É uma espécie de regresso às origens: numa edição especial, o fotógrafo brasileiro revela novas perspectivas da corrida ao ouro na selva amazónica, revisitando o trabalho que lançou a sua carreira internacional.
PATRÍCIA FONSECA
No Visão
Cor. Brilho. Modernidade. Esta era a santa trindade da Imprensa da década de 1980, com as grandes revistas internacionais a apostarem milhões na reconversão para as páginas a cores.
Por isso, quando Sebastião Salgado explicou a Neil Burgess (que acabava de ser nomeado diretor da Magnum, em Londres, em 1986) que pretendia dedicar os anos seguintes a fotografar apenas a preto-e-branco as vidas de trabalhadores pobres e explorados em 42 locais do mundo, ele deitou as mãos à cabeça. Comercialmente, o projeto do fotógrafo brasileiro tinha tudo para ser um desastre.
Alguns meses mais tarde, Salgado telefonou-lhe contando que acabara de regressar do Brasil, onde decidira iniciar o projeto que daria origem ao livro Trabalho. Agora, dizia, precisava que a Magnum vendesse algumas dessas fotografias, para prosseguir para os 41 destinos que lhe faltavam.
“Perguntaram quanto custava o trabalho e eu pedi o dobro do portefólio mais caro que já tinha sido vendido pela Magnum… Estenderam-me logo a mão: ‘Ok’”
No escritório da Magnum foi entregue uma caixa com 40 fotografias impressas em 24 x 30 cm, e Burgess ficou deslumbrado, como veio a contar, em 2019, ao British Journal of Photography. Ligou para Salgado, que havia sugerido tentar a publicação na Granta, e disse-lhe que uma das grandes revistas iria comprar a reportagem. Ele achava improvável porque a serra Pelada já tinha sido fotografada por outros, incluindo pelo correspondente da Magnum no Brasil, Miguel Rio Branco. Mas todos fizeram fotos a cores, passando apenas um dia ou dois a registar o espetáculo de 50 mil homens a procurar ouro na lama, no meio da Amazónia.
Salgado, por outro lado, fotografou a preto-e-branco e viveu quatro semanas com os “peões” num “barraco”, acompanhou todas as fases daquele trabalho colossal, ouviu-os falar dos seus sonhos e dos monstros que os atormentavam.
Essa imersão nos assuntos retratados foi sempre condição essencial para o trabalho do brasileiro, mesmo quando fotografava para as agências de notícias (e a cores), em que iniciou a sua carreira, no final da década de 1970. Em 1983, durante a grande vaga de fome na Etiópia, por exemplo, fixou-se num campo de subnutridos e criticava os jornalistas que mal contactavam com a realidade que pretendiam retratar – viu 34 equipas de reportagem a chegarem e a partirem durante os dez dias em que ali permaneceu.
“A paciência e a concentração necessárias para permanecer num só lugar, para tentar ver além das primeiras impressões, para se forçar a olhar para um assunto de maneiras diferentes, sob diferentes luzes, e depois voltar e olhar novamente, é algo essencial”, considera o ex-diretor da Magnum, que, uma hora depois de receber as fotografias de Salgado, estava a entrar no gabinete do editor de arte do Sunday Times.
Michael Rand, um homem pioneiro na introdução da cor nos suplementos de fim de semana, seria, talvez, o pior interlocutor possível para a venda de um portefólio a preto-e-branco, e Neil Burgess não havia revelado nada sobre o trabalho que iria apresentar, temendo que Rand nem sequer aceitasse vê-lo.
Durante uns instantes, depois de dispor sobre a mesa algumas das fotografias da corrida ao ouro no Brasil, instalou-se um silêncio incómodo na sala e Burgess temeu o pior. Mas, quando olhou para o rosto de Michael Rand, percebeu que era “um silêncio bom”, quase reverencial. Poucas foram as vezes que ele sentiu nos editores internacionais esse respeito que se mistura com o encantamento, como uma espécie de feitiço que conduz à rendição total. “Perguntaram quanto custava e eu pedi o dobro do preço do portefólio mais caro que já tinha sido vendido pela Magnum… Estenderam-me logo a mão: ‘Ok’.”
A reação foi semelhante na revista do New York Times, quando o editor de fotografia, Peter Howe, mostrou as fotos de Salgado à direção do jornal. “Em toda a minha carreira, nunca vi os diretores reagirem a um trabalho daquela forma”, escreveu Howe, no mês passado, a propósito da nova edição em livro desta reportagem, com a chancela da Taschen.
