

A Missão Novas Tribos atua na evangelização de indígenas na Amazônia desde os anos 1950, sendo objeto de polêmicas e críticas de indigenistas e antropólogos.

Nos últimos anos, a coordenação da Funai tem resistido à atuação de evangélicos junto às comunidades isoladas e de recente contato por entender que são os grupos mais vulneráveis e que requerem a maior proteção do governo brasileiro.

No começo dos anos 1990, a Funai retirou a Missão Novas Tribos da região habitada pelos índios zoés, no Pará, que haviam sido contatados pela missão em 1987.

Nos últimos anos, evangélicos tentaram retomar o trabalho junto aos zoés, mas foram repelidos pelos indigenistas da Funai. Outra etnia na mira dos evangélicos são os zuruahãs, no Amazonas. A responsabilidade sobre os dois grupos está na mesma coordenação que agora poderá ser ocupada por um evangélico.

Havia um empecilho administrativo para a nomeação de alguém de fora da Funai na Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, mas ele foi removido nesta quinta-feira (30) pelo presidente da Funai, Marcelo Xavier da Silva, um delegado da Polícia Federal indicado ao cargo por membros da bancada ruralista no Congresso.

Ele alterou o regimento interno da Funai para permutar a função comissionada do comando do setor, que só poderia ser ocupada por um servidor público concursado, por um cargo em comissão. A atual coordenadora é a indigenista Paula Pires, servidora da Funai há mais de dez anos.

O preferido do comando da Funai para comandar o setor, segundo fontes consultadas pela Folha, é Ricardo Lopes Dias, teólogo formado por uma instituição mantida por evangélicos no Paraná, graduado em antropologia em 2012 e cientista social.

Em uma dissertação de 2015, Dias destacou sua “experiência missionária na MNTB por mais de uma década”. Em seu currículo na plataforma Lattes explicou ter desenvolvido, de 1997 a 2007, “um projeto voluntário religioso agenciado pela Missão Novas Tribos do Brasil junto às comunidades Palmeiras do Javari [AM] e Cruzeirinho (esta, da etnia indígena matsés)”.

Na dissertação, o próprio Dias explicou qual o principal objetivo da Missão Novas Tribos que, segundo ele, atua com 47 etnias no Brasil e cinco na África.

“O foco é a plantação de uma igreja nativa autóctone em cada etnia e para isso dispõe de treinamento bíblico, linguístico e transcultural próprio, além de uma consultoria técnica para assessoria estratégica e de acompanhamento espiritual por meio de visitas regulares da liderança aos missionários nos campos”.

No ano passado, Dias foi o orientador em pós-graduação da UniEvangélica, uma instituição de Anápolis (GO), no trabalho intitulado: “Antropologia em missões: considerações sobre as apropriações da antropologia pelos missionários evangélicos contemporâneos”.

A Funai contabiliza cerca de 28 registros confirmados de grupos indígenas isolados em seis estados da Amazônia Legal brasileira.

A maior parte deles está na Terra Indígena Vale do Javari, onde Dias afirma ter trabalhado com os índios maiorunas, também chamados de matsés. A coordenação de índios isolados é responsável pelo funcionamento de 11 Frentes de Proteção Etnoambiental em sete estados da Amazônia, cuja função é monitorar a saúde e a segurança dos índios isolados e de recente contato.

Servidores e ex-servidores da Funai ouvidos pela reportagem sob a condição de anonimato temem que a nomeação de um evangélico no cargo estratégico possa representar, além do avanço sobre as etnias de recente contato, como os zoés e os zuruahãs, o fim da chamada “política do não contato”, assumida pelo governo federal como linha fundamental da política indigenista brasileira desde 1987.

Para evitar massacres e mortes que foram constantes antes e durante a ditadura militar (1964-1985), a Funai deliberou que grupos indígenas isolados somente seriam contatados quando um evento puder colocar em risco a vida dessas populações, como ataques de madeireiros e garimpeiros ou atritos entre tribos. Nos últimos 20 anos, apenas uma operação de contato foi desencadeada, no ano passado.

Procurada para comentar sobre a possível nomeação de Dias, a assessoria da Funai informou que “uma nomeação só é válida a partir de publicação de portaria no Diário Oficial, posse e exercício do nomeado.”

“A Funai não se pronunciará quanto a supostas indicações. No que diz respeito à permuta entre funções comissionadas e cargos em comissão, declara que este é um procedimento comum necessário à organização interna de um órgão público. Ambas são de livre nomeação por parte do gestor e sua ocupação sempre deverá atender aos critérios exigidos pelo Decreto nº 9.727, de 15 de março de 2019.” 

O decreto aponta como critérios básicos para a ocupação dos cargos e funções idoneidade moral e reputação ilibada e perfil profissional ou formação acadêmica compatível.

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