Fantasias na mira do politicamente correto: Luiz Antonio Simas opina

Fantasias na mira do politicamente correto: Luiz Antonio Simas opina

Componentes do Bloco Cacique de Ramos - Luciola Villela/ UOL

No UOL – Um dos maiores estudiosos do Carnaval, o historiador carioca Luiz Antonio Simas se diz surpreso com a grande polêmica da folia em 2020: a lista das fantasias politicamente corretas. A discussão, que parecia resolvida depois de ter chamado atenção há poucos anos, voltou a pegar fogo por causa da relação divulgada pela Prefeitura de Belo Horizonte para indicar quais fantasias não são adequadas. “Eu não gosto. Acho que cria uma marola para o Carnaval que é complicada”, opina Simas, autor de 18 livros sobre a cultura popular brasileira.

Várias caracterizações muito populares estão na lista, inclusive a de índio, o que levou internautas a fazerem críticas ao tradicional bloco Cacique de Ramos, em cuja quadra surgiram nomes valiosos do samba, como Beth Carvalho, Zeca Pagodinho e Jorge Aragão. Todos os componentes do bloco desfilam fantasiados de índio. ” As pessoas não estão entendendo: o Cacique tem 60 anos, é um negócio sério. Tem preceito religioso, são o sagrado e o profano convivendo ali”, argumenta o historiador. “O Cacique é que tem que conscientizar a cidade.” Quem insistir em encarnar qualquer desses personagens pode ser “cancelado”, gíria que significa excluído.

Simas acredita que essa é uma preocupação que existe somente em uma bolha que não se comunica com o povo e vai contra o espírito da folia, que é o de inversão de papéis. Ele sugere ponderação para discutir o assunto e que não se aplique a mesma regra a todos os casos:

UOL – Você usou suas redes sociais para defender o tradicional bloco Cacique de Ramos que estava sendo atacado porque usa fantasia de índio. Como encara esse debate sobre o politicamente correto no Carnaval? Luiz Antonio Simas – Soube de uma figura que tinha sido “cancelada” (a palavra da moda) num bloco porque estava vestida de índio. Nos comentários, surgiu o assunto Cacique de Ramos e houve quem comentasse que os blocos tradicionais vão ter que se adaptar. As pessoas não estão entendendo: o Cacique tem 60 anos, é um negócio sério. Tem preceito religioso, são o sagrado e o profano convivendo ali. Teve o axé de candomblé plantado na tamarineira pelo pessoal da Mãe Menininha Gantois. Eles não fazem nada que não seja autorizado. Além disso, tem o seguinte: a fantasia deles não é de índio brasileiro, é o índio apache dos filmes de Tom Mix (protagonista de faroeste americano nos anos 1920).

Quando você pega um bloco de 60 anos, formado por pretos do subúrbio do Rio de Janeiro… não se pode falar em racismo nesse caso. Fico numa posição complicada porque não tenho nessa altura nenhum lugar de fala. Mas digo que o Cacique não faz nada que não seja referendado pela ancestralidade, é uma coisa visceral. A gente tem que entender que o Carnaval tem muito de profanar o sagrado e sacralizar o profano. Quem acha que aquilo (o bloco) é profano, está enganado, que aquilo (o bloco) é profano, está enganado, ali tem preceito, tem uma coisa muito séria. Há quem diga que é preciso conscientizar o Cacique de Ramos para o politicamente correto. O que acha disso? Achei isso um absurdo. Como vai se chegar para uma instituição de 60 anos e falar isso? A esquerda do Rio de Janeiro querer conscientizar a turma do Cacique de Ramos? Não tem sentido nenhum esse negócio. O Cacique é que tem que conscientizar a cidade. O bloco é que é o elemento civilizatório. Não somos nós que vamos chegar ali com aquela postura paternalista para dizer: “Não é assim…” É muito complicado isso.

