Pensões a solteiras levanta debate sobre o Direito, o justo e o ético

Pensões a solteiras levanta debate sobre o Direito, o justo e o ético

Estadão – O pagamento de pensão para filhas solteiras não é exclusividade do Congresso e dos militares. No Executivo, pelo menos 52 mil mulheres recebem o benefício porque não se casaram “no papel” e porque seus pais, todos civis, trabalharam no governo federal antes de 1990. Documentos do Ministério da Economia analisados pelo Estado mostram que há uma pensionista que recebeu R$ 3 mil em dezembro passado, mas R$ 233,4 mil em novembro.

A “bolsa solteira” da União foi criada por uma lei de 1958, já revogada, com a justificativa de que as mulheres não poderiam se sustentar sem pai ou marido. O benefício custou R$ 630,5 milhões nos últimos dois meses de 2019 – R$ 418,1 milhões em novembro e R$ 212,4 milhões em dezembro. A diferença se dá por causa das gratificações natalinas incluídas na folha do 11.º mês. Os valores podem incluir decisões judiciais e retroativos.

Não foram divulgados os dados do ano inteiro. As informações de novembro e dezembro só foram tornadas públicas após determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), que acolheu denúncia do site Fiquem Sabendo. Questionado sobre valores acima do teto do funcionalismo (R$ 39 mil), o Ministério da Economia informou que “algumas rubricas são pagas esporadicamente e não entram no cálculo do teto constitucional” – entre elas, décimo terceiro e pagamentos retroativos.

Questionado pela reportagem sobre valores muito acima do teto do funcionalismo – de R$ 39 mil – como nos casos em que houve pagamento superior a R$ 200 mil, o Ministério da Economia informou apenas que a folha de novembro traz a segunda parte da gratificação natalina dos servidores, aposentados e pensionistas.

No caso da pensionista que recebeu R$ 233 mil em novembro, técnicos da pasta informaram que R$ 6,1 mil diziam respeito à pensão e ao décimo terceiro. O restante foram “pagamentos de atrasados”, segundo o ministério. Em alguns casos, a falta de cadastro suspende temporariamente os benefícios. Quando os documentos são atualizados, a mulher recebe, de uma vez, todos os atrasados.

A reportagem localizou a advogada de uma pensionista que recebeu R$ 81 mil em novembro e R$ 41 mil em dezembro, mas ela disse que não comentaria o assunto.

No Executivo, a maioria das beneficiadas é de filhas de ex-servidores ligados ao Ministério da Infraestrutura – 19.931 pensões. A justificativa é que a pasta reuniu dezenas de órgãos federais de transporte já extintos, como o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que deixou de existir em 2001, e a Rede Ferroviária Federal, encerrada em 1999.

O levantamento do Estado nas folhas de pagamento de órgãos da União considerou apenas mulheres ligadas a órgãos federais civis, excluídos, portanto, Forças Armadas e Ministério da Defesa. Pensionistas de Estados extintos, como o da Guanabara, também não foram incluídas na lista.

Benefício semelhante também é garantido até o fim da vida às filhas solteiras de ex-parlamentares e de ex-servidores do Congresso que não se casam ou não têm emprego público. Em janeiro, o Estado revelou que a folha de pagamento do Legislativo tem 194 mulheres, com pensões de até R$ 35 mil por mês. Um aposentado do INSS, por exemplo, ganha, no máximo, R$ 6.101. No caso dos parlamentares, bastava ser eleito para um mandato para ter direito ao pagamento para suas filhas solteiras.

A lei foi revogada em 1990, mas quem adquiriu o direito continua recebendo. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), classificou a pensão como “absurdo” e defendeu o fim do que chamou de “solteiragate”. Maia deve apresentar uma ação ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) para que o tema volte a ser debatido pela Corte.

Denúncias de fraudes não são raras. Há casos em que as mulheres se casam ou constituem união estável, mas não notificam os órgãos públicos sobre a mudança no estado civil. Assim, continuam recebendo a pensão. Na Câmara, como mostrou o Estado, uma delas chegou a ser indiciada por estelionato e se tornou alvo do Ministério Público Federal.

O TCU, em 2016, alterou a interpretação da lei sexagenária e exigiu o cumprimento pelas beneficiárias de critérios mais rígidos para a manutenção dos pagamentos. Passou a ser necessário, por exemplo, comprovar que realmente dependiam da verba. Pensões acabaram suspensas administrativamente em diversos órgãos. Insatisfeitas, as solteiras recorreram ao Supremo, que as desobrigou novamente de comprovar a necessidade da pensão.

O pagamento da pensão 30 anos depois da revogação da lei divide opiniões. Professor de gestão pública e auditor do Tribunal de Contas de Pernambuco, João Eudes Bezerra Filho afirmou que manter um benefício criado há 62 anos é questionável do ponto de vista moral. “O impacto é muito negativo, não só pelo valor de milhões de reais por ano, mas também moralmente. O governo deveria ir à Justiça pedir para que STF interceda, buscando reduzir prejuízos”, disse.

Secretário-geral do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, o advogado Diego Cherulli foi responsável por uma parcela das ações que chegou ao STF contestando a determinação do TCU. Ele reconheceu que pagar pensões a filhas solteiras de ex-funcionários não condiz com o atual momento do País. Por outro lado, defendeu ser necessário respeitar “o direito adquirido”, sob pena de comprometer planejamentos pessoais e de gerar injustiças.

“É um privilégio, de fato. Mas não podemos desconsiderar o direito adquirido e o planejamento das pessoas. A pessoa se planejou para receber, durante a vida toda, R$ 15 mil, R$ 20 mil. Entendo que, para quem já recebe, é devida a manutenção”, afirmou o advogado.

Estadão 

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