Na manhã seguinte à publicação, os telefones da Magnum não paravam. Editores de todo o mundo queriam comprar as fotografias e, a partir de então, Sebastião Salgado teve financiamento garantido para percorrer o mundo e ir publicando, reportagem a reportagem, o portefólio que, anos depois, seria agregado na obra Trabalho.
O retrato da escravidão a que aqueles homens se sujeitavam viria a garantir a sua liberdade como autor. Quem viu as fotografias do formigueiro de homens cobertos de lama naquela mina de ouro nunca mais esqueceu o nome de quem estava atrás da câmara.
Salgado também guardou para sempre o que sentiu na serra Pelada. “Ali tive uma visão dilacerada e definitiva do bicho-homem: 50 mil criaturas esculpidas em lama e sonho”, escreveu na introdução de Trabalho.
“Só se ouvia o rumor humano, murmúrios e gritos silenciados e o ruído de pás e enxadas impulsadas por mãos humanas, nenhum som de máquina.” Num local onde estavam proibidas as armas de fogo, o álcool e as mulheres, “havia uma indizível necessidade de tudo, de afeto, de calor humano. Havia um perigo constante e uma vida sem consolo. Escravos da ilusão, revolvendo a terra”.
Ali tive uma visão dilacerada e definitiva do bicho-homem: 50 mil criaturas esculpidas em lama e sonho
SEBASTIÃO SALGADO
Só permanecendo e conquistando a confiança dos homens que Salgado pretendia retratar foi possível fixar em película a esperança e a violência latentes naquela cratera com contornos irreais, de outro mundo ou de outros tempos.
Só assim foi possível ver além da lama que cobria aqueles milhares de corpos e conhecer histórias únicas, como a do dirigente sindical que liderava a ala dos mineiros homossexuais. “Era um valente, respeitado por todos, e sonhava encontrar ouro e ir para Paris”, recorda Salgado. O seu grande sonho era pôr seios de silicone. “Ninguém, como os franceses, para este tipo de operação. Os de Paris são os seios mais lindos do mundo”, dizia.
Provavelmente este mineiro nunca terá saído do Pará, como a grande maioria dos “peões” que ali perdeu anos de vida a correr atrás de uma miragem. A serra Pelada “secou” pouco tempo depois, e desses tempos restam apenas as lendas sobre pepitas do tamanho de couves – e as imagens que Salgado nos deu.
Dois livros e uma exposição
Sebastião Salgado voltou a olhar para os 400 rolos fotográficos que trouxe da serra Pelada, em 1987, para selecionar as 300 imagens (31 das quais inéditas) que integram o novo livro Gold, publicado, em novembro de 2019, pela Taschen, em três versões: uma para o público em geral (€50) e outras duas para colecionadores. A edição XXL custa €800 e cada livro está numerado e assinado pelo autor; a Art Edition, numa caixa em tons de terra, com uma fotografia impressa assinada pelo fotógrafo, custava 5000€ (já está esgotada). Editado em várias línguas, o livro tem uma edição trilingue (português, italiano e espanhol), com um texto de enquadramento do jornalista Alan Riding, antigo correspondente internacional do New York Times.
Em simultâneo, foi também criada uma exposição com 56 imagens inéditas, inaugurada em São Paulo, no Brasil, não havendo ainda informação sobre a sua passagem por Portugal, embora existam já datas para a sua apresentação em Londres, Talin e Estocolmo.
Sebastião Salgado formou-se em Economia, mas a paixão pela fotografia levou-o a arriscar uma carreira como fotojornalista, em 1973. Trabalhou para as agências Sigma e Gamma e, em 1979, passou a integrar a Magnum. Queria conhecer e dar a conhecer o mundo, compreender as motivações dos homens, documentar uma sociedade em mudança – e foi isso que fez nos últimos 40 anos. Depois de Trabalho, iniciado com as fotografias na serra Pelada, dedicou vários anos aos livros Terra, Êxodos, África e Génesis, entre outros projetos-causa. Da militância fotográfica passou à militância efetiva, em 1998, ao fundar o Instituto Terra (com a mulher, Lélia Wanick Salgado), promovendo a educação ambiental e a recuperação da mata atlântica e das florestas da Amazónia. Venceu o World Press Photo e o Prémio Príncipe das Astúrias, entre dezenas de distinções, e, em 2017, passou a ocupar a cadeira nº 1 das quatro existentes para fotógrafos na Academia de Belas-Artes de França. Tem 75 anos e, apesar de ter casa em Minas Gerais e em Paris, vive quase sempre em viagem.