Não acha que estão deixando de levar em conta que o Carnaval é o momento de se viver um personagem diferente do que você é na vida cotidiana? Claro. Carnaval é a festa da inversão. Se você chega na festa vestido daquilo que você é durante o resto do ano, o sentido morre. É óbvio que temos que ter a dimensão do tempo. Existem certas fantasias que o tempo mostra que não tem sentido. Não é vale tudo. Não dá para o cara se fantasiar de nazista, ou emular um espancador de mulher, ou aparecer como machão absoluto. Não é isso que está em questão. Mas não pode se perder de vista que é a festa da inversão e ninguém está ali para fazer um desfile patriótico. A gente não pode generalizar, é é preciso entender que cada caso é um caso. O black face é complicado, porque tem uma origem terrível, de quando o negro não podia se apresentar publicamente em cinema e aparece um branco que se fantasia de preto. Ali tem uma carga pesada. A nega maluca também. Mas se a gente colocar tudo no mesmo saco, complica. Acho que tem que ter uma ponderação, estão considerando que tudo é a mesma coisa. O cara pode estar ali sem emular nada, pode ser uma homenagem. Quando se cria um discurso homogêneo para uma coisa que é muito distinta, é complicado. A gente não vai poder se fantasiar de nada. Acho que ninguém se fantasia de índio com a intenção de ridicularizar o índio. A gente está num momento muito complicado, levando muita pancada, no meio do genocídio indígena, e aí vamos ficar preocupado com o cara que está usando um cocar… é quase risível. Acho que é uma pauta fechada de uma bolha muito restrita, que não comunica com o povão. Imagina chegar no subúrbio e dizer: você não pode se fantasiar disso e disso, o cacique não pode… Não faz o menor sentido. Entre as fantasias não recomendadas está também talvez a mais tradicional, que é o homem que se veste de mulher. Mas não é uma festa de inversão? Acho que está faltando dimensão do que é o Carnaval. É um fenômeno psicanalítico.

O Moisés Xerife, zagueiro mais brutal do futebol carioca (jogou na década de 70), saía no bloco das piranhas. A gente está pautando o Carnaval por uma lógica que não é a dele, onde você experimenta o que você não é. Temos uma direita reacionária, conservadora, mas, por incrível que pareça, eu conheço muita gente que está com medo de se fantasiar por causa da esquerda, não querem ser “cancelados”. É moralismo. Mas você reconhece que essa discussão identitária é importante? Obviamente tem coisas que são inadmissíveis, que tem que ponderar, mas a gente chegou a um ponto que não dá. Não estou dizendo que vale tudo, longe disso. As pessoas confundem a cultura do evento com o evento da cultura. O Cacique de Ramos é um evento da cultura, que está introjetada há 60 anos, tem uma lógica inclusive sagrada, que está ligada a Oxóssi, à tamarineira, aos caboclos. É um evento que acontece porque há um caldo de cultura ali muito importante. Mas existem os obcecados pela cultura do evento. O cara que não dá a menor pelota para aquilo e bota uma fantasia de índio ou black face. Acho que é preciso ponderação, não tem regra isso. Cada caso é um caso. O que achou da lista divulgada pela Prefeitura de Belo Horizonte, com fantasias não recomendadas? Eu não gosto. Acho que cria uma marola para o Carnaval que é complicada. O Carnaval reflete discussões que são muito anteriores a ele. Então não adianta você pautar que isso pode, isso não pode… É contra a própria lógica da festa. Não é producente, cria um precedente perigosíssimo. Porque se hoje favorece causas identitárias, amanhã pode trabalhar na lógica da censura e vai conter uma porção de coisas. Estudo Carnaval e, do século 19 até hoje, toda vez que entra o poder público estabelecendo o que pode e o que não pode não funciona. O que se tem que fazer é o trabalho cotidiano, fora do Carnaval, pedagógico, em colégios, com propaganda, para combater tudo isso, homofobia, misoginia e tal. Mas você não pode pegar uma circunstância carnavalesca, em que se opera em outras dimensões até simbólicas, e querer transformar aquilo no boi de piranha da sociedade. Aí não dá….

O que diria para alguém que está em dúvida sobre qual fantasia usar, com medo de ser “cancelado” pelos grupos politicamente corretos? Eu acho que é o seguinte: sai da bolha. Isso é visto muito numa bolha universitária, Centro-Zona Sul, pilotis da PUC, é o reflexo da cidade que não está entendendo o que está acontecendo. Se aqui no Rio o cara chegar na periferia, onde o coro come, isso não tem a menor procedência. O cara tem que ponderar. Evidente que não pode fazer certas coisas, mas não pode ficar fechado nessa bolha universitária no Carnaval. Como a gente se comunica com as outras pessoas? Outra coisa, me preocupo muito com uma ideia, que hoje vejo na esquerda, que é braba (por isso talvez eu esteja a beira de um “cancelamento”), que é a ideia da missão civilizatória. Como alguém diz que “há necessidade de conscientizar”? Nessa altura do campeonato, você vai conscientizar quem? O Bira Presidente (dirigente do Cacique de Ramos)? Não. Tem que entender outras lógicas. Não somos o umbigo do mundo.